Uma das determinações dos ministros foi que o estado instale GPS nas viaturas e câmeras nos uniformes dos policiais, medida que já reduziu em mais de 80% a letalidade nos batalhões de São Paulo, por exemplo. Já há, inclusive, legislação sobre isso no Rio. Essa medida tem capacidade de reduzir a letalidade?
A questão das câmeras é super importante, apresentou resultados em muitos lugares onde isso foi implementado, como no exterior e em Santa Catarina e em São Paulo, mas aqui no Rio tenho um pouco de dúvida quanto à efetividade. Tem algumas questões que não estão muito claras. A custódia, por exemplo. Quem pode ter acesso a essas imagens e como elas serão utilizadas? Houve um pedido da ADPF que a Defensoria, o Ministério Público e os defensores de direitos humanos tivessem acesso a essas imagens. Elas são importantes porque por um lado protegem o policial que agiu no rigor estrito da lei e por outro lado protegem a população contra eventuais abusos. Nada mais justo que um acesso amplo a essas imagens. Depois há a questão de por quanto tempo elas vão ser armazenadas. Há casos que vão e voltam, que são reabertos, que depois se descobre novas evidências.
Aqui no Rio de Janeiro já existia orçamento separado para fazer a compra dessas câmeras e o governo do Estado não utilizou. Depois, sob muita pressão, o governo realmente deu início ao processo licitatório que parou agora por conta do Tribunal de Contas do Estado. E o que o governador Cláudio Castro anunciou como alocação dessas câmaras é na orla, em lugares onde a letalidade policial é baixa. Você tem que ter câmeras em operações policiais, não para fazer patrulha de turista ali em Copacabana. Tem muitas questões que trazem dúvidas não sobre o equipamento, mas quanto a como se usam essas imagens, como isso entra no sistema de justiça criminal, como que isso pode ser utilizado de forma estratégica em lugares específicos seguindo as manchas criminais, pensando os principais problemas que tem que se enfrentar nesta área. É difícil.
Como suspender o sigilo de todos os protocolos de atuação policial do Rio, medida negada pelo STF, ajudaria a diminuir a letalidade da polícia fluminense?
Houve uma incompreensão conceitual no julgamento com relação aos protocolos. Isso diz respeito exatamente a esse ponto das câmaras que estou tentando chamar atenção. Quando se pediu a suspensão do sigilo dos protocolos o que se estava demandando era que a população do Rio de Janeiro tivesse acesso aos critérios de utilização, por exemplo, do helicóptero blindado. Em que circunstância se utiliza um helicóptero blindado numa operação? E que esses protocolos fossem públicos. Isso tem a ver com o pacto civil de uso da força. É da essência do estado moderno você pactuar que você cede o uso da força ao estado e de que forma. Ninguém está falando em publicizar informações de inteligência, anunciar quando vai se realizar uma operação.
O ponto é que o contrato que rege o uso da força de forma oficial necessariamente tem que ser público porque as regras do jogo tem que ser públicas. As pessoas têm que saber como e porque a força está sendo utilizada, em quais circunstâncias. As câmeras são um instrumento para dar publicidade a isso, para tornar público o uso concreto da força. Para que se possa fazer uma avaliação. Naquela situação era isso que deveria ter sido feito ou não? Se foi um problema de imperícia, o policial tem que voltar pro treinamento ou tem que ser responsabilizado. Ou não. Ele fez o uso correto, então ok. Mas como a gente vai saber isso se a gente não sabe os protocolos e se a gente não tem acesso às imagens? O que se estava pedindo era “por favor, tornem público” – e isso era um ponto importante, sobretudo com relação a utilização do helicóptero blindado da Core, que é um instrumento de terror nas favelas. Em que circunstâncias ele se faz necessário?
Como funciona hoje o uso de helicópteros em operações no Rio?
