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violência contra a mulher

“Você aguenta, você é forte”

EdCapa_Violencia obstétrica

Quando a diarista Anita* sentiu as primeiras dores naquela noite de sábado, 16 de junho de 2012, logo pensou que Gabriel* poderia chegar neste mundo antes da data prevista, que seria dali um mês. Ainda não era a hora de o seu segundo filho nascer, mas, receosa na reta final da gravidez, decidiu ir até a Casa de Saúde de Santos, no litoral sul paulista. 

Ansiedade, apreensão e até um pouco de medo atravessavam Anita naquela noite. Tinha uma série de expectativas na cabeça sobre um dia tão especial como é o do nascimento de um filho. 

Suellen, uma das quatro mulheres que se dizem vítimas, mostra os registros do seu parto

Ao chegar, foi informada de que teria de fazer o exame de toque. Na sequência, veio a confirmação de que não estava em trabalho de parto. “Eles disseram que não estava na hora e que, mesmo que tivesse, não fariam o parto porque caso precisasse de UTI não havia vaga”, lembrou Anita em entrevista à Agência Pública. “Me mandaram voltar para casa e esperar. Mas as dores estavam cada vez mais fortes.”

Eram quase 18 horas e Anita jamais poderia imaginar que aquele seria o início de uma via- crúcis que só terminaria às 2 da madrugada. Ela decidiu ir até o Hospital São Lucas, onde a médica que a acompanhou no pré-natal a atendia. Chegando lá, mais exame de toque e a negativa de que Gabriel estivesse prestes a vir ao mundo. Recebeu um pedido de exame para checar se, na verdade, estava com uma infecção urinária. O resultado foi negativo, mas mesmo assim ela recebeu uma medicação na veia.

“Fiquei em uma sala sozinha e comecei a ter muita dor. A família do pai do meu filho morava no litoral norte. Liguei para eles e decidiram me buscar. Depois que passou o efeito da injeção, comecei a ter contrações. Aí fui na recepção e falei: ‘Estou com muita dor, estou em trabalho de parto. Isso não é infecção, isso é contração’”, relata. 

Com a troca de plantão, a médica que tinha feito o primeiro atendimento perguntou a Anita se ela desejava passar por outro médico. Nem titubeou: sim. “Foi então que conheci o dr. Odir, aquele monstro”, diz com indisfarçável emoção. “Quando ele me examinou, a luva veio suja de sangue e ele falou que eu estava em trabalho de parto. Expliquei a ele que, como meu filho era grande demais [macrossomia fetal], havia a orientação da minha médica que ele deveria nascer de cesárea. Ele deu um tapa no meu ombro e disse: ‘Você aguenta, você é forte’. Foi muito abusado comigo”, conta.

Anita no corredor do prédio onde mora com seus dois filhos

Pouco antes das 21 horas, foi levada ao quarto. A família do pai da criança já estava no hospital, mas ela não teve o direito de falar com ninguém. A essa altura, as dores estavam cada vez mais fortes e, segundo relata, o médico se negava a realizar a cesariana. Para piorar, a dilatação caminhava a passos muito lentos: eram apenas 2 centímetros, sendo o cenário ideal 10 centímetros de abertura para a realização do parto vaginal.

Às 2 horas do dia 17 de junho, o médico Odir teria ido até o quarto checar a dilatação e auscultar o coração de Gabriel. Silêncio. “O coração do meu filho não bateu mais. Ele saiu me arrastando pelo braço e eu fui praticamente correndo até a sala do parto, ele me puxando com pressa. Eu não tinha dilatado quase nada. Meu filho ficou enganchado dentro de mim. O ombro direito do bebê ficou preso. A cabeça passou e o ombro esquerdo passou, mas o ombro direito ficou dentro de mim.” 

