Depois de uma vida dedicada à plantação de fumo, o agricultor Ivo Wolter, de São Lourenço do Sul (RS), sofre para executar tarefas simples, do dia a dia, como assinar documentos e servir-se de uma xícara de café. Na agricultura desde os 16 anos, aos 50 foi diagnosticado com polineuropatia, uma doença neurológica irreversível, que o deixou incapacitado para trabalhar pelo resto da vida. Hoje suas mãos tremem, o corpo dói e a força dos braços, demandada de domingo a domingo nas lavouras de tabaco, não existe mais.
Impossibilitado de sustentar a família por sua condição de saúde, Ivo Wolter recebeu em agosto do ano passado uma boa notícia: ele ganhou na primeira instância da Justiça do Trabalho uma indenização contra a Universal Leaf Tobacco, que terá de pagar ao agricultor pelo quadro de adoecimento e pelos anos em que não pôde trabalhar. A decisão judicial aponta que a empresa da indústria do cigarro seria responsável pelo desenvolvimento da doença que, segundo perícias e laudos médicos, foi causada pelo uso prolongado de agrotóxicos.
Desde que começou a se sentir mal e recebeu o diagnóstico da polineuropatia, que afeta os nervos periféricos do corpo e causa falta de sensibilidade e atrofia muscular, os sintomas foram associados à exposição contínua aos agrotóxicos na lavoura. No cultivo de tabaco, há aplicação em múltiplas etapas do plantio, nas folhas e no solo. Após quase 20 anos de contato diário com os produtos químicos – utilizados por exigência das empresas que compram as folhas –, Ivo manifestou uma intoxicação crônica.
Desde 1992, quando plantou os primeiros pés de tabaco em sua propriedade, Ivo havia se dedicado exclusivamente à fumicultura – cultivo comum na região, que garante o sustento de grande parte da população rural de São Lourenço do Sul e outros municípios vizinhos. “Se estivesse bem de saúde, estaria trabalhando até hoje”, diz o agricultor, de 61 anos, ao receber a Agência Pública em sua casa, numa tarde de muita chuva em agosto de 2021. “É como um jogador de futebol que joga num time e se machuca. Outro time não vai te pegar. Ninguém vai querer um cara doente. Eu não tenho alternativa.” Ivo e a esposa, Leani Erhart, de 56 anos, falam pouco e em um sotaque carregado de quem ainda conversa em alemão na intimidade da casa.
Ivo sempre vendeu tabaco para a mesma empresa, a Universal Leaf Tobacco, sob as regras do sistema integrado de produção que marca a relação entre a indústria e os fumicultores. Firmava contratos anuais de compra e venda, plantando exatamente conforme as exigências, sob pena, ele diz, de não ter o seu produto comprado. O sistema de produção integrada da fumicultura não autoriza o agricultor a escolher como plantar: cada fumicultor deve seguir uma receita agrícola definida pela fumageira, utilizando os fertilizantes e agrotóxicos que a compradora define.
Na lavoura de Ivo, como ocorre com a maioria dos fumicultores, por muitos anos a aplicação de agrotóxicos foi feita de forma manual, sem equipamentos de proteção ou assistência técnica. Apenas em 2010, conta o agricultor, houve orientações mais sistemáticas relacionadas a medidas de proteção e estocagem das embalagens dos produtos químicos. Foi quando Ivo começou a sentir os sintomas da polineuropatia. Os cuidados haviam chegado tarde: ele já tinha desenvolvido a intoxicação crônica. O mínimo contato com a plantação de fumo fazia seu corpo mostrar os sinais do adoecimento: tremores nas mãos e nos braços, dores e cansaço físico.
Na primeira consulta, ele foi diagnosticado “com polineuropatia axonal, cuja etiologia pode ser relacionada à exposição prolongada em condições ocupacionais a diversos tipos de agrotóxicos”. Recebeu recomendação médica por escrito para “evitar exposição aos agrotóxicos” – o que na prática já inviabiliza o trabalho nas lavouras. Nas consultas seguintes, com neurologista, foi considerado “incapacitado para trabalhar”, condição confirmada por perito do INSS que lhe concedeu, já em 2010, auxílio-doença.
Em cada laudo, o médico responsável fazia a relação entre o seu adoecimento e o uso continuado de agrotóxicos. “A neuropatia motora axonal deve estar relacionada a agrotóxicos (por isso não deve haver contato)”, escreveu em 2011. “A hipótese de fator etiológico vem de agrotóxicos a que esteve exposto”, anotou em 2016.
