Militâncias de Elis Regina e Gal Costa são corretamente dimensionadas em livro sobre posições das cantoras na ditadura

Por Redação Achado Top em 21/02/2021 às 11:18:07

Rafael Baldam

Resenha de livro

Título: Não se assuste, pessoa! – As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar

Autor: Renato Contente

Editora: Letra e Voz

Cotação: * * * *

♪ Caetano Veloso desafinou o coro dos contentes com a performance esfuziante de Gal Costa no show Gal tropical, sucesso do verão carioca de 1979.

Ao vir da Bahia para o Rio de Janeiro especialmente para ver o espetáculo arquitetado pelo produtor e empresário Guilherme Araújo (1936 – 2007), então no comando da carreira de Gal, Caetano foi aos prantos cumprimentar a cantora no camarim do Teatro dos Quatro sem conseguir esboçar uma frase sequer.

Longe de ser fruto da emoção, o choro compulsivo do artista foi provocado pelo desapontamento com o show incensado por público e críticos, como o próprio Caetano relatou a Gal em posterior conversa privada.

Como a cantora logo entendeu, a decepção de Caetano era consequência da percepção de que o show Gal tropical remodelara a identidade de Gal para a grande massa, descontruindo a identidade artística dessa cantora que, tendo Caetano como guia, tinha sido a voz da contracultura no Brasil dos anos de chumbo.

Pouco conhecido, esse episódio na relação de Gal e Caetano é narrado na página 74 do livro Não se assuste, pessoa! – As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar, lançado pela editora Letra e Voz neste mês de fevereiro de 2021.

Escrito pelo jornalista e sociólogo recifense Renato Contente, o livro é fruto de trabalho de mestrado desenvolvido pelo autor em programa de pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco para disciplina que contextualizava a MPB no contexto da ditadura instaurada no Brasil em 1964.

O original formato acadêmico do texto deu origem a uma narrativa surpreendentemente fluente que pode seduzir admiradores da MPB pelo recorte inusitado da abordagem. O autor analisa e dimensiona corretamente os papéis políticos de duas das maiores cantoras do Brasil em todos os tempos.

Mesmo reconhecendo a importância alcançada pela voz de Nara Leão (1942 – 1989) na luta contra a opressão, sobretudo no período que foi de 1964 a 1969, Contente optou por focar a narrativa nas atuações de Elis Regina (1945 – 1982) e Gal Costa no campus político da MPB.

Embora ousada, sobretudo pela escolha de Gal, cantora que se desvinculou da imagem de musa da contracultura a partir do (na época) controverso álbum Cantar (1974), a opção se justifica ao longo das 144 páginas do livro, cujo título Não se assuste, pessoa! reproduz verso da música Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971), associada à fase mais militante da carreira de Gal.

O êxito do livro decorre tanto do trabalho de pesquisa – bem fundamentado porque legitima o que está sendo escrito com o relato de fatos e a reprodução de trechos de entrevistas da época – como do conhecimento que Renato Contente demonstra ter sobre as trajetórias de Elis e Gal. Inexistem erros de informação no livro.

Sem se portar como fã das cantoras na construção da tese, o autor situa com propriedade a força política de Gal e de Elis em momentos distintos da música brasileira. Desde que subiu no palanque de festival de 1968 para defender Divino maravilhoso – parceria dos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil – Gal se tornou porta-voz de anseios políticos e sociais da geração tropicalista, marcando posição através da música, da voz gritada e do visual hippie.

Esse papel se intensificou a partir de 1969 com o exílio forçado de Caetano e Gil na Europa. Amparada no Brasil por nomes como Jards Macalé e Waly Salomão (1943 – 2003), mentor do cultuado show Gal a todo vapor (1971), Gal encarnou figura sensual de resistência à opressão. Um símbolo de liberdade, a ponto de a capa do álbum Índia (1973) ter sido vetada pela censura, que identificou o uso do corpo como instrumento político na imagem exposta no LP.

Proposta por Roberto Menescal, então diretor da gravadora Philips, a solução foi vender o LP embalado em plástico preto e/ou azul. O veto à capa do álbum Índia simbolizou o fim da militância (in)voluntária de Gal.

É quando Elis Regina, mordida pelo fato de ter sido enterrada viva em 1972 pelo cartunista Henfil (1944 – 1988) no semanário esquerdista O Pasquim, entra na guerra contra o regime militar a partir do tenso e denso álbum Elis, de 1973.

Então vista equivocadamente como voz simpática ao regime por ter sido obrigada a cantar o Hino Nacional Brasileiro (Francisco Manuel da Silva, 1822, com letra de Osório Duque Estrada, 1909) em cerimônia oficial de 1972 (em colaboração forçada também dada por outros artistas em cujos ombros jamais recaiu a cobrança feita a Elis, como bem ressalta Renato Contente), a cantora virou o jogo.

Não somente com a postura engajada de discos e shows como Falso brilhante (1975 / 1976), Transversal do tempo (1977 / 1978) e Saudade do Brasil (1980), todos detalhadamente analisados pelo autor, mas também com a disposição de cantar de graça em comícios de Fernando Henrique Cardoso e do então líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula, a propósito, foi ao velório da cantora em janeiro de 1982, sepultando qualquer dúvida que ainda restasse sobre o posicionamento político de Elis Regina Carvalho Costa.

Se Elis se eternizou como cantora imortal, Gal continuou em cena e, por isso, Renato Contente faz breve retrospecto da trajetória profissional da cantora baiana até os anos 2010 – fato que valoriza o livro pelo fato de ainda inexistir uma biografia de Maria da Graça Costa Penna Burgos.

Mesmo sem acrescentar fatos inéditos ao que já se publicou sobre as cantoras, o livro Não se assuste, pessoa! – As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar cumpre bem o objetivo de investigar e dimensionar as militâncias artísticas dessas duas vozes referenciais da música brasileira.

Fonte: G1

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