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“Ideologia de gênero” no Disque 100 pode criminalizar professores, diz pesquisador

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Recentemente incluída como possível agente de violência no Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ao lado de crimes causados por orientação sexual, a “ideologia de gênero” – narrativa criada e fortalecida pela igreja católica especialmente nos anos 1990 e apropriada por políticos evangélicos e ultraconservadores no Brasil que se coloca sobretudo contra os estudos de gênero e os direitos LGBT+ – tem se tornado um instrumento cada vez mais significativo para disputas do campo moral, acredita o professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Marco Aurélio Prado.

Além de confundir os dados sobre violência causada por homofobia — algo já reconhecido juridicamente pelo Supremo Tribunal Federal — que chegam através do canal, a medida criaria fluxo de Estado para intimidar e criminalizar professores. “Uma vez que você chama diretor e professora para dar depoimento em uma ocorrência aberta por uma denúncia anônima do Disque Direitos Humanos em uma delegacia, acabou o debate de gênero naquela escola, né?”, questiona. E acrescenta: “É um pensamento reduzido, no sentido de uma economia reflexiva e por isso é um estereótipo preconceituoso. E como a “ideologia de gênero” se mostrou esse sintagma – ou seja junta nada com nada, é um significante vazio, portanto eu coloco tudo que eu quiser aí dentro: comunismo, homossexualidade, pedofilia, qualquer coisa do pensamento conservador cabe em “ideologia de gênero” por sua indefinição. Eles nunca definiram afinal o que é isso de fato. É um mundo de fantasia onde não tem pensamento, reflexão, contexto, história, debate”. 

Prado é pesquisador e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG

Poderia falar um pouco sobre a instrumentalização desse conceito de “ideologia de gênero” como um agente causador de pânico na América Latina e como isso vai se fortalecendo no Brasil também?

A gente tem alguns giros importantes na história recente que marcam o uso do sintagma “ideologia de gênero” como mobilização política. Existe a criação desses movimentos por ideólogos do Vaticano ainda na década de 1990 e em dado momento isso se seculariza, se torna uma questão para sociedade enquanto mobilização política. O sintagma da “ideologia de gênero” vira uma referência conservadora às questões de gênero. Não podemos perder de vista que originalmente essa disputa tem a ver com o campo de estudos de gênero e com o que se chama de gênero nas teorias e ações contemporâneas, e isso vai ter um efeito sobre como o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos trabalha o tema. Embora a gente diga movimentos “antigênero” não é exatamente isso, esse é um termo um pouco generalista para falar de um movimento ultraconservador, radicalmente neoliberal, que surge para atacar um campo e uma ideia de gênero específico. Não é qualquer noção de gênero que está sob ataque.

Essa secularização ganha muita força no Brasil porque temos um terreno apropriado para as questões conservadoras. O machismo brasileiro, o colonialismo acadêmico e cultural, uma série de coisas que no encontro com esses grupos se fortalece muito. E acaba sendo uma questão de mobilização política que estabelece um pânico moral nas pessoas comuns, no dia a dia. Eu entendo que uma mãe fique tensa quando alguém diz que estão ensinando seu filho na escola que ele não precisa ser menino, por mais mentiroso e enganador que isso possa ser.

Então me parece que mais do que um pânico, é a disputa de um campo moral. Não é a criação de um terror com pessoas que estão totalmente inocentes e que vão acreditar e viver esse pânico.Todo mundo tem uma visão de gênero, isso estrutura as concepções de mundo. Mesmo que a gente não fale sobre essas relações, elas acontecem o tempo inteiro. Então começa uma disputa de moralidades porque no fundo esses movimentos antigênero falam o que as pessoas já acham: “Homem nasce homem e mulher nasce mulher”. Estão reiterando o que está na convenção social normativa conservadora da sociedade. Não é nada que implique reflexão. É um pensamento reduzido, no sentido de uma economia reflexiva e por isso é um estereótipo preconceituoso. Então esse pânico, e essa disputa moral passam a ser um foguetório. E como “ideologia de gênero” se mostrou esse sintagma – ou seja junta nada com nada, é um significante vazio, portanto eu coloco tudo que eu quiser aí dentro: comunismo, homossexualidade, pedofilia, qualquer coisa do pensamento conservador cabe no sintagma “ideologia de gênero”  por sua indefinição. Eles nunca definiram afinal o que é isso de fato. É um mundo de fantasia onde não tem pensamento, reflexão, contexto, história, debate. Isso já foi usado de outras maneiras em outros momentos históricos, a própria noção de corrupção sempre teve essa pecha mas no caso de gênero cola em questões centrais da disputa moral que é obviamente toda a questão cultura, natureza, lugares de homem e mulher, sexo, privado e público. 