Ao longo de quase duas décadas no plantio de tabaco, Ivo usou ao todo 21 tipos diferentes de produtos químicos, um deles “altamente tóxico” e quatro “extremamente tóxicos”, o nível mais alto segundo classificação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Com a doença neurológica e o afastamento do trabalho, logo veio o diagnóstico de depressão: desde 2010 Ivo faz uso contínuo de três medicamentos, dois para controlar a polineuropatia, um para a depressão (amitriptilina), num total de oito comprimidos todos os dias. “Não é para melhorar”, diz o agricultor, repetindo o que já lhe foi dito em consultas médicas. “É para ficar do jeito que está.”
Doente por “sua exclusiva culpa”
Sem condições de trabalho, Ivo foi buscar auxílio na Justiça do Trabalho. Representando o agricultor, em julho de 2019, uma dupla de advogados de São Lourenço do Sul sem experiência na área trabalhista, ajuizou uma ação pedindo a responsabilização da Universal, uma das maiores empresas da indústria de cigarro do mundo, pela doença ocupacional e o pagamento de uma série de indenizações.
O processo documenta cronologicamente a deterioração do quadro de saúde de Ivo. Se em 2010, quando foi diagnosticado com a polineuropatia, laudos apontavam sintomas iniciais, em 2016 os laudos mostram uma doença em “evolução crônica”, “com manutenção contínua com analgésicos específicos” e sem “possibilidade de alteração do quadro”. Dezoito laudos neurológicos entre 2010 e 2018 e dezoito perícias do INSS chegaram à mesma conclusão: Ivo não tinha como trabalhar.
Com base em diagnósticos médicos, atestados, receitas, resultados de exames e cópias das perícias, os advogados de Ivo buscaram provar que a Universal Leaf Tobacco tinha responsabilidade pelas condições de saúde irreversíveis do agricultor. No processo completo, que soma quase 2 mil páginas, estão anexados também contratos entre o trabalhador e a empresa, recibos de compra de insumos e equipamentos e notas fiscais de venda de safras, a fim de comprovar a relação comercial exclusiva do agricultor com a Universal desde 1992.
A defesa da Universal, na contestação apresentada por seus advogados, acusou “a fantasiosa construção criada pelo demandante” e afirmou que, se Ivo “efetivamente sofreu intoxicação com os produtos utilizados na lavoura ou a sua aplicação veio a agravar situação preexistente […], isto aconteceu por sua exclusiva culpa, pois ignorou as instruções que lhe foram repassadas, agindo em desconformidade com as orientações recebidas, criando a situação de risco”.
Para apurar a condição de saúde do agricultor, a Justiça determinou que fosse realizada uma perícia médica em outubro de 2019, em Porto Alegre. Ivo viajou sozinho à capital gaúcha, distante 200 km de São Lourenço do Sul. Quando chegou para se submeter aos exames, o agricultor se deparou com mais um médico, além do perito judicial: a Universal havia contratado um médico assistente para acompanhar a perícia. O agricultor teria direito a levar um médico assistente também, mas não tinha como pagar.
A perícia feita em Porto Alegre resultou em um laudo que contrariava os diagnósticos anteriores, apontando que os indícios para ligar a polineuropatia ao uso de agrotóxicos eram “pobres” e “possivelmente inexistentes”, não havendo nexo causal entre a “injúria neurológica e as atividades profissionais executadas”. Ao contrário do que os médicos consultados por Ivo afirmavam, o neurocirurgião responsável pela perícia concluiu que a sua patologia era “leve” e sem sequelas físicas que acarretassem incapacidade laboral.
O laudo, muito diferente de todos os outros diagnósticos feitos até então, surpreendeu os advogados do agricultor. “Acho que foi nessa hora que a gente percebeu que estava numa briga contra uma empresa grande mesmo. Que tinha mais estrutura que nós”, conta Lívia Duarte, advogada de Ivo.
Mesmo pensando que o caso estaria perdido, os advogados do agricultor solicitaram, sem expectativa, uma perícia agronômica na propriedade, com o objetivo de caracterizar as condições de trabalho de Ivo e documentar o uso combinado dos agrotóxicos na lavoura. Onze meses depois da perícia médica, o engenheiro agrônomo designado pela Justiça foi até o local e detalhou passo a passo as etapas do cultivo de fumo. Na segunda perícia, mais uma vez a fumageira mandou um perito próprio para acompanhar os trabalhos. “Ficou aquele constrangimento para o Ivo, uma certa pressão, sabe?”, comenta a advogada. O laudo técnico foi concluído e entregue à Justiça em outubro de 2020.