Já sem forças, o médico chamou uma enfermeira para fazer pressão na barriga de Anita e tentar expulsar a criança. A prática chama-se manobra de Kristeller, técnica que, considerada obsoleta, desde 2017 é proibida. “A mulher debruçou em cima de mim e eu dei um empurrão e falei: “Não estou aguentando”. Ele ficou desesperado na sala de parto. Para ele, eu já tinha perdido meu filho, porque não estava batendo o coração. Ele começou a me rasgar com as mãos dele. Aí eu gritei: “O senhor não vai me dar uma anestesia?’. Ele falou que não precisava e saiu rasgando a minha vagina com os dedos dele. Eu sentia meus ossos, parecia que estava tudo quebrando para o bebê passar. Eu fiquei com a minha bexiga arriada e espero até hoje para fazer uma cirurgia de reparação”, explica. 

Enrolado com o cordão no pescoço, Gabriel nasceu às 2h15 com quadro de anoxia, ou seja, quando há ausência de oxigênio. “Meu filho nasceu preto como carvão. Eu me desesperei na sala de parto e perguntava: ‘Por que meu filho não chora? Por que meu filho não chora?’”, relembra.

Gabriel foi mostrado à mãe em uma bacia plástica e ela nem sequer pode tocar no filho. Aos familiares, a equipe de saúde disse que Anita teve “um probleminha” no parto. O recém-nascido foi levado à UTI Neonatal, intubado e permaneceu por 28 dias internado. O bebê saiu do hospital com as seguintes sequelas irreparáveis: paralisia braquial, estrabismo – e dificuldade em enxergar –, quadro de epilepsia e paralisia da parte superior do braço direito, que, tecnicamente, se chama “monoplegia de membro superior”.

Gabriel mostra os seus aparelhos auditivos, uma das sequelas irreparáveis ocorridas em seu nascimento

“Hoje em dia eu tenho até medo, tenho trauma de ter outro filho. Meu sonho era ter três filhos, mas eu tenho muito medo de cair na mão de outro carniceiro, entendeu? Ele deixou sequelas, ele marcou a minha vida”, lamenta Anita.

Outro local, mesmo médico

Um hiato de mais de 130 quilômetros e oito anos separam a história de Anita e da garçonete Bruna Moraes, 31 anos. Mas uma coisa as conecta: ambas afirmam ter sido vítimas do médico Odir Sagim Junior. 

Na madrugada de 19 de outubro de 2020, por volta das 4h30, Bruna chegava à Santa Casa de Atibaia, no interior de São Paulo, em trabalho de parto e se queixando de dores. A dilatação estava evoluindo bem, com “quatro dedos e meio”, ressalta, mas havia um problema: a criança não estava encaixada, ou seja, não estava posicionada com a cabeça no colo do útero. “A médica que me atendeu logo que dei entrada no hospital foi muito carinhosa, compreensiva e conseguiu me orientar direitinho. Explicou que, de fato, minha filha não estava encaixada, mas a dilatação indicava o trabalho de parto e que a indicação naquela condição era a cesárea”, explica. 

Durante a entrevista, Bruna alternou crises de choro e frases como “me desculpe, mas estou nervosa”, “falar sobre isso dói”. Ela conta que ficou sozinha em vários momentos, tendo sido negado o direito básico a ter um acompanhante durante todo o processo de parto, e que estava perdendo bastante sangue. “Eram pelotes de sangue saindo de mim, estava me sentindo suja e pedi para trocar a camisola”, lembra. Esse teria sido o primeiro contato com o médico Odir, que, segundo Bruna, respondeu de forma ríspida. “‘Você vai se trocar para que, se você vai se sujar de novo? Fica aí, fica do jeito que você está aí’, ele disse. E eu estava, na verdade, preocupada e queria saber se havia algo de errado, mas ele foi muito ignorante”, desabafa.

