Na manhã do dia 19 de maio, Jair Bolsonaro voou de Brasília à cidade do Rio de Janeiro para uma viagem rápida. O bate e volta — o presidente ficou apenas cinco horas em terras fluminenses — visava garantir a sua presença em um evento que, mesmo pouco divulgado, reuniu grandes empresários, como os presidentes dos principais bancos e frigoríficos brasileiros: o Congresso Mercado Global de Carbono: Descarbonização e Investimentos Verdes.
Mais tarde naquele dia, foi publicado um decreto que, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, criou “o mais moderno e inovador mercado regulado de carbono, com foco em exportação de créditos, especialmente para países e empresas que precisam compensar emissões para cumprir com seus compromissos de neutralidade de carbono”. O documento foi assinado por Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes, da Economia, e Joaquim Leite, do Meio Ambiente.
Para o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luan Santos, pós-doutor em economia do clima e do meio ambiente e especialista em investimentos sustentáveis, a participação do governo no evento — que teve o ministro e secretários do Ministério do Meio Ambiente como palestrantes — soou estranha, já que “todo mundo sabe que a pauta climática nunca foi prioridade”. “É muito curioso que isso tudo aconteça às vésperas das eleições. Nunca foi pauta, [mas] agora tem que fazer evento, fazer burburinho e falar de mercado de carbono?”.
A desconfiança se soma ao fato de o Projeto de Lei (PL) 528/2021, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), tramitar no Congresso desde fevereiro de 2021. Mesmo que o PL esteja sendo elaborado com a participação de diversos setores interessados em criar um mercado regulado no Brasil, o governo preferiu resolver a questão com uma canetada, que falou em “mercado global” e “créditos de metano”, mecanismos que não existem no mundo. Nenhum outro tema da área do meio ambiente ganhou igual atenção — somente neste ano, Leite fez mais de 20 reuniões sobre o mercado de carbono. Ainda assim, o resultado final foi de “insegurança jurídica e instabilidade”, como explicou o professor.
Para Santos, tudo não passou de uma “estratégia para tentar apagar um pouco esse olhar extremamente queimado que o governo tem na agenda ambiental e climática”. Apesar de o governo afirmar que o decreto trará benefícios ao “meio ambiente, a população e diversos setores da economia, como energia, óleo e gás, resíduos, transporte, logística, infraestrutura, agronegócio, siderurgia e cimento, entre tantos outros”, Santos explica que pouco mudou. De acordo com o professor, o decreto não entrega o esperado por empresários que querem atuar na área nem cria um mercado de carbono – muito menos um mercado regulado — como o existente na União Europeia.
Santos argumenta que a medida apenas “dá as bases de como os setores devem estabelecer as suas metas”, o que seria um passo no caminho da construção de um mercado, mas sem a “instrumentação” necessária. Caberá aos próprios setores definir quanto querem reduzir de suas emissões e mesmo colocar em prática — foram contemplados nove setores, com enfoque no agro e nenhuma menção ao setor florestal, que incluiria as comunidades tradicionais e seu trabalho de preservação.
De acordo com ele, que também participou do evento, o tom do discurso governista era de defesa do agro, com “certo protecionismo no setor” que em nada colaboraria para que o Brasil cumpra as metas de redução de emissões previstas no Acordo de Paris. “Os setores precisam se engajar mais, precisam ser mais ambiciosos, e não [o governo] flexibilizar mais a operação desses setores”, avaliou.
Confira os principais trechos da entrevista:
O que é e como funciona o mercado de carbono?
Existem vários instrumentos para lidar com a pauta da mudança climática, e um deles é o mercado de carbono. Na sua concepção clássica original, que veio da época do Protocolo de Kyoto, no final do século passado, ele basicamente consistiria na criação de um mercado que funcionaria muito parecido com o mercado de ações, no qual existiriam empresas que querem comprar crédito de carbono e empresas que querem vendê-lo.