Além das perícias, foram ouvidos um representante e dois instrutores técnicos da Universal. Da parte do agricultor, além do seu próprio depoimento, foi ouvida uma única testemunha. Segundo Ivo, nenhum vizinho de fumicultura aceitaria depor por medo de represálias das fumageiras. Neice Muller Xavier Faria, médica que o examinou enquanto fazia uma pesquisa sobre efeitos dos agrotóxicos na saúde de trabalhadores rurais, em 2010, explicou no depoimento que, “mesmo não havendo quadro clínico agudo, a pessoa pode continuar trabalhando e desenvolvendo o problema de intoxicação”. A médica, que foi a primeira a avaliar o agricultor, testemunhou “que os tratamentos neurológicos são muito limitados, principalmente se seguem tendo exposição [aos agrotóxicos], e com o tempo viram uma sequela permanente”.
Fumageira é condenada
Quando a Pública esteve em São Lourenço do Sul, na última semana de agosto de 2021, vivia-se a expectativa da sentença. Nas semanas seguintes, apesar do laudo médico desfavorável, o conjunto de provas anexadas e a perícia agronômica se mostrariam decisivas para a primeira vitória do agricultor na Justiça do Trabalho.
No dia 31 de agosto, a juíza Adriana Moura Fonseca, da Vara do Trabalho de São Lourenço do Sul, deu ganho de causa a Ivo Wolter, condenando a Universal a pagar indenização por danos materiais e morais no valor de R$ 191.309,55. As provas apresentadas, somadas ao laudo técnico e aos depoimentos, foram “elementos suficientes para afastar a conclusão da perícia médica” e caracterizam, segundo a juíza, “a responsabilidade da reclamada quanto à doença desenvolvida pelo reclamante pelo uso contínuo e prolongado dos agrotóxicos por ela indicados”.
Para fixar a condenação, a juíza considerou que, “evidenciado o mal ocasionado pela exposição aos agrotóxicos”, Ivo seria obrigado, por sua condição de saúde, a procurar ocupação fora do cultivo de tabaco. Contando mais de 60 anos e tendo a agricultura como sua única atividade ao longo da vida, torna-se muito “difícil sua recolocação no mercado de trabalho”. “A reclamada não pode dispor dos trabalhadores rurais como se máquinas fossem, que devem apenas servir ao interesse de lucro da ré independentemente das condições a que expostos”, escreveu a juíza nas disposições finais da sentença. Atualmente, o processo segue tramitando na Vara de São Lourenço do Sul. O julgamento dos recursos será no TRT-4, em Porto Alegre.
“Um desastre completo”
Casos de ações individuais contra a indústria do tabaco, como a de Ivo Wolter, não são comuns na Justiça do Trabalho, de acordo com a procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho no Paraná (MPT-PR), Margaret Matos de Carvalho, que investiga o setor desde quando recebeu, em 1998, a primeira denúncia de trabalho infantil nas lavouras. De lá para cá, soma anos de inquéritos, ações civis públicas e audiências voltadas para a cadeia produtiva do fumo.
Segundo a procuradora-chefe do MPT-PR, múltiplos fatores explicam a raridade de processos trabalhistas contra as fumageiras. Historicamente, trabalhadores rurais buscam pouco a Justiça do Trabalho. A procuradora cita o quanto é difícil para alguém que vive em áreas isoladas da zona rural, com pouca escolaridade e, no caso da fumicultura, problemas graves de saúde, enfrentar as experiências de uma ação judicial, passar por perícias, entrar numa sala de audiência e ser questionado. “A sensação que eu tenho quando converso com essas pessoas [agricultores] é que elas sentem que estão fazendo alguma coisa errada. Não estão ali buscando o direito delas – estão é arranjando confusão.”
Os juízes do Trabalho de municípios agrícolas da região Sul, onde se concentra a produção de tabaco do país, também não estão acostumados a julgar ações trabalhistas mais complexas, e o mesmo vale para os escritórios de advocacia desses pequenos centros: há poucos preparados para fazer boas ações trabalhistas, defender os fumicultores e conseguir reparações justas para essas famílias, aponta a procuradora-chefe. “Nós precisaríamos ter uma rede popular de advogados atendendo a área rural.”
As empresas, ao contrário, têm à disposição grandes escritórios especializados e uma capacidade financeira de defesa muito maior. O resultado é um desequilíbrio que permite à indústria criar toda a sorte de empecilhos quando é ré em um processo, protelando a tramitação e exercendo pressões diretas e indiretas sobre os agricultores, aponta Margaret de Carvalho.