A dilatação de Bruna evoluiu rapidamente e, por volta de 8h30, estava com dez dedos de abertura, espaço suficiente para um parto vaginal tranquilo. Mas a bebê estava em uma posição inadequada e a cesárea ainda seria a melhor indicação, conforme Bruna relatou à reportagem. “Quando chega nos dez dedos, você não tá mais aguentando de dor. Eu implorei por uma dipirona, para amenizar a dor. Foi quando ele veio, bateu nas minhas costas e disse: ‘Minha filha, o remédio é nascer. Vamos! Faz força aí que vai nascer’. Eu segurei, fiquei quieta e comecei a chorar. Ele falou: ‘Não adianta nada chorar’. Aquilo me subiu e eu falei: ‘Eu vou chorar porque estou sentindo dor e eu vou chorar’. Ele rebateu: ‘Não vou mais colocar a mão em você. Você é uma ignorante. Não faço seu parto’. A sorte é que havia uma enfermeira perto que viu a situação e cochichou que, se fosse o caso, ela mesma faria meu parto. Isso me tranquilizou.”

Mesmo assim, ao ser colocada em uma bola e receber massagem de dois residentes, Bruna sentia-se fraca e acabou perdendo a consciência. O médico mandou, então, aplicar glicose e continuava se negando a fazer o parto. 

Nesse momento, ela começou a exigir a presença da irmã na sala, a advogada Daniella Moraes, que é hoje sua representante no processo que pretende mover contra o médico. “Foi nessa hora que olhei pra minha irmã e falei: ‘Não estou mais aguentando, vou morrer aqui dentro’.”

Bruna nos corredores da casa de sua irmã, Daniela, que é testemunha de como ocorreu seu parto

Por volta de 10h40, a enfermeira examinou Bruna, já com a bolsa estourada, detectou que o colo do útero estava fechado ainda. Segundo o relato da vítima, ela abriu o espaço com os dedos. “Imagina a dor que eu senti! Por outro lado, ainda bem que ela fez isso, porque senão minha filha ia morrer dentro de mim. Eu ia sentindo mais forte a contração e ele [o médico] passando bufando de um lado para o outro. A enfermeira falou: ‘Vai nascer’. Não sei explicar, prefiro dizer que foi Deus: a Laura virou e encaixou. Aquela hora eu achei que fosse morrer”, interrompe o relato por um instante e desaba a chorar. “Eu gritava pra minha irmã: ‘Daniela!’, porque eu queria que ela entrasse na sala de parto para segurar minha mão. Eu não estava mais aguentando. A Laura saiu morta de dentro de mim. Sou mãe, eu sei, eu senti.” 

Daniela, que testemunhava tudo, tentou se manter calma, mas conta que a bebê saiu desacordada. “Eu me lembro que eu olhei e o corpo tava todo mole. Eu pensei: ‘Tá morta’”, relata. Assim como Gabriel, filho da Anita, Laura, filha da Bruna, também nasceu com um quadro de ausência de oxigênio. Mas não teve sequelas como o menino. “Pelo menos até agora, com 1 ano, ela aparenta ser normal. Mas a realidade é que só saberemos mesmo acompanhando mês a mês. Eu nunca vou entender e nem me conformar. Tive uma gestação saudável e aí tudo isso aconteceu. Eu não consegui amamentar. Veja como mexe com a cabeça essas coisas”, avalia. 

Foi também na Santa Casa de Atibaia, só que um ano e meio antes, em 18 de março de 2019, que Marcela Cavallari, 29 anos, chegou cheia de expectativas para o nascimento do filho, Theo. Mas a realidade, conforme seu relato, foi de horror: Marcela conta que, na sala de parto do hospital, foi amarrada e teve desrespeitado o desejo de realizar parto vaginal. O médico que prestava atendimento, segundo Marcela, era Odir Sagim Junior. 

