É mais ou menos como se o deslocamento de espécies, por exemplo, fosse justamente para fugir e escapar de desmatamento, de incêndios ou mesmo das altas temperaturas? O relatório também já aponta os efeitos na biodiversidade, tem várias espécies que já estão migrando. Como isso pode, inclusive, desencadear o surgimento de novos patógenos que atinjam os seres humanos?
Sem dúvida, tem espécies que não vão se adaptar. Você já teve um caso concreto de um mamífero que extinguiu-se por conta da mudança do clima, na Austrália. Aconteceu uma inundação muito grande, caracterizada como uma mudança do clima de natureza humana, que dizimou essa espécie de rato. Então nós estamos falando dessa ameaça da biodiversidade. O relatório dá muita ênfase à biodiversidade para trazer essa questão humana e da natureza próximas uma da outra e fortalecendo-se simultaneamente.
Com 1,5°C de aquecimento você tem uma perda de diversidade grande. Mas a diferença entre a perda da biodiversidade a 1,5 °C e a 3 °C é muito maior. Com 3°C de aquecimento, por exemplo, você tem um risco de extinção de áreas de biodiversidade que são hotspot mesmo, áreas específicas de alta biodiversidade. A relação [de perda de biodiversidade] é de praticamente 10 vezes mais com aquecimento de 3°C do que com 1,5°C. No caso do Brasil, na região Amazônica, você poderia perder mais de 50% da biodiversidade com esses 3°C de aquecimento.
O Plano Nacional de Adaptação, instituído em maio de 2016, é satisfatório? O problema em relação a ele é a implementação, mais do que falhas de elaboração?
O que eu posso dizer para você é que esses planos têm que ser vistos amiúde por conta das rápidas mudanças que estão ocorrendo. Ou seja, a taxa de mudança que você está tendo em temperatura, elevação do nível do mar, isso está acontecendo tão rápido desde 1950, que isso tem que ter reavaliações recorrentes. Esses planos têm que ser dinâmicos, até porque a gente tem que se adaptar a novas realidades que estão surgindo.
Então possivelmente um plano que já trabalha em cima de cenários, é um plano interessante porque ele já estaria potencialmente antecipando e dando possíveis probabilidades de que esses cenários possam vir a ocorrer. Um deles a gente já falou que é esse da elevação do nível do mar, que está caracterizado no relatório. É uma área perto do nordeste brasileiro, que vai ser submetida a riscos da elevação do nível do mar. Esses locais particularmente já tem que começar a pensar no que eles vão fazer. Em particular, é preciso um planejamento urbano que evite o estabelecimento de assentamentos nessas áreas. Eles podem não estar em áreas que deslizam [como aconteceu no Rio], mas podem estar em áreas que vão ser tomadas pelo mar. Essas coisas são interessantes de adaptar.
Também tem a questão das queimadas. A Amazônia está sendo indicada como uma das áreas que vai ser a mais afetada por queimadas meteorológicas no século 21, que é uma combinação de períodos de seca grandes e contínuos juntamente com temperaturas muito altas. Então, na verdade, você tem o que a gente está chamando de múltiplos eventos extremos, que estão acontecendo ao mesmo tempo. Aí aumenta o risco, é mais difícil você fazer um gerenciamento. Na hora que você junta calor e seca, como no Nordeste, por exemplo, você vai ver que o pessoal que tá trabalhando na terra, na agricultura, vai ter um estresse de temperatura. Eles estão trabalhando fora, estão se expondo a esse calor que já diminui a produtividade devido a esse estresse térmico. Isso vai reduzir o rendimento, vai reduzir a renda familiar, vai aumentar o preço dos alimentos tanto local quanto globalmente. Você vê que é uma coisa em cadeia, eventos extremos acontecendo ao mesmo tempo.
O relatório aponta a necessidade dos planos de adaptação conjugarem saberes culturais locais e de povos indígenas e tradicionais ao conhecimento científico. Por que é importante levar em consideração os saberes dessas populações, historicamente marginalizadas e que levaram tanto tempo para atrair atenção?