Nós temos um helicóptero blindado aqui no Rio de Janeiro que é da Coordenadoria de Operações Especiais da Polícia Civil do Rio. Ou seja, um helicóptero de guerra na mão da polícia judiciária, o que em si já é um contrassenso. Já faz anos que a polícia civil atua também de forma operativa tanto quanto a polícia militar. Este helicóptero é utilizado não só como apoio logístico no momento das operações, a possibilidade de olhar de cima, mas também como plataforma de tiro, o que diversos especialistas já apontaram que é de uma enorme imprecisão. Nem precisa ser especialista para imaginar que a precisão de tiro de um helicóptero em movimento é baixíssima. Não é uma plataforma adequada para se realizar um disparo.
A questão maior que estava em jogo ali com relação a suspensão do sigilo dos protocolos era saber em que circunstâncias se faz necessário ou não a utilização de helicóptero para que se pudesse balizar por esses protocolos, se é que eles existem, o correto julgamento da utilização desse equipamento. O mesmo deveria ser feito com relação aos veículos blindados, sobre toda a atividade policial. Toda atividade policial tem que ser codificada. Os policiais sempre atuam em momentos de emergência e em situações onde eles têm que tomar decisões. Isso é normal. A discricionariedade é uma parte constitutiva e necessária da atividade policial. O problema é quando a discricionariedade atravessa a fronteira da arbitrariedade. E quando ela atravessa essa fronteira? Quando você não tem uma norma que estabeleça parâmetros da decisão que vai ser tomada naquele momento. São decisões importantes que envolvem a vida de pessoas e portanto elas têm que ser tornadas públicas.
Temos algum outro estado que parta dessa espécie de política de segurança baseada em operações como o Rio?
A centralidade que as operações policiais têm no conjunto da atividade policial é uma especificidade do Rio de Janeiro. São Paulo não tem a quantidade de operações que se tem no Rio, por exemplo. Você retira policiais que fazem patrulhamento, que fazem ronda, policiamento ostensivo, para atuarem só no policiamento repressivo. Direciona o seu contingente policial para o policiamento repressivo. O Instituto de Segurança Pública do Rio, por exemplo, tem dados muito precisos sobre a sazonalidade de roubo de rua, roubo de carro, roubo de carga… Sabe-se exatamente em quais meses, quais dias da semana, quais horários e em quais locais se tem mais roubos. Só que os policiais não atuam seguindo essas manchas criminais. Eles atuam fazendo operações onde eles imaginam que moram os bandidos. Ou seja, as favelas. Você combina de um lado brutalidade e letalidade com ineficiência. No Rio você tem o programa Segurança Presente que em parte é pago pela Fecomércio, mas que é 60% pago pelo Estado, para fazer segurança de comércio e que também não segue as manchas criminais. Se você não segue as manchas criminais, qual o planejamento que você tem? Nenhum. Ou você vai atuar de forma brutal ou vai atuar de segurança privada do comércio, como proteção patrimonial, etc. É uma loucura.
Você comentou que há uma ideia de que a situação da segurança pública no Rio é incontornável – o estado teve, por exemplo, uma intervenção federal na segurança pública em 2018, mas pouco mudou. Como é possível controlar essa situação?
Os dois maiores problemas do Rio na área de segurança são problemas diferentes, mas conectados. Por um lado, a letalidade policial. Para você ter uma ideia, a polícia do Rio de Janeiro, que é um estado de 16 milhões de habitantes, mata quatro vezes mais por ano do que a soma de todas as polícias dos Estados Unidos, que é um país de mais de 300 milhões de habitantes e que tem polícias internacionalmente conhecidas como brutais, racistas, cheias de problemas também. Se você comparar com outros estados brasileiros, com outros países latino-americanos, o Rio de Janeiro é objetivamente um lugar que tem um problema de letalidade policial.
Por outro lado, há a questão das milícias. As milícias são um tipo de grupo criminal herdeiro dos grupos de extermínio, dos esquadrões da morte, que, a partir do final dos anos 2000, cresceram de forma notável e hoje já controlam 57% da superfície territorial do estado. Elas atuam diretamente sobre mercados urbanos, a produção da riqueza urbana, sobre a própria urbanização. Tem um projeto de cidade miliciana instaurada aqui que passa pela extração dos diversos serviços e equipamentos públicos. Água, luz, internet, mercado imobiliário, gás… E contamina o sistema político, que tem relações muito próximas desses grupos. E é um problema que também não está sendo enfrentado de maneira nenhuma. Só tende a crescer.