Marcela, que afirma ter sofrido violência obstétrica, organiza uma denúncia coletiva

“Ainda na sala de pré-parto, o médico se comunicou de forma desrespeitosa e abusiva comigo e com as outras gestantes. Ele falava coisas como: ‘Olha pra mim enquanto eu tô falando!’, ‘Eu tô mandando!’; ‘Isso é falta de educação!; ‘Não grita’. Fez vários exames de toques brutos e desnecessários. A cada 20 minutos, ele entrava na sala e fazia o toque. Nas últimas duas horas de trabalho de parto, o médico começou a me apressar. Só ele tinha essa pressa. Não eu, não o meu bebê”, conta Marcela. 

Após o ocorrido, Marcela enviou uma carta ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) relatando o sofrimento por que passou. No documento, ela destacou que a Lei Federal nº 11.108, de 7 de abril de 2005, mais conhecida como a Lei do Acompanhante, também foi desrespeitada nas dependências do hospital. “Eles tentaram impedir meu companheiro de passar a noite comigo, dizendo que só poderia ser uma mulher acompanhante. Somente depois de apresentar a lei e discutir na recepção, foi liberada sua entrada com o argumento de que ‘entraria porque conhecia de lei’. As outras mulheres relataram o mesmo problema, todos os acompanhantes eram barrados na entrada”, afirma.

O Cremesp arquivou a denúncia e, em nota, informou que “nenhuma denúncia é arquivada sem justificativa. O arquivamento ocorre quando não há provas consistentes, mas pode ser reaberta a qualquer momento havendo novos fatos a serem apurados”.

“Trauma para o resto da vida”

A vida da vendedora Suellen dos Santos Machado, 21 anos, também teria sido atravessada pelo médico Odir Sagim Junior na Santa Casa de Atibaia. De gestos delicados, cabelos longos, negros e lisos, a mãe de primeira viagem conta que o incômodo aconteceu logo que começou a ser atendida, no dia 22 de abril de 2019. Acompanhada de uma doula, mostrou o seu plano de parto, mas afirma que foi ignorada. “Ele simplesmente olhou e falou que para ele aquilo não era nada, que ele trabalhava há 36 anos e ia ser do jeito dele. Ele chegou a dizer que ia me respeitar, mas isso não aconteceu. Na hora do parto em si, assim que eu cheguei na sala, ele disse: ‘Bom, até agora foi tudo bagunçado do seu jeito, agora vai ser do meu jeito. Ele pediu para eu deitar. Eu estava segurando a mão do meu esposo, ele disse que não podia, que eu tinha que segurar na peneira e colocar a cabeça no queixo e fazer força”, relata Suellen.

Quando a filha dela estava saindo, as contrações diminuíram e, já sem força, Suellen temeu que a criança ficasse presa nela. “Ele olhou e falou: ‘Põe o soro, senão a gente vai perder ela’. E aí ele pôs o soro em mim para vir a contração, e aí veio. A minha nenê nasceu fria, ela nasceu gelada. Eu não ouvi o choro dela, ela não pode ficar no meu colo. Ela saiu de mim e foi direto para um bercinho.” 

Suellen relata ter sofrido laceração, mas afirma que nada foi explicado a ela, e, durante a sutura, feita sem anestesia, mal soube quantos pontos estava levando. 

“Eu senti tudo, foi uma dor horrível, uma das piores coisas que eu já senti na vida. Eu lembro o momento da agulha entrando e saindo, foi muito doloroso. É muito difícil até de falar, de lembrar. Depois, para tirar minha placenta, ele deu dois socos na minha barriga e colocou a mão dentro de mim, puxou da forma mais bruta possível. E aí ele ainda disse que tinham sobrado membranas, enfiou o braço, girou, tirou o que sobrou… É uma coisa que era para ser linda, mas foi horrível”, lamenta. “É traumatizante até querer ter outro filho, passar por tudo isso de novo. É um trauma que você leva para o resto da vida”, conclui Suellen. 