A procuradora-chefe do MPT-PR cita um caso “emblemático” do Paraná, o da agricultora Lídia Maria Bandacheski do Prado — contamos seu caso na primeira reportagem desta série. Desde 2015 Lídia move um processo contra a Alliance One, fumageira para a qual sempre plantou e vendeu tabaco. Seis anos depois do início da ação, com o quadro de saúde agravado, o processo não saiu da primeira instância, numa série de idas e vindas e entraves processuais. “É um desastre completo”, diz Margaret.
“Técnica de terror”
No Brasil, não há ainda jurisprudência em ações trabalhistas voltadas para a indenização de fumicultores. Ou seja, a Justiça ainda não possui uma interpretação consolidada sobre os casos de agricultores que desenvolveram doenças como consequência das condições de trabalho impostas pelas empresas do cigarro.
Nos casos em que ações trabalhistas contra as fumageiras chegam, depois de anos de tramitação, a condenações em tribunais regionais, as empresas exercem seu poder financeiro e propõem acordos de conciliação, prontamente homologados pela Justiça do Trabalho. Com a estratégia, evitam a criação de precedentes contra elas próprias. Nessas situações, os agricultores e seus advogados veem-se diante da escolha entre seguir com um processo longo e emocionalmente custoso, sob o risco de perder em uma instância superior, e aceitar a indenização que encerra imediatamente a causa.
“É uma técnica de terror, se a gente for pensar bem”, afirma a procuradora-chefe do MPT-PR. “Você pode perder tudo, inclusive o que já ganhou. Não é melhor garantir o que está aí na mão?”
A advogada Vânia Moreira Santos passou por essa situação ao defender durante 12 anos, de 2002 a 2014, um fumicultor de Imbituva (PR) com polineuropatia em decorrência de intoxicação por agrotóxicos. No processo, as instâncias de primeiro e segundo grau deram ganho de causa ao agricultor, reconhecendo a responsabilidade da fumageira Universal pelo desenvolvimento da doença neurológica.
Após recursos da empresa, o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde foi anulado sob alegação de que a competência legal, a partir de 2005, seria da Justiça do Trabalho, e não mais da Justiça Comum. Com o agricultor desesperado pela demora de mais de uma década sem resolução, a Universal propôs um acordo, no valor de R$ 540 mil, aceito em 2014.
Entre os poucos processos relacionados à fumicultura no Rio Grande do Sul, existe ainda outra ação em que foi firmado acordo entre uma fumageira e um agricultor. Em um caso parecido com o de Ivo Wolter, um agricultor de um município vizinho de São Lourenço do Sul moveu uma ação trabalhista contra a Alliance One em 2009, pedindo indenização por dano material e adoecimento causado pelo trabalho. Após cerca de sete anos de tramitação, firmou-se um acordo entre as partes, encerrando o processo, no valor de R$ 180 mil.
Revisando a documentação do processo a pedido da Pública, o juiz do Trabalho Luiz Carlos Pinto Gastal, que julgou essa ação trabalhista em primeiro grau, ressalta a demora da tramitação e o volume de perícias, sete ao todo, e avalia como “muito desproporcionais os meios e os recursos à disposição das defesas de cada uma das partes envolvidas”.
Em 29 anos como juiz do Trabalho, boa parte em regiões que estão entre as principais produtoras de tabaco no país, e com “vistas em milhares de processos”, Gastal conta que viu muito poucas, “quase nada”, ações referentes à fumicultura. A respeito dos acordos, o juiz afirma que a construção de uma solução negociada está dentro da legalidade no âmbito dos conflitos trabalhistas individuais ou coletivos. “No individual, porém, não necessariamente constrói uma solução superior para os interesses em jogo”, diz. “É preciso estimular soluções conciliatórias que apontem para a melhoria das condições sociais.”
“A indústria do fumo quer evitar de todo jeito uma condenação para não abrir precedentes”, afirma Margaret Ramos de Carvalho, a procuradora-chefe do MPT-PR. Porque a tendência é consolidar o entendimento e as próximas decisões virem da mesma forma. Assim, ao perceber a possibilidade de perder uma ação, a indústria vai pagar o que for para encerrá-la – normalmente, para ela, valores irrisórios.
Outro lado
A Agência procurou a Alliance One e Universal Leaf Tobacco em busca de uma entrevista sobre os processos trabalhistas movidos contra elas. A Universal não atendeu aos pedidos de resposta da reportagem, e a Alliance One respondeu em nota (leia a íntegra) que “a atividade econômica da Alliance One está alicerçada nos princípios de ESG – Environmental, Social, Governance, cujas metas estão alinhadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, das melhores práticas e orientações internacionais”.
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