Nos relatórios anteriores do IPCC, se menciona a importância dos povos indígenas, das comunidades locais, mas nunca na extensão em que estão sendo tratados neste relatório. Eles são grandes observadores, né? Até porque estão ali, no seu dia a dia, plantando, cultivando e percebendo rapidamente as mudanças que estão acontecendo. E o IPCC depende de publicações científicas, então ele tem que ter esse amparo. Felizmente nós estamos tendo mais publicações que estão vindo das comunidades indígenas. Não só na parte de evitamento da evidência, mas também na parte de como é que eles estão se adaptando. Isso é importante porque isso pode servir de exemplo de coisas práticas que são observadas e que podem ser implementadas.
O relatório deixa muito claro que ninguém fica de fora dessa equação. E dentro da construção de políticas públicas, você não pode deixar para fora os povos mais vulneráveis, que são os povos indígenas e as comunidades locais, aqueles que são menos favorecidos, aqueles que têm menos condição de se adaptar, que depende do poder público para isso, não tem saneamento, não tem água potável, mal tem condições mínimas de habitação. Você não pode deixar de fora esses que estão justamente vivendo toda essa desigualdade. Você não pode olhar para a cidade só, fazer um parquinho aqui, fazer mais uma lagoinha ali, esses problemas têm que ser tratados de uma maneira holística. Já te antecipo que no próximo ciclo, que começa em 2023, já foi decidido pelos governos que será feito um relatório especial sobre cuidados e mudança do clima.
Os debates de raça e classe precisam pautar as discussões sobre cidades sustentáveis…
Exatamente. É difícil a gente falar sempre aquele jargão de “reduzir as desigualdades”. Como fazer isso, como fazer chegar a todos a comunicação do que está acontecendo com o clima? O IPCC não tem essa capacidade de fazer a comunicação ampla que esse tema merece, então realmente a gente depende dos jornalistas, a gente depende da mídia, a gente depende de instituições que fazem eventos. Principalmente pra gente levar realmente a mensagem e fazer com que — e eu acredito que isso seja capaz – haja realmente uma cobrança em cima dos governos para que, eles tendo o conhecimento científico do que pode acontecer com eles no futuro, possam exigir dos governos uma atenção melhor. Não só para habitação, mas saneamento etc. É muito complicado, mas tem que começar de algum lugar. Esse pessoal não pode ficar de fora, de fato não tem condições, eles vão sofrer muito mais, imagine um local sem saneamento com temperaturas altíssimas, com enchentes…vai ser um horror. E já está acontecendo.
O relatório faz referência a pesquisas mostrando que a produção de arroz pode cair 6% se as emissões de gases de efeito estufa continuarem altas ou 3% com os cortes rápidos; a produção de trigo pode cair 25% com altas emissões ou 5% ainda com cortes rápidos; e a de milho, 10% com altas emissões ou 6% com cortes rápidos – estes são apenas alguns dados em relação a esse assunto. O agronegócio brasileiro tem parcelas mais conscientes em relação à crise climática, mas por que, na sua opinião, boa parte dele ainda não entendeu que a luta para mitigar e se adaptar às mudanças do clima é uma questão de sobrevivência para o seu próprio negócio?
Eles entendem… Não falta comunicação com esse setor. E não são somente os relatórios do IPCC que estão indicando, através dos seus modelos climáticos, a vulnerabilidade dessa área para questões de mudanças no regime de precipitação e altas temperaturas. A questão é quando eles vão se adaptar. Eles já devem estar pensando se existiria, por exemplo, um deslocamento da região de produção para outros lugares que serão mais favoráveis, mais ao sul do Brasil, talvez onde o calor não seja tão alto, como a gente está prevendo aí na região mais tropical da América do Sul. Então não digo para você que eles não estão pensando nisso. Estão, sim. Agora quando é que vão implementar, eu não sei. Mas eles têm conhecimento, sim, dos potenciais riscos de impactos na produção agrícola brasileira.
Mas qual seria o problema? Seria uma questão de negacionismo climático?