Suellen relatou que os primeiros três meses com sua filha foram os meses mais difíceis, pois acredita ter sofrido de depressão pós parto

Os números da violência obstétrica

Os relatos de Anita, Bruna, Marcela e Suellen apontam que teriam sido vítimas de violência obstétrica, que, por definição, é “toda conduta ou omissão realizada pela equipe de saúde, de maneira direta ou indireta, no âmbito público ou privado, caracterizado pela ‘apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos pelo profissional de saúde expressa por um atendimento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, resultando em perda de autonomia e a capacidade de decidir livremente sobre o seu corpo e a sua sexualidade, afetando negativamente sua qualidade de vida”. A pesquisadora Tatiana Leite, doutora em saúde coletiva, professora e pesquisadora  do Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), observa que essa definição foi construída ao longo do tempo pela sociedade civil e movimentos que defendem os direitos da mulher. Há duas outras definições, consideradas um pouco mais técnicas, que são de Bowser e Hill (2010) e Borhen (2016). Esta última traz sete dimensões como “violência física, abuso sexual, abuso verbal, falha na comunicação com a equipe de saúde, estigma e discriminação, falha na oferta de cuidados qualificados e inadequação do serviço de saúde”.

É importante frisar que, embora médicos e enfermeiros sejam os perpetradores mais comuns desse tipo de violência, qualquer profissional da equipe de saúde, incluindo até mesmo a pessoa que recepciona a mulher grávida, pode ser considerada uma agressora. 

No Brasil, há três pesquisas sobre o tema, todas, no entanto, antigas e com bases e amostras diferentes. O levantamento da Fundação Perseu Abramo, realizado em 2010, aponta que uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica. Já o estudo “Nascer no Brasil”, realizado em 2012 e considerado a mais abrangente pesquisa sobre o tema, indica que 45% das gestantes atendidas pelo SUS no parto são vítimas de maus-tratos. No total, 36% das mães passam por tratamento inadequado. E, apesar de todas as pessoas gestantes (incluindo homens transexuais) estarem sujeitas a maus-tratos, há um grupo de risco. São as negras, pobres, grávidas do primeiro filho, adolescentes e que entram em trabalho de parto. E, por fim, há a Corte de Pelotas, que fez um estudo de 4.000 mulheres que deram à luz de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2015 na cidade do interior do Rio Grande do Sul – 18,5% relataram ter sofrido algum tipo de violência obstétrica.

“Com certeza, há uma subnotificação. Mas há algo importante e que é pouco falado. As situações de abortamento. As mulheres [que sofrem violência] em parto, a gente tem alguma noção. Mas as mulheres em situação de abortamento, não temos nenhuma. Porque as definições de violência obstétrica e os questionários não incluem essas mulheres. Uma mulher que chega a um centro de saúde em um quadro de aborto é a última a ser atendida, porque as pessoas presumem que ela pode ter provocado aquela situação e por isso não merece atendimento”, explica. “Sem contar a violência verbal, por exemplo, de julgar essa mulher, de falar ‘vou te denunciar para a polícia’”, continua a pesquisadora. Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo, 53% das mulheres em situação de abortamento sofreram violência obstétrica.

Um tipo de violência obstétrica muito comum na América Latina é a episiotomia (aquele corte feito na vagina para ajudar a passagem do bebê) indiscriminada. O procedimento é indicado como último recurso e, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), deve ser usado em cerca de 10% a 15% dos casos. Contudo, é praticado em mais de 90% dos partos vaginais da América Latina, de acordo com dados divulgados pela Fundação Artemis.

Tatiana Leite observa que a probabilidade de sofrer violência obstétrica é diferente entre as mulheres e aponta para os chamados fatores de risco, observados em pesquisas. A prevalência de mulheres atendidas no sistema público de saúde sofrerem violência é de 45,1%. No sistema privado, é de 30,2%.

“Ter ou não um companheiro também impacta no risco de violência obstétrica. Nesse caso, até mesmo o acompanhante. A pessoa acompanhar todo o processo de parto protege essa mulher que está numa situação de bastante vulnerabilidade”, pontua a pesquisadora. 