Algumas empresas têm metas que precisam alcançar de redução de emissão — em um mercado regulado, essas metas são geralmente definidas pelo Estado. Eventualmente, uma empresa pode não conseguir bater a sua própria meta, aí ela vai no mercado [de carbono] e compra créditos para favorecer com que ela a alcance. Basicamente, o mercado de carbono é um mercado no qual existe uma transação econômica de compra e venda de um ativo ambiental, que seria o crédito de carbono.
De onde vêm os créditos que serão vendidos?
As empresas que vendem os créditos são as que conseguem emitir [gás carbônico em quantidade] inferior à sua meta preestabelecida. Isso gera um delta, uma variação de carbono que ela pode disponibilizar no mercado.
Qual é a diferença entre o mercado voluntário e o mercado compulsório ou regular?
Existe muita confusão dos termos. O mercado voluntário é composto de transações diretas entre organizações [em] que uma vende para outra, em uma relação não regulada pelo Estado. Já o mercado regulado é institucionalizado. É um mercado em que o Estado, o país ou a região criam os mecanismos, como no mercado da União Europeia [European Union Emission Trade System, na sigla em inglês]. Ele é regulado, porque existe uma entidade responsável pela gestão daquele mercado por meio de mecanismos de verificação e controle.
O que existe no Brasil?
Existe uma proposta de criação de um mercado regulado no Brasil, mas o que aconteceu no Congresso [do Mercado Global de Carbono] não é sobre isso. Embora eles mencionem o tempo inteiro [terem criado um] mercado regulado, não é. É um mercado voluntário, porque são empresas transacionando. Eles podem até querer forçar a barra e dizer que é regulado, porque existe nesse decreto a intenção de estabelecer metas de emissão, mas elas não existem ainda.
Então, no Congresso do Mercado Global, houve uma confusão de termos? Chamaram de regulado um mercado que ainda é voluntário?
Sim. Inclusive houve um momento em que o próprio ministro da Economia soltou que teria um tributo do carbono, o que gerou mais confusão ainda, porque tributo é outro mecanismo. As [pessoas ficaram] assim: “Mas o que está acontecendo aqui? Estava falando de mercado e agora de imposto?”.
O que o decreto efetivamente fez?
Ele estabelece os procedimentos para criar os planos setoriais de mitigação, ou seja, dá as bases de como os setores devem estabelecer as suas metas. Só estamos falando do “cap”, não tem “trade”. [Além disso], ele cria o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa, que é basicamente onde seriam organizadas as informações de redução de emissão por setor.
O decreto faz uma das etapas do mercado de carbono, que é a parte relacionada à definição de metas. Toda a parte ligada a como vai ser transacionado esse carbono, ninguém sabe. Isso não foi falado, [não houve] nenhuma menção. Como vai ser transacionado isso? Vai ser criada uma plataforma centralizada em que vai ser disponibilizado o crédito, como se fosse uma bolsa de valores? O decreto não oferece essa instrumentação.
O decreto não cria mercado, ele fomenta de certa maneira esse mercado, mas não cria o mercado. Essa é a realidade. Não tem mercado nenhum, o que tem é um avanço, não lá dos mais significativos, relacionado a como a gente vai avançar no mercado de carbono. Dizer que a gente tem um mercado global de carbono é para inglês ver.
Como você avalia o decreto?
Foi um decreto que gerou muita insatisfação. É vago e gera muita insegurança. O sentimento que ficou é de que o debate não serviu pra nada. Primeiro foi anunciado na plenária de abertura que seria feito o lançamento do decreto na própria quarta-feira, mas isso não aconteceu. Aí vazou um rascunho que estava cheio de inconsistências, porque o decreto não dialoga com o PL que está na Câmara em discussão há mais de um ano, com atuação intensa do setor privado, da academia, de ONGs e de vários atores importantes.
No mesmo dia que foi lançado, quando vazou esse rascunho, na correria, tentou-se de alguma maneira revisar o PL. A Carla Zambelli [relatora do PL na Câmara] protocolou então um novo parecer. Tudo acontecendo ao mesmo tempo sem que as coisas estivessem conversando. Isso já mostra as inconsistências.