No caso do Brasil, católicos e evangélicos vão se juntar ao redor desse tema, o que também é uma novidade e acontece na América Latina um pouco mas é diferente da Europa. No caso do Brasil, eles eram adversários de mercado e se juntaram em torno desta ofensiva ultraconservadora de resgate biologizante da noção de gênero. 

Outro giro é a eleição de Bolsonaro, que significou a entrada do que era um movimento ultraconservador na sociedade para uma forma de governo. Em muitos países é difícil identificar o que é governo e o que é sociedade nesses movimentos antigênero, não é simples. Mas no caso do Brasil, o fomento vem muito de agentes do Estado atualmente. A própria Damares quando era assessora parlamentar do Magno Malta, no subsolo do Congresso, já estava fazendo reuniões com o Miguel Nagib, fundador do Escola Sem Partido. Quando aparecem as polêmicas ao redor do material didático do MEC, aquelas audiências que aconteceram na Comissão de Direitos Humanos na Câmara quando o deputado Marco Feliciano era presidente da comissão, Damares já fazia reuniões sobre a “ideologia de gênero” e o “perigo  gay”. A eleição de 2018 traz então esse movimento ultraconservador que estava na sociedade e nas franjas de instituições do Estado, pra dentro de uma forma de gestão das instituições públicas.

E foi uma bandeira da campanha de Bolsonaro, né? Não existia um projeto de governo mas existia a defesa de algumas pautas e uma das principais era como acabar com a “ideologia de gênero” e a doutrinação nas escolas…

Sim porque é um sintagma que mobiliza, esses significantes totalmente abertos em que você pode ir grudando coisas sem explicar, tem uma capacidade mobilizatória em situações eleitorais muito forte. Aliás boa parte da análise da propaganda nazista é feita em cima dessa chave do uso de temas que são bem complexos, mas que você não vai dar explicação nenhuma. Vai só instituir certa disputa sobre ele. No caso das disputas morais, veio muito a calhar. Já estava organizado em outros lugares do mundo, não foi uma invenção brasileira mas aqui funcionou e funciona muito bem. E aí a gente chega em coisas mais contemporâneas e que são muito complexas no campo dos direitos e das regressões democráticas, que são de fato um jeito de gestão. O Brasil está frente a uma forma de gestão ultraconservadora, neoliberal mas que é sobretudo uma ocupação do Estado. Não é só uma forma de governo, é uma maneira de instituir limites àquilo que nós historicamente construímos enquanto Estado. Tudo que a gente achava que era uma construção de Estado, mais perene, como por exemplo o SUS. O SUS é uma instituição de Estado, não de governo, ninguém pode acabar com o SUS. E esse governo tenta limitar ao máximo o que é Estado, tenta governar sobre tudo. Como muitas autoras já levantaram, tem uma característica totalitária nesse sentido de tentar governar, totalizar Estado e sociedade.

Acima de tudo e acima de todos…

Exatamente. A forma de lidar com o contraditório, com a diferença, com a diversidade, com o outro é de aniquilamento para esta ideia de totalidade no modo de vida. E eles fazem isso com as chamadas instituições de Estado. Um governo tem que entender que há limites e fronteiras nas suas formas de gestão e no seu projeto político. E pra esse governo o limite é o céu de fato!