Uma pesquisa mais recente que ouviu 10,5 mil mulheres que tiveram seus bebês em 626 maternidades públicas, realizada pela Fiocruz e Universidade Federal do Maranhão (Ufma) em 2017, mas divulgada só este ano, aponta alguns avanços. O índice de episiotomia, por exemplo, caiu de 47%, em 2011, para 27%, em 2017; o da manobra de Kristeller, de 56% para 15%. E a taxa de mulheres que tiveram o direito ao acompanhante no parto passou de 30% para 85%. Cabe destacar, contudo, que duas de nossas personagens tiveram seus filhos depois do período pesquisado e relatam ter sido vítimas dessas práticas. 

As sequelas

“Nas entrevistas, a gente nota que, seja cesárea ou parto vaginal, a probabilidade de sofrer de depressão pós-parto aumenta após a violência obstétrica. E essa mãe tem que estar não apenas fisicamente, mas psicologicamente bem para cuidar dessa criança. A outra consequência bastante comum é que a mulher, especialmente a que sofreu a violência no setor público, não vai àquela visita ao médico que você tem que fazer uma semana, 15 dias depois, para avaliar como estão indo as coisas, como está o bebê. Elas não voltam ao posto de saúde, e isso é muito preocupante, porque é nesse serviço que você vai falar da vacinação, sinais e sintomas para ajuda médica, incentivo à amamentação, se ela está tendo alguma dificuldade e planejamento familiar. Tudo isso é feito na atenção básica pelo SUS”, explica a pesquisadora Tatiana Leite.

A reportagem encontrou outros três casos que estão tramitando na Justiça envolvendo o mesmo médico. Um caso ocorreu em 2013, no Hospital Ana Costa, na Baixada Santista, em que a paciente teve perfuração da bexiga e acabou ficando incontinente; o outro, em julho de 2017, também em São Vicente, quando o médico, segundo relatado em processo judicial, teria dito à paciente “Saia daqui, sua vadia” e negado atendimento, mesmo havendo relato de dores e sangramento; e um terceiro caso ocorrido entre o final de novembro e início de dezembro de 2019, na Fundação de Saúde do Município de Americana (Fusame), onde teria sido negligenciada a necessidade de realizar um parto emergencial e o bebê morreu ainda no útero da mãe. Essas pacientes foram procuradas pela reportagem, mas optaram por não falar.

A dívida de gratidão

A demora em entender exatamente a agressão sofrida se dá por algumas razões. Uma delas, segundo a pesquisadora Tatiana Leite, é o que ela define como “dívida de gratidão”. “Aquela história de a mulher olhar que está bem e que o bebê está bem, e nada mais importa. Ela não quer dar ouvidos para outras coisas, ela só quer ir para a casa em segurança. A outra dimensão é ela não se perceber violentada. Existe o fato de o serviço ser gratuito e elas pensarem que os profissionais estão fazendo um favor a elas. E tem desconhecimento mesmo. Por exemplo, a questão da episiotomia, que é uma violência, mas nem todas as mulheres veem isso como um ato violento. Uma vez perguntei, durante uma pesquisa, se tinham feito o corte e a paciente disse em tom de crítica: ‘Não fizeram nada em mim, tive que parir meu filho sozinha’. Ela tinha o conceito de que a episiotomia era positiva, mesmo isso não sendo verdade.”

Por outro lado, o resultado da Justiça nem sempre é o esperado. Isso pode trazer frustrações para a vítima e desencorajá-la de lutar por reparação. Um exemplo é o caso de Anita, personagem que abre a reportagem e que, em abril de 2015, entrou com uma ação pedindo indenização de R$ 209.608,00 contra o hospital e o médico Odir Sagim Junior, além de uma cobertura vitalícia das custas necessárias para tratar o filho, que ficou com sequelas.