Também existem brechas, como o termo “créditos de metano”. Isso não existe em nenhum lugar do mundo, eles levantaram coisas que não são praticadas em campo nenhum. Eles também colocam que vai ser preciso que os setores façam seus planos setoriais com as suas propostas, mas não está claro quando, os prazos estão confusos. Tem várias questões ali que dão brechas. Há muita insegurança jurídica.
Então o governo não criou o mercado de carbono, muito menos um mercado global de carbono, como o nome do Congresso indicaria?
Não tem nada de global ali. Foi muito barulho para pouco resultado efetivo.
Eles colocaram “global” porque queriam colocar o Brasil como um grande player, como um grande ofertador de crédito de carbono para o mundo, o que é verdade, mas isso não significa dizer que é um mercado global, é só um mercado de oferta de crédito, e aí qualquer país pode comprar.
No mercado regulado tampouco existe um mercado global, o que existe são mercados regionais. Tem vários mercados pelo mundo pipocando, mas nenhum deles é global.
Já existem empresas que vendem em seus serviços a possibilidade de pagar para compensar as emissões. Antes desse decreto, o mercado voluntário já existia no Brasil?
O que tem no Brasil é o seguinte: várias empresas estabelecem metas de redução de emissão de carbono sem ter uma obrigatoriedade a nível do governo. Por exemplo, uma empresa do ramo de energia estabelece suas metas de redução, mas não consegue cumprir com as metas apenas com projetos internos. Aí ela pode comprar créditos de carbono de uma operação que esteja vendendo esse crédito. Na prática isso só serve para a própria empresa bater uma meta que ela estabeleceu.
Uma das críticas à ideia de mercado de carbono é que ela precificaria a poluição, no sentido de que, se uma empresa poluidora não alcançou a meta definida, ela não precisaria parar de emitir ou focar em alcançar a meta, e sim comprar de alguém que teve um excedente. Essa crítica faz sentido? Como que o senhor responde a isso?
Essa é uma crítica que, a princípio, pode fazer sentido, mas, uma vez que você entende o funcionamento do mercado, e se esse mercado está bem desenhado, essa colocação não faz o menor sentido.
Imagine que existe um mercado pegando todos os setores da economia brasileira; ele vai funcionar no formato “cap and trade”, onde “cap” define o limite de emissões e “trade” comercializa. Uma vez definido esse limite de emissões, se uma empresa não bateu a sua meta e precisou comprar o crédito de outra, no final das contas, essa outra empresa só vendeu porque ela foi mais eficiente do que ela poderia. Como ela foi mais eficiente, ela teve crédito e esse crédito foi comercializado. Na prática, você garante que vai bater a meta [como um todo], você não vai ultrapassar o limite de emissão preestabelecido, porque esse limite é justamente o total de crédito disponível no mercado. Enquanto empresa, ou você compra esse crédito, ou você reduz internamente.
Mas nem todo mundo vai poder comprar, porque não vai ter oferta suficiente. Quem não conseguir vai ser obrigado a fazer alguma estratégia interna para reduzir, e com isso você garante que vai chegar no limite de emissão preestabelecido.
[Além disso], os mercados mais maduros adotam uma estratégia que é a meta ser revisada de períodos em períodos, como de cinco em cinco anos. Eles colocam uma meta mais baixa e fica ainda mais restritivo. Sendo mais e mais restritivo, a meta fica mais ambiciosa e isso reduz o total de crédito de carbono disponível. Quando se reduz o total de crédito disponível, você está, indiretamente, forçando as empresas a investirem em tecnologias mais eficientes. Existem mecanismos para impedir que o mercado colabore para que determinada empresa siga sendo ineficiente. Mesmo que ela seja ineficiente e compre crédito, vai chegar um momento em que, quando houver essa revisão da meta, e essa meta for mais ambiciosa, essa empresa não vai conseguir mais comprar crédito e vai ser obrigada a investir internamente.
Nesse mercado de empresas, como entra o crédito de carbono gerado pelas comunidades tradicionais que preservam a floresta?