E tem uma novidade no movimento conservador antigênero, que criou uma forma de gestão nas paredes das instituições do Estado de tal maneira que a mudança eleitoral não nos dará absolvição. Se fosse só um problema de governo, acabaria com o fim do próprio governo. Mas vamos ter que lidar com as ofensivas de gênero porque de fato elas viraram uma forma de política de Estado, que não é exatamente de política antidireitos,  então não contrapõe de maneira evidente o jogo dos adversários, mas institui um terreno híbrido. Ela não é antigênero porque defende as mulheres e o fim da violência contra a mulher. A Damares está agora defendendo as travestis, dizendo que elas têm que ter trabalho, que não dá pra sair matando travestis, “a gente tem que abraçar todo mundo, ninguém fica para trás”. Mas aí você não tem uma fronteira muito nítida e na política quando você não consegue reconhecer as fronteiras, você está num terreno menos democratico de debate pois a democracia pressupõe posições entre sujeitos políticos adversários. 

Aí eu acho que a gente entra numa questão que tem relação direta com o que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos está fazendo. Primeiro que aquela fala na entrada da Damares, de que meninos vestem azul e meninas vestem rosa, aquilo é uma reverberação para o movimento anti gênero internacional. A Damares é muito articulada internacionalmente. Ela e Angela Gandra (secretária nacional da Família). Quando ela fala isso, ela está dizendo “chegamos onde tínhamos que chegar” porque a luta dessa ofensiva é obviamente por poder. Não é pra polemizar o que diz a Judith Butler ou outra autora. A ofensiva quer poder, tem um projeto político. Aquela frase é um aviso para outros países: chegamos e vamos instituir. Ela fez isso de fato. 

O Ministério imediatamente altera seu nome e poucos ministérios carregam “família” no nome no mundo. E ela faz outras duas coisas muito simbólicas: aquilo que era secretaria de Direitos Humanos do Ministério, vira Secretaria de Proteção Global. Que hoje tem Mariana Neris, que é uma religiosa na coordenação. E aí criou-se a secretaria nacional da família, que é onde está Angela Gandra. Ela criou 5 diretorias por temas e o objetivo principal é fortalecer a ideia de família em todas as políticas públicas de forma transversal, discutir no mercado o lugar da família, porque eles têm esse vínculo orgânico com o neoliberalismo, e a fala recente de Damares na ONU mostra bem isso porque diz da importância de flexibilizar as leis trabalhistas para a família, porque agora empregados e patrões negociam o horário de trabalho para beneficiar a família do empregado nesta visão perversa de destruição dos direitos trabalhistas conquistados. É esse tipo de visão.

Aquilo que foi um golpe aos direitos trabalhistas se apresenta como o fortalecimento da tradição familiar. Bem, também a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos já existia. Ela era responsável por coordenar dois disques: o disque 100 e o disque 180. O 180 era o disque contra a violência contra a mulher, porque a violência contra a mulher tem marco jurídico muito bem delineado no Brasil, tem formas de gestão da segurança pública e da assistência social bem delineadas, tem as promotorias da Maria da Penha nos ministérios ou violência doméstica, então é um fluxo muito mais acertado institucionalmente. Por isso ele era separado. Para o resto, nos governos anteriores, tinha que se fazer uns arremedos. O disque 100 era para “outras violências”, idoso, LGBT, crianças e adolescentes, intolerância religiosa. O que a Damares fez? Juntou tudo isso no Disque Direitos Humanos.

Transformaram o disque 100 na principal política do ministério. O que é um grande problema porque nenhuma sociedade vai conter a violência que cada vez é mais complexa no campo dos direitos, com um disque. E criaram um manual de taxonomia. Possivelmente eles, no ministério, queriam uma regularidade para escutar as denúncias e eles não estão totalmente errados. Uma vez que privatizou-se o Disque, você tem menos controle da pessoa que está escutando. Entre o que uma pessoa fala sobre violência no telefone e o que você escuta, principalmente violências que envolvem questões morais muito complexas, a gente tem quilômetros de distância. Então eles criaram um manual para normalizar a escuta das empresas privadas – porque são empresas que têm contratos temporários com o disque, é tipo um call center em que as pessoas ganham um salário mínimo pra ficar lá 12 horas. Portanto, ao fazer isso, aproveitaram para materializar projetos políticos da ofensiva antigênero.

