O assassinato do jovem Munduruku Josimar Moraes Lopes, 25 anos, e o desaparecimento – até hoje – de seu irmão, Josivan, 18 anos, na Terra Indígena Kwatá Laranjal, é um caso imortalizado como “a chacina no rio Abacaxis”, na Amazônia. A ofensiva de madeireiros na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, com emboscadas letais contra os Guardiões da Floresta – conflito que vitimou Paulo Paulino Guajajara, executado enquanto caçava. 20 das 23 famílias Matsés – indígenas conhecidos como Mayoruna – remando mata adentro, fugindo de agentes de saúde infectados com a Covid-19 na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas – onde há a presença de quase 20 povos isolados, ainda mais vulneráveis à doença. Um evento político que promoveu aglomeração de centenas de indígenas no Mato Grosso do Sul e, após duas semanas, causou um surto do novo coronavírus, com as mortes de seis Terena na Terra Indígena Taunay/Ipegue, em Aquidauana (MS), em menos de 24 horas. Estas são apenas algumas das cenas de uma verdadeira Guernica, imagem à altura do que o ano de 2020 significou para os indígenas segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
“Tenho uma antiga orientanda, do povo Terena em Aquidauana, que me mandou mensagem desesperada, contando: ‘nossos velhos estão morrendo, só esta noite morreram seis!’ Imagine isso, imagine o desespero destes povos”, afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel, professora do curso de Ciências Socioambientais na Pontifícia Universidade Católica em São Paulo.
Lúcia Rangel foi quem coordenou a produção do relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – 2020”, do CIMI, que apresenta uma visão geral das ameaças a diferentes etnias durante o primeiro ano de pandemia de Covid-19. Com base no acompanhamento contínuo feito por missionários espalhados em todo o Brasil e em uma série de dados oficiais, o CIMI destaca o legado nefasto do governo Bolsonaro até aqui.
Desde 2015 não havia tantos registros de violência contra indivíduos e territórios indígenas em um único ano. Tudo isso agravado por um pico de assassinatos, com pelo menos 182 vítimas conhecidas, número recorde em 25 anos. Ao todo, os homicídios de indígenas tiveram um aumento de mais de 60% na comparação com o ano anterior, 2019.
As mortes vieram acompanhadas de aumento de grilagens, de invasões para extração ilegal de recursos naturais e de danos ao patrimônio indígena. Segundo o CIMI, em 2020 os conflitos territoriais atingiram 145 povos espalhados em mais de 200 terras indígenas em todas as etapas do processo de demarcação.
Ainda segundo o relatório, madeireiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e garimpeiros “atuam com a certeza da conivência – muitas vezes explícita – do governo” em todas as esferas, da municipal à federal, passando também pela legislativa.
Exemplos não faltam: do projeto de lei 191/2020, feito sob medida para liberar a mineração dentro de terras indígenas, à instrução normativa nº 9, da Fundação Nacional do Índio, que abre brechas para que invasores obtenham registros de terras em áreas de povos originários em todo o país. “O que é o genocídio senão impedir que determinados povos tenham paz, que possam reproduzir suas vidas em seus modos originais e tradicionais, podendo, caso queiram, plantar e colher seus próprios alimentos?”, diz a coordenadora-geral do relatório do CIMI. A Agência Pública conversou com Lúcia Rangel, para entender as descobertas contidas no relatório. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O ano de 2020 ficou marcado como o primeiro ano da pandemia do novo coronavírus. Como a Covid-19 interferiu na dinâmica de conflitos e de violência contra indígenas no Brasil?
Em geral, a vida indígena é muito comunitária, não há cada um na sua casa, isolando-se. O distanciamento social não é, em si, um modelo fácil para sociedades indígenas. Na pandemia, é fato que os povos indígenas ficaram muito mais vulneráveis: particularmente, estas populações são mais suscetíveis a contágios por doenças bacterianas, virais e tantas outras. Então, quando surge um vírus novo para todos e matando muitos, por consequência os indígenas sentiram muito mais.
Logo no início, a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) e outras associações e indigenistas mostraram-se preocupados, pedindo maior proteção às terras indígenas para evitar a contaminação. Foi quando aconteceram casos horríveis. Por exemplo: a Secretária de Saúde Indígena (SESAI) espalha suas equipes nas terras indígenas, e logo no início da pandemia estes profissionais pararam de ir, se ausentaram dos territórios por meses. Isso desprotegeu a população indígena, desprovendo diversos povos de atendimento médico e de medicamentos. Por outro lado, os desprotegeu no sentido mais comum, os deixando sem apoio do poder público para a proteção de suas terras por meio de barricadas, por exemplo.
Não à toa, povos fizeram diversas barreiras sanitárias por conta própria, evitando a entrada de qualquer pessoa, mas em muitos casos invasores armados chegaram, derrubando barricadas, atirando contra indígenas, entrando com truculência nestas áreas e se instalando para derrubar madeira, instalarem garimpos, grilarem terras. Em geral, não houve apoio de órgãos oficiais, os verdadeiros responsáveis pela instalação de barreiras sanitárias, o que fragilizou tanto os territórios quanto às populações em si.
Entendemos que o primeiro ano da pandemia misturou tudo: violência, truculência, descaso e abandono por parte do governo. E isso traz mais desmatamento ilegal, garimpagem e grilagem às terras e aldeias, o que ocorreu por conta dessa presença de ‘visitantes indesejados’. Um cenário devastador, o volume de descalabros foi enorme.
Fonte: Publica