Geralmente, os setores econômicos que não foram cobertos por mercado podem interagir com o mercado. No Brasil [a participação dessas comunidades acontece pelo que] a gente chama de offset, que é poder contar com créditos de carbono fora do mercado de carbono para que as metas sejam alcançadas. Se uma empresa não consegue bater a sua meta através do mercado de carbono regulado, pode estar prevista a possibilidade de compra de crédito de carbono, o offset florestal. Então ela pode pegar um projeto florestal que gera crédito de carbono, comprar aquele crédito e ele entraria reduzindo a emissão.
Com esses créditos fora do sistema que entram para complementar, o mercado não fica desestabilizado? Em países como o Brasil, por exemplo, mesmo com muito desmatamento, ainda é possível gerar muitos offsets por conta das florestas. Como ocorre essa interação?
É necessário que a gente já considere o tanto de offset que poderá ser utilizado quando se faz o desenho do instrumento. A proposta para o mercado de carbono deve definir a quantidade máxima de offset que o mercado vai aceitar, de modo também que não impacte no preço do crédito de carbono nesse mercado.
O mercado que teria sido criado não inclui o papel que poderia ser desempenhado pelas comunidades tradicionais, pelas pessoas que preservam a floresta?
Não. Existe um problema do [setor] florestal, que não está teoricamente coberto. O que podemos entender é que o setor florestal entraria nesse mercado via offset, mas isso sou eu entendendo à luz das melhores práticas de mercado. Isso tampouco foi falado.
Por que o ministro teria passado na frente dessa discussão, do PL, e criado esse mercado por decreto?
A minha percepção é a seguinte: todo mundo sabe que a pauta climática nunca foi prioridade do atual governo. Isso não é novidade para ninguém, não é porque eu sou contra ou a favor do governo. É um fato. Mas existe uma pressão internacional muito grande sobre o Brasil, até por conta da Amazônia, que foi capa de jornal no mundo inteiro recentemente por conta de queimadas e desmatamento.
É muito curioso que isso tudo aconteça às vésperas das eleições. Nunca foi pauta, agora tem que fazer um evento, fazer um burburinho e falar de mercado de carbono? O outro [ministro Paulo Guedes] confunde mercado de carbono com tributo de carbono… Ficou muito claro que foi uma coisa meio que a toque de caixa. No próprio evento o Bolsonaro apareceu, fez um discurso, e eu fiquei assim: “Gente, Bolsonaro falando de um evento de clima? Quando está sendo aprovada uma série de questões problemáticas na agenda climática e ambiental do Brasil, agrotóxico e tal… Agora ele está querendo falar de clima?”. Gerou muita desconfiança. Foi estranho.
Deixou o mercado aquecido, mas aquecido e desinformado ao mesmo tempo. Eles estão querendo informações, mas ninguém sabe dizer, porque só foi feito o lançamento de um negócio e falou-se que era mercado de carbono. Está todo mundo querendo saber as cenas dos próximos capítulos.
Considerando que estamos em ano eleitoral, essa decisão de passar na frente do PL 528/2021 e criar um mercado de carbono via decreto pode ser vista como uma tentativa de colocar o saldo na conta do governo?
Falando como Luan, eu não tenho a menor dúvida. Eu pessoalmente tenho certeza que é isso. Esse governo reconhecidamente teve a pior performance na área ambiental e climática.
Toda essa pauta ficou de lado, e agora no último ano virou prioridade? Um governo que aprovou não sei quantos mil agrotóxicos agora está preocupado com isso? Um governo que favoreceu o agro de todas as formas possíveis agora está preocupado com a pauta? Ao meu ver, é uma estratégia para tentar apagar um pouco esse olhar extremamente queimado — literalmente, a melhor metáfora é essa — que o governo tem na agenda ambiental e climática [aos olhos dos eleitores e do mundo]. Me parece que isso é uma tentativa meio desesperada de tentar apagar um pouco essa mancha, mas as pessoas percebem que é isso. Está na cara que é algo nessa linha, basta prestar atenção.
Como você avalia o PL 528/2021, do deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), que está em discussão? Se aprovado, ele criaria o mercado tal como deveria?