Essas duas coisas se conectam. Quando você tem polícias brutais e impunes isso estimula essas ligações perigosas das forças policiais com os grupos criminais. Porque você pode fazer uso da força da maneira como você quiser e sempre sair impune. Nós temos policiais que têm 10, 15, 20 mortes e continuam atuando. Quando você tem esse tipo de estímulo para brutalidade policial o passo seguinte é transformar a brutalidade policial num mercado de compra e venda de proteção que é o mercado das milícias. Isso tem a ver justamente com o uso indiscriminado da força. Nós temos problemas de tornar o uso da força democrático. Por isso que o controle democrático da atividade policial é uma questão que não tem a ver só com a área de segurança pública, tem a ver com a própria possibilidade de existir a política no Rio de Janeiro.
Você comentou que o estado tem 57% do território controlado por milícias. No passado, o ex-governador Sérgio Cabral as definiu como um mal menor. Há anuência do governo com esses grupos?
Há diversos políticos que estão aí agora que apoiaram o que se chamava de autoproteções comunitárias, que é a mesma expressão que se utilizava na Colômbia com relação aos paramilitares. É o mesmo estímulo também. Aqui no Rio nós tivemos um fenômeno que foi a construção da Cidade Olímpica e portanto um investimento gigantesco dos poderes públicos na zona oeste, que é a franja urbana onde a cidade tem espaço para crescer e onde estavam justamente as milícias.
As milícias tiveram uma vantagem econômica com relação a outros grupos criminosos ao atuar nesse mercado imobiliário durante toda a construção do Rio como vitrine dos mega eventos. Durante esse período, percebemos uma atividade imobiliária muito intensa nos lugares em que as milícias estavam localizadas. E aí são vários mercados. É o mercado de ocupação, de grilagem, de construção, de compra e venda de imóveis, de locação, administração condominial… Aí depois vem água, luz, esgoto, internet. Ou seja, é toda uma urbanização que se faz ao redor dessa influência miliciana. Por outro lado, a gente quase não teve operações policiais nesses lugares. Claro, a gente não considera que as operações policiais são eficientes para desmontagem de organizações criminais. Mas elas incidem sobre os conflitos armados no Rio, sim. E nesse caso incidiram de forma muito mais favorável às milícias do que às facções do tráfico de drogas que tem um um modelo de negócio muito mais pulverizado, desorganizado, limitado basicamente à venda varejista. É muito diferente das milícias que atuam em mercados legais e ilegais, diversos. Tem um poder de extração da riqueza urbana, de pilhagem da riqueza urbana, que é muito maior. Aliado a isso, há a conivência, a tolerância, a participação direta ou indireta que o estado faz desse monstro que nós estamos vendo diante dos nossos olhos agora.
Temos um grande número de mortos pela polícia, mas também de policiais mortos. Uma maior regulação também ajudaria.
A Jaqueline Muniz sempre fala uma coisa muito interessante com relação aos protocolos. O policial que matou o George Floyd pôde ser condenado porque o estrangulamento já era uma prática banida dos protocolos de mobilização de pessoas. Você dá a baliza para poder fazer o julgamento da ação. Agora aqui você não tem controle de arma, você não tem controle de munição. Há uma resistência em geral dos policiais com a regulamentação, aos protocolos, com o argumento de que isso limita a atividade policial. Mas é o contrário. Esses protocolos servem para fortalecer a atividade policial, para que a atividade policial tenha respaldo legal. Tem coisas que são questão de bom senso assim. Por exemplo, uma das questões que foi votada por unânime foi a presença de ambulância durante as operações policiais. Como a presença de uma ambulância durante uma operação vai atrapalhar? O que você proibir operações no perímetro escolar, no período de aula, no entorno de unidade de saúde, vai atrapalhar a operação policial? E mesmo questões mais sensíveis como controle de armas e munição. Isso protege aqueles policiais que fazem o uso adequado de armas e de munições. Não ter protocolos só interessa quem não faz bom uso, não quer que isso não seja tornado público e que você tenha um controle sobre isso.
Fonte: Publica