Em 7 de  novembro de 2019, o promotor Carlos Alberto Carmello Junior considerou procedente o pedido de indenização por responsabilização compartilhada do Hospital São Lucas, da Casa de Saúde de Santos e do médico Odir Sagim Junior. Em 13 de fevereiro do ano passado, a Justiça de São Paulo considerou a ação “parcialmente procedente”. 

Para a juíza Thais Caroline Brecht Esteves, a responsabilidade objetiva é do Hospital São Lucas, mas não do médico nem da casa de saúde. Ela condenou a instituição ao pagamento de indenização em 100 salários-mínimos por danos morais, reparação dos danos materiais, bem como pagamento de plano de saúde e um salário-mínimo até o filho de Anita completar 14 anos.

Apesar dos reveses, Marcela Cavallari defende que a denúncia precisa ser feita e as tentativas de reparação também. Até por isso, ela se tornou militante da causa no coletivo Poder Popular de Atibaia. “Não existe outro momento mais íntimo da vida da mulher do que o parto. Sendo que você está ali totalmente exposta, se sentindo invadida, não se sentindo acolhida”, pontua. E, para ela, por tudo isso, a violência obstétrica não pode ficar impune. Com outras companheiras, uma delas que também se diz vítima, Silvana Cotrim, que hoje defende a causa no Coletivo Negra Visão, prepara uma ação coletiva para buscar responsabilizar criminalmente o médico Odir Sagim Junior.

Silvana Cotrim, no Quilombo Negra Visão, espaço que cedeu para realizar as reuniões com as vítimas de violência obstétrica

Essa denúncia foi construída a partir de um encontro de mulheres que relatam ter sofrido violência obstétrica em diferentes momentos das suas vidas, e que passaram a se mobilizar coletivamente. Marcela começou a juntar relatos a partir de uma publicação no Instagram em que conta o acontecido sem citar o nome do médico, e diversas mulheres comentaram dizendo saber quem seria ele – pois conheciam histórias parecidas com a da Marcela, na mesma Santa Casa.

Silvana e Marcela estão reunindo todos os relatos que chegaram, concentrando os prontuários e seus documentos para protocolar a denúncia no Ministério Público. “A gente sabe que a Justiça é bem demorada, então não temos uma previsão de quando sairá este processo, mas entraremos via Ministério Público. Só nos falta uma assessoria jurídica presente neste processo”, relata Marcela.

“No Brasil, a gente não tem uma lei federal que defina os atos e penalidades para o profissional que comete violência obstétrica. O que a gente tem são algumas leis estaduais. Então, o primeiro passo é instituir uma lei, porque, se você não tem isso, você não tem nada”, explica Tatiana Leite.

Em 3 de maio de 2019, o Ministério da Saúde chancelou o Ofício nº 017/19 – JUR/SEC, que considerava “inadequado” e abolia o uso do termo violência obstétrica. “Levou tanta crítica que eles acabaram voltando atrás. Mas a resolução inicial é horrível, um soco no estômago, e teve aprovação do Conselho Federal de Medicina (CFM), que disse que o uso do termo agride a comunidade médica, de modo mais direto ginecologistas e obstetras. Quando você tem um Conselho Federal fazendo isso é complicado, porque os casos caem dentro dos conselhos.” O silenciamento das vítimas e a dificuldade de conseguir uma reparação acabam contribuindo para que a violência obstétrica continue ocorrendo em todo o país. 

Marcela e Silvana encampam uma luta de conscientização sobre a prática na cidade de Atibaia e, atualmente, pressionam pela aprovação de um projeto de lei de autoria da vereadora Ana Paula Borghi (PTB), que se sensibilizou com a causa. No texto, Ana Paula define quais as condutas que podem ser enquadradas em abuso ginecológico e prevê punições, além de proteção à vítima. 