E antes o governo escutava a denúncia e fazia um acordo com os estados de pra onde queria que enviasse esses dados, cada estado tinha uma lógica. Continua sendo assim, mas antes existiam pactos mais formalizados. Hoje isso está um pouco mais bagunçado. Eles separavam o que vem de Minas por exemplo e mandavam para o Ministério Público de Minas a pedido do estado. E em caso de violência considerada gravíssima, que envolve por exemplo tentativa de homicídio, a denúncia vai para as organizações estaduais e vai para as delegacias mais próximas da região do crime. Mas é um e-mail para o delegado. 

E aí, pra essa reorganização, tirou-se gênero de todo o tipo de violência, não existe mais a categoria taxonômica gênero. Tentativa de estupro, violência contra a mulher, não é mais violência de gênero, é violência contra a mulher. E inseriram o sintagma “ideologia de gênero” como motivação de violência, junto com orientação sexual. Então você poderia agredir alguém motivado por orientação sexual, seria o crime de homofobia. E poderia agredir alguém motivado por ideologia de gênero. E isso cria uma confusão nos dados. Porque os únicos dados que a gente tem, oficiais no país, sobre LGBTfobia vinham via disque 100. Agora essa sequência histórica acabou.

Entraram na mesma categoria? São dados que agora serão computados juntos? 

Juntos. Não vai dar pra saber o que é homofobia e o que é “ideologia de gênero”. Aparece assim motivação: orientação sexual/ideologia de gênero. Aí vem uma explicação no manual. Orientação sexual: crimes motivados por homofobia, por decisão do STF. Ideologia de gênero: crimes motivados por ideologia de gênero.

Que é o que exatamente?

Eles transformaram a “ideologia de gênero” em uma categoria taxonômica de motivação de um crime como sendo uma categoria pré-jurídica. A pessoa escuta a denúncia e tem que classificar na ficha lá na hora. E as pessoas já acham que ideologia de gênero e homossexualidade têm relação, então está tudo mesmo no mesmo pacote. Isso passou no silêncio. E existe a Secretaria da Criança e do Adolescente. Quem está à frente hoje é uma pessoa bastante religiosa igualmente. Esse secretário criou um Fórum de Violência Institucional que eles reconhecem a partir de dois marcos jurídicos: O ECA e a lei 13431 de 2017. Ela tem um artigo que fala em violência institucional, entendida como a praticada em instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar formas de revitimização. Daí pegaram essa lei e disseram “o que é violência institucional? É para o MMFDH “Ideologia de gênero” .

O professor que ensina a tal “ideologia de gênero” estaria violentando um sujeito especial”. Esse Fórum foi basicamente conservadores falando sobre os perigos disso na escola e na saúde. Aí eles falaram “nós temos um manual, então precisamos estimular pais e mães a denunciar no Disque 100 a violência que as escolas estão fazendo com suas crianças”. E começa a pipocar casos como esses da Bahia, de Resende. As perseguições acontecem há muito tempo, mas agora muda o cenário porque eles criaram um canal pré-jurídico. E eu acho que o caso de Resende exemplifica bem. O Ministério foi direto à delegacia de criança e adolescente de Resende. Como não tem fluxo pré-estabelecido, o Ministério pegou essa denúncia, que foi preenchida de forma ja a fazer funcionar esta absurda taxonomia, e entra em contato com o delegado da delegacia de criança e adolescentes de Resende. O delegado abre uma ocorrência imediatamente a partir da denúncia do Disque Direitos Humanos e organiza oitivas e ameaças intimidatórias à professora.

E uma vez que você chama diretor e professora para dar depoimento em uma ocorrência aberta por uma denúncia anônima do Disque Direitos Humanos, acabou o debate de gênero naquela escola, né? Dessa vez eles conseguiram arrumar um fluxo institucional do próprio Estado para criminalizar professores. Isso mostra a ofensiva como Política de Estado.

Fonte: Publica

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