Não, não. É “quando é que eu vou precisar fazer isso?”. Ou seja, ainda está conseguindo ter uma safra boa, ainda está conseguindo produzir, ainda não sentiu o impacto direto ou pelo menos entendeu que o que está acontecendo tem uma digital de mudança do clima de natureza antrópica, entendeu? Conforme você vai vendo os eventos extremos, as mudanças acontecendo e de forma muito rápida, eu tenho certeza que esse setor já está se preparando, nem que seja nos seus escritórios, em institutos de pesquisa, que já estão potencialmente desenvolvendo alternativas para diferentes cenários.
Pode ser, então, a insistência numa visão de curto prazo? Você mencionou que institutos de pesquisa como a Embrapa estão atentos aos impactos da mudança climática sobre a agricultura e que há muita evidência científica nesse sentido. Mas existe uma parcela do agronegócio que segue desmatando e apoiando a grilagem de terras, por exemplo, o que tem relação muito próxima com as emissões de gases de efeito estufa e o aquecimento global. Por que o setor ainda não atua como bloco contra esse problema?
Eu não comento muito essa realidade, mas a mensagem que você falou já é bem clara, né? E acrescento que, se não houver profundas reduções de emissões, todos os modelos climáticos estão projetando um aumento médio de 4° C nas temperaturas máximas, isso até 2050, e também uma redução de 30% de chuva. Às vezes é muito isso, “ah, mas é só 2050”, só que 2050 tá aí na esquina. São várias coisas. Primeiro: o mundo vai conseguir limitar o aquecimento a 1,5° C? Essa é a questão número 1. Se limitar a 1,5 °C, as coisas vão estar tão críticas a ponto de precisar fazer adaptações profundas já? Então, você tem uma série de incógnitas que não existem para mitigação, sobre o ponto de vista de que a mitigação, se bem implementada, se as ações e medidas foram bem planejadas, você tem uma certeza maior do que vai acontecer. Já a adaptação é mais complicada por natureza, por conta dessas transformações. Você tem medidas adaptativas transformadoras que saem do que você tem feito e partem de uma coisa bem mais radical.
Mas a agricultura é um ponto que, para a América Central e do Sul, é bastante crítico. Até o relatório no capítulo 12 fala que o desafio para essa região é ter habilidade de alimentar e nutrir a sua própria população. Se a gente olhar hoje, vários desses países estão entre os maiores exportadores [de alimentos] – o Brasil está nesse grupo no milho, na soja, no café, na carne, sempre praticamente entre os 10 ou 5 maiores exportadores. Então, de fato, para o Brasil, essa questão da agricultura merece atenção especial. E essa atenção que eu falo é justamente ter essas parcerias com os institutos de pesquisa, com o pessoal que tem feito modelagem e podem fazer modelagens mais específicas para poder ajudar a prever os riscos com uma resolução espacial mais refinada, olhando locais mais específicos.
A gente começou a entrevista falando de justiça e injustiça climática. Embora o relatório não traga o termo injustiça climática, o texto diz com todas as letras quem são os mais atingidos, quem são os mais vulneráveis e são justamente as populações, e até os países que menos contribuem com o aquecimento global. Queria entender como esses relatórios vão influenciar também o posicionamento das partes na COP, que vem aí no final do ano, que vai ser num país do Sul Global africano e vai trazer muito forte esse debate sobre justiça climática. Você acha que esse relatório vai ter impacto sobre essas discussões, até sobre a atuação das autoridades?
Não comento a parte política. Mas o que a gente sempre diz é que o papel do IPCC é produzir ciência com evidência e com grau de confiança alto. É claro que você espera que, como os governos participam linha a linha na aprovação do sumário, que é sintético, mas já traz informações suficientes para a ação, ele já seja suficientemente bem embasado para gerar esse tipo de ação. O que eu imagino também, não como IPCC, mas como Thelma, é que os países têm linhas de financiamento climático, que eles fazem com países em desenvolvimento. A maior parte dos investimentos em financiamento climáticos tem sido feito para mitigação, então com esse relatório é possível que esses investimentos passarão a ser mais canalizados para adaptação, de forma que você possa atingir esse balanço entre adaptação e mitigação. E isso sim, isso eu vejo acontecendo e eu acho que até mais rápido isso acontecer do que uma modificação mais em nível de uma convenção, que requer tantos países concordando por consenso.
Fonte: Publica