Existem algumas legislações e iniciativas estaduais que preconizam o combate a essa violência. O estado do Amazonas é pioneiro nisso, tanto que, no final de 2019, o Comitê de Enfrentamento da Violência Obstétrica no Amazonas recebeu o Selo de Prática Inovadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Coordenado pelo Ministério Público Federal, o comitê é composto por diversas instituições, entre elas a Universidade Federal do Amazonas (Ufam). 

Há outros movimentos em outras partes do país, como a campanha do Ministério Público de Santa Catarina para conscientizar mulheres sobre a violência obstétrica. Outra iniciativa é o projeto Capacitação e Informação no Combate à Violência Obstétrica, posto em prática no Mato Grosso do Sul por uma equipe de defensoras públicas e assistentes sociais. No começo do ano passado, o projeto recebeu o prêmio Innovare, que tem apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Na premiação, a defensora pública Thais Dominato resumiu bem a importância de quebrar o silêncio e, sobretudo, da informação. “Vemos muitas mães recomendando às filhas grávidas para não gritar durante o parto para que não sejam maltratadas. E vemos que, quando as mulheres têm acesso à informação, elas passam a reconhecer essas condutas como abusivas e saem das rodas de conversa com mais conhecimento e mais empoderadas”, declarou.

O que dizem os envolvidos

Tentamos encontrar, sem sucesso, o médico ginecologista obstetra Odir Sagim Junior, CRM ativo nº 136851, de várias maneiras. Em buscas na internet por um telefone ou endereço eletrônico, muitas vezes o profissional aparece em catálogos médicos, sem contudo oferecer nenhum contato. Em um de seus registros online, o seu endereço comercial e contato aparecem vinculados ao Hospital Santo Amaro, de Guarujá. Contudo, em contato com a assessoria de imprensa da instituição, fomos informadas de que Odir não pertence ao corpo médico do hospital e nunca ouviram falar em seu nome. 

A Santa Casa de Atibaia, citada nos relatos de algumas das nossas personagens, confirmou que o profissional é prestador de serviços em regime PJ do hospital. Procuramos os dados da empresa de Odir e tentamos contato pelo e-mail que consta no cartão de CNPJ. É da empresa que cuida da contabilidade. Solicitamos ajuda para conseguir algum contato com Odir, mas não obtivemos retorno.

O advogado Tiago Augusto da Silva, que aparece como representante legal de Odir nos processos aos quais tivemos acesso para fazer a reportagem, consta como cadastro ativo na OAB-SP. No registro, há um telefone fixo que seria de Tiago, contudo, ele não atendeu nenhuma das dez ligações feitas pela reportagem em dias diferentes na última semana. Com a assessoria de imprensa da OAB-SP, obtivemos dois outros contatos: um número de celular e um e-mail. A ligação não completa e o e-mail não existe.

Entramos em contato também com a Santa Casa de Misericórdia de Atibaia. A secretária da direção informou que o diretor solicitou o agendamento de uma conversa online para às 8h30 do dia 1º de dezembro, uma quarta-feira, sem, contudo, informar o nome do profissional. Na data e hora marcadas, ele não apareceu. Em novo contato, fomos informadas de que o diretor exigiu que o encontro fosse presencial. As repórteres explicaram que havia limitações de agenda e não poderiam naquele momento.

As três alternativas que demos para a entrevista com a direção da Santa Casa – e-mail, telefone ou videoconferência – foram rejeitadas sem nenhuma justificativa.

A Casa de Saúde de Santos, que prestou o primeiro atendimento a Anita, declarou, em nota, “que o atendimento mencionado foi objeto de ação judicial, no qual o hospital foi inocentado, sendo o atendimento considerado correto e dentro dos padrões de excelência em prestação de serviços médico-hospitalares”.

Procuramos também a assessoria do Hospital São Lucas, onde um dos casos ocorreu, para saber se queriam se pronunciar sobre os episódios ou mesmo sobre a atuação do médico, mas, até o momento do fechamento desta reportagem, não houve retorno. 

Fonte: Publica

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