“Os povos indígenas do Brasil estão em situação de emergência”, exclamou Sônia Guajajara, coordenadora nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), na manhã do dia 5 de abril deste ano. A fala deu início à 18ª edição da maior mobilização de povos originários do país, o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. Enquanto ela discursava sobre as ameaças que indígenas têm sofrido pelas ações do governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) recebia, a 4 quilômetros dali, no Palácio do Planalto, políticos paraenses para discutir a regularização das áreas de garimpo hoje exploradas ilegalmente, entre outros assuntos.
Na comitiva de 16 prefeitos e políticos do Pará, estava um dos principais representantes do lobby pró-garimpo no estado, o vereador de Itaituba Wescley Tomaz (MDB). Eleito em 2020 para o seu terceiro mandato, sob o mote “vereador dos garimpeiros”, ele se transformou, nos últimos quatro anos, em um porta-voz do grupo que atua na área do rio Tapajós, com a ajuda do amigo e aliado político o deputado federal Joaquim Passarinho (PL-PA).
Por abrigar um dos territórios de maior extração aurífera do país, chamado Província Mineral do Tapajós, a região atrai empresas e garimpeiros e se tornou “o maior polo da mineração ilegal no país”, segundo o Ministério Público Federal (MPF). A Procuradoria da República em Itaituba recomendou à Agência Nacional de Mineração (ANM), em 2020, que fossem tomadas medidas contra a concentração de Permissões de Lavra Garimpeira (PLGs) ilegais na área. A recomendação considera que a má gestão desses títulos pela ANM “tem causado impactos diretos ao patrimônio público e social, ao meio ambiente e a outros interesses difusos e coletivos”.
Segundo a Agência Pública apurou, Tomaz está atualmente articulando junto ao governo federal a criação de um grupo de trabalho (GT) interministerial “que visa buscar soluções técnicas para tornar o garimpo irregular regular”. Em suas redes sociais, ele informou que esse foi o assunto tratado com Bolsonaro e com Anderson Torres, ministro da Justiça e Segurança Pública, em uma reunião no dia 5 de abril deste ano.
O tema já havia sido debatido com Torres antes, em uma agenda em 23 de fevereiro. “O ministro da Justiça, através de toda a sua assessoria e da Polícia Federal, se comprometeu em criar um grupo de trabalho para a gente dar legalidade às áreas que são permitidas por lei”, disse Tomaz em vídeo publicado um dia após o encontro que, segundo ele, contou também com a presença de representantes do Ministério de Minas e Energia (MME) e do diretor Ronaldo Lima, da ANM. O chefe do Departamento de Geologia e Produção Mineral do MME, Frederico Oliveira, reuniu-se com Joaquim Passarinho e Anderson Torres no mesmo dia, 15 minutos antes.
Em resposta a questionamentos da reportagem, o vereador confirmou o envolvimento na formação do GT interministerial. Já a assessoria do MJSP disse que “tem recebido diversos grupos interessados na temática da mineração” e que “todas essas pessoas têm sido ouvidas no intuito de que se possa chegar a medidas adequadas para o trato da questão”, mas não explicou qual teria sido o papel do ministério na criação do GT. A ANM e o MME não responderam até o fechamento desta reportagem.
Levantamento feito pela Pública em agendas oficiais e nas redes sociais do vereador Wescley Tomaz mostra o acesso que ele tem a representantes do Palácio do Planalto e de ministérios e autarquias do governo: desde o início da gestão de Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, ele participou de pelo menos 11 reuniões com autoridades da ANM e do MME. O político esteve também em encontros com os ex-ministros Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), Ricardo Salles (Meio Ambiente), Onyx Lorenzoni, Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e registrou ao menos 14 entradas na Câmara dos Deputados — a maioria com destino ao gabinete 334, de Joaquim Passarinho.
Parte das viagens foi bancada com verba pública de Itaituba, de acordo com registros de transparência ativa da Câmara Municipal da cidade. Treze viagens feitas por Tomaz de 2019 a 2022 tiveram ajuda de custo entre R$ 1,2 mil e R$ 2,4 mil, para o pagamento de passagens e diárias em Brasília.
O vereador defendeu, em nota, que o “Governo federal deve e tem obrigação de ouvir e receber as demandas das lideranças políticas de todo país”, e garantiu que os encontros no MME, especificamente, foram sempre pautados pela falta de energia elétrica na região da Rodovia Transgarimpeira, situação que, segundo ele, afeta 10 mil famílias.
Lobby do vereador conquista força-tarefa pelo garimpo na ANM
A atuação do vereador em defesa de garimpeiros do Tapajós, apesar de não se restringir ao governo atual, tem avançado na gestão de Bolsonaro. Logo no primeiro ano de mandato do presidente, Tomaz e representantes da classe garimpeira da região conseguiram pressionar a ANM a criar uma força-tarefa composta por 14 servidores de sete estados e do Distrito Federal para legalizar garimpos na região.
O acordo saiu em uma reunião no dia 8 de outubro de 2019 na Casa Civil, à época sob a direção de Onyx Lorenzoni. Também estavam presentes os então ministros Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e Sergio Moro, da Justiça e o então Advogado-Geral da União e atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça.
“De todos esses anos que a gente anda aqui em Brasília, correndo atrás da legalização, de trazer o garimpeiro para dentro da legalidade, essa e a outra [reunião] passada foi uma das grandes reuniões que nunca tivemos aqui”, comemorou Tomaz logo após o compromisso, ao lado de Passarinho.
O resultado do lobby veio um mês depois. Em 12 de novembro, o então diretor-geral da ANM Victor Hugo Bicca editou uma portaria (nº 871/2019) que aprovou o “Plano de Trabalho para realizar estudos voltados ao ordenamento dos garimpos na Região do Sudoeste do Pará”, considerando o “que foi estabelecido em reunião no dia 08 de outubro de 2019, na Casa Civil da Presidência da República”. Em resposta a um pedido de informação da deputada federal Soraya Santos (PL-RJ), a própria autarquia admitiu que “O plano de trabalho objetiva atender a determinação do Governo no sentido de satisfazer o pleito dos garimpeiros do Tapajós”.
As demandas dos garimpeiros foram enviadas formalmente a Onyx Lorenzoni no dia 4 de outubro, quatro dias antes da reunião na Casa Civil, por meio do Ofício nº 003/2019 e com o assunto: “Movimento Pela Regularização Dos Garimpeiros Do Tapajós”. Esse documento, que aponta Tomaz como apoiador do movimento, foi o primeiro a ser protocolado no processo que deu origem à portaria, aberto no mesmo dia 4 de outubro. As informações foram levantadas pela reportagem em consulta pública no Sistema Eletrônico de Informações da agência reguladora da mineração.
Em outro documento do processo, a ANM indicou o desbloqueio de quase R$ 44 milhões dos orçamentos de 2019 e 2020. Desse montante, mais de R$ 5,3 milhões foram destinados à Administração da Unidade da Agência em Itaituba, enquanto R$ 1,4 milhão foi indicado para reformas nas unidades de Novo Progresso, Jacareacanga, Trairão, Aveiro, Rurópolis e Itaituba.
Em um vídeo ao lado de Wescley, gravado após a reunião do dia 8 de outubro na Casa Civil, Joaquim Passarinho comemorou que os primeiros dez meses de 2019 “andaram” mais pela legalização do garimpo do que o acumulado dos quatro anos anteriores. “Nós somos aqui reconhecidos, nós somos respeitados. O garimpeiro aqui é reconhecido e respeitado como trabalhador”, disse.
À reportagem, os dois afirmam que não houve facilitação para acesso às autoridades. Para Passarinho, o que existe é uma demanda necessária para o desenvolvimento da região, e que, quando lhe são solicitadas audiências ou reuniões, se mantém presente “para entender, dialogar e promover o desenvolvimento”. “Os três poderes precisam e devem interagir entre si”, concluiu. Tomaz, além de reforçar as afirmações do deputado federal, diz ainda que é exatamente a legalização que dará “responsabilidades ambientais aos trabalhadores que usam essa atividade como meio de vida”.
A legalização defendida por ele beneficiaria garimpos dentro de Unidades de Conservação Ambiental (UCs) nas chamadas “áreas brancas” (áreas não indígenas). No sudoeste do Pará, ao redor da reserva garimpeira do Tapajós estão localizadas seis UCs, como as Florestas Nacionais do Crepori e do Jamanxim e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós. Além delas, a região abriga também Terras Indígenas (TIs) onde vivem os povos Munduruku, Apiaká e povos isolados do alto Tapajós.
A exploração garimpeira dentro de UCs é proibida desde 2000, com base na Lei nº 9.985, que instituiu o Sistema Nacional das Unidades de Conservação. A proibição foi reforçada pela Advocacia-Geral da União (AGU) em 2014, através do Parecer nº 21, entendimento que é contestado por Tomaz em publicações nas redes sociais e em falas nas reuniões e encontros de que participa.
Funai e comissão pró-garimpo discutiram a mineração em TIs meses antes do PL 191
O histórico de ações do grupo de lobistas pró-garimpo de Wescley Tomaz é antigo. Há ações do grupo em 2018, como mostra uma publicação do advogado Fernando Brandão em abril de 2019, proprietário do maior escritório de advocacia de Itaituba e um dos integrantes da comissão. O post resgatou as “ações realizadas pelo grupo”, entre elas uma audiência no dia 11 de julho de 2018 com o então ministro de Minas e Energia Moreira Franco. Esse encontro teve o objetivo de cobrar “firmemente” ações para destravar o licenciamento e autorização de exploração mineral e contou com o apoio de parlamentares da época, como os ex-senadores Flexa Ribeiro e José Medeiros (hoje deputado federal) e os deputados Joaquim Passarinho e Jair Bolsonaro, que a essa altura já era pré-candidato à Presidência.
A comissão criada pressionou os governos de Temer e Bolsonaro pela legalização de áreas de exploração mineral em UCs e pela proibição da destruição de maquinários por órgãos fiscalizadores, como o Ibama e ICMBio. Além de vereador e do advogado Fernando Brandão, o grupo é composto pelo empresário Roberto Carlos Katsuda, representante da BMG Máquinas/Hyundai, e pelo engenheiro florestal Guilherme Aggens, da Geoconsult Pará, empresa responsável por requerer lavras garimpeiras no estado. Tomaz, no entanto, defende que não existe uma “comissão fixa”. “Todos que querem participar na defesa da legalidade dos garimpos da nossa região tem (sic) liberdade para isso fazer”, disse em nota enviada à Pública. Leia a íntegra da resposta do vereador.
Com fácil acesso aos gabinetes da capital federal, eles participaram de encontros com Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, e de reuniões com representantes da ANM, do MME, da AGU, da Casa Civil e da Secretaria do Governo.
Colegas do vereador de Itaituba e integrantes da comissão, Roberto Carlos Katsuda e Fernando Brandão conseguiram também uma agenda na Fundação Nacional do Índio (Funai), já sob a gestão de Marcelo Augusto Xavier, para tratar da liberação de mineração em terras indígenas.
“Mais uma reunião importante na Funai para auxiliar na nova legislação que será aplicada, permitindo a exploração mineral nas áreas indígenas”, contou Brandão em uma publicação no Facebook do dia 17 de setembro de 2019. No ano seguinte, o governo federal apresentou o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que prevê exatamente a liberação do garimpo dentro de territórios dos povos originários e se tornou uma das pautas prioritárias da gestão de Bolsonaro para 2022.
Por meio da BMG Máquinas/Hyundai, Roberto Carlos Katsuda declarou que as reuniões com os órgãos citados tiveram a “finalidade única de promover a regularização e legalização de eventuais atividades em desconformidade, sempre de acordo com as leis brasileiras” e nega que a sua atuação tenha relação com o PL 191. O advogado Fernando Brandão e o engenheiro Guilherme Aggens não responderam às tentativas de contato da reportagem.
“Quem sofre somos nós, povos indígenas”, diz liderança sobre garimpo
“Wescley foi criado no Crepori [distrito de Itaituba], o pai dele é garimpeiro, a família toda é de garimpeiro. Ele entrou na política como vereador exatamente para legalizar o que é ilegal, e até hoje ele está nessa luta para legalizar o garimpo porque ele depende do ouro”, diz a coordenadora da Associação Pariri, Alessandra Munduruku, que mora em Itaituba e é uma das principais lideranças do povo Munduruku do médio Tapajós. “Quem sofre somos nós, povos indígenas”, lamentou em conversa com a reportagem durante a última marcha do ATL 2022, em abril.
O avanço do PL 191 na Câmara dos Deputados no início deste ano aumentou o conflito entre indígenas e garimpeiros no Tapajós, segundo a visão do cacique geral do povo Munduruku, Arnaldo Kaba. A entrada de brancos garimpeiros na TI, segundo ele, além dos problemas à saúde da população, ainda traz outros como o aumento do consumo de drogas e da prostituição. “Do jeito que tá aí não vai parar não”, lamenta sobre as invasões.
A tramitação do PL havia avançado no dia 9 de março, quando os deputados aprovaram um requerimento permitindo que tramitasse em regime de urgência. Atualmente, o PL está parado após a pressão do movimento dos povos originários, que reuniu mais de 8 mil lideranças de 200 povos indígenas no ATL, em 2022.
Para a antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Luísa Molina, Tomaz é “uma espécie de símbolo do fortalecimento político que o garimpo predatório conquistou com o governo Bolsonaro”. Luísa foi uma das coordenadoras do estudo “O cerco do ouro: garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, lançado em 2021 pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. O documento cita Tomaz como “um dos nomes de destaque do lobby pró-garimpo nos últimos anos”.
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