Dizer que seria do jeito que deveria ser depende de para quem, porque existem vários interesses envolvidos. Mas com certeza seria algo muito melhor, porque está sendo construído de forma colaborativa. Por levar em consideração as discussões da COP-26, do Acordo de Paris, e vários inputs de vários setores e atores representantes de várias entidades, seria algo melhor do que um decreto que não levou ninguém e nenhum debate em conta.
Você escreveu em artigo que existem duas medidas, que são o crédito de metano e a criação da Unidade de Estoque de Carbono, que estariam voltadas ao setor do agro. Na sua avaliação, o decreto está voltado para o agro?
Com certeza. Inclusive isso também foi consenso na plateia [do Congresso Mercado Global de Carbono] e entre as pessoas que estavam participando e acompanhando o evento. Falou-se muito de agro verde, com um certo protecionismo no setor. A gente sabe que o setor agro gera muito impacto, principalmente com o metano, e por isso que [no decreto] foi colocada essa questão do [crédito de] metano. A gente fala muito de mudança climática e do gás carbônico, mas o dióxido de carbono — nome científico do gás carbônico, CO2 — só é considerado o grande vilão pela enorme quantidade em que está na atmosfera. Em termos do potencial de aquecimento global do gás, que é o GWP, Global Warming Potencial, o metano é 21 vezes mais perigoso do que o gás carbônico. Tem que ser feita alguma coisa, porque temos um agro que é muito forte no Brasil e que emite muito metano. [Mas, no evento, o governo] vendia o agro como se fosse um setor muito bom, “agro é pop”…
A gente que trabalha no setor sabe que realmente é um setor extremamente perigoso no sentido das emissões de gás de efeito estufa, principalmente porque o Brasil tem metas, tem sua NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada], que é o compromisso brasileiro [de reduções de emissões], e [o prazo da] primeira meta já é em 2025, e [o] da segunda em 2030. [Dessa forma], já tem meta batendo na porta. Se a gente não bater essa meta, que foi uma meta estabelecida pelo próprio governo brasileiro, vai ficar muito esquisito, muito ruim e muito mal [para o Brasil], e alguns pesquisadores já estão mostrando que ela não vai ser alcançada. Assim, naturalmente os setores precisam se engajar mais, precisam ser mais ambiciosos, e não [o governo] flexibilizar mais a operação desses setores.
Considerando o decreto, como essas medidas voltadas para o agro iriam funcionar?
Nunca se falou sobre isso nas grandes experiências internacionais. Nunca. A gente fala de crédito de carbono, não crédito de metano. Não existe na literatura algo dessa linha. O governo brasileiro, além de não ter experiência nenhuma com isso, está querendo começar diferente de todo mundo.
O governo participou desse evento para lançar o mercado de carbono no Brasil, medida que se encaixa na agenda climática, mas os dados mostram que os sistemas de sanções e multas ambientais estão sendo destruídos e não existe um esforço de combate ao desmatamento. É possível que o lançamento mercado de carbono seja efetivo para o combate à crise climática sem pensar em mecanismos de controles do desmatamento?
Não. Existem dois tipos de mecanismos para o enfrentamento da crise climática: os mecanismos de comando e controle e os mecanismos econômicos ou de mercado. Os primeiros são mecanismos regulatórios e de fiscalização, como no caso do desmatamento. O Estado deve estar lá fiscalizando, porque não se pode deixar na mão do setor privado. Certas políticas e realidades precisam de um controle do governo, como o licenciamento ambiental. Não pode ser uma empresa, tem que ser governo, porque são operações e atividades que geram um impacto muito grande, como uma hidrelétrica ou uma termelétrica, então é necessário ter um controle mais regulatório de um órgão que vai estabelecer critérios, normas de conduta, e fiscalizar.
Para outros [tipos de instrumento ou empreendimento], é possível trabalhar com mecanismos de mercado ou econômicos, que seriam o mercado de carbono, um subsídio ou imposto sobre carbono. Esses mecanismos também funcionam muito bem, mas funcionam muito bem para alguns casos específicos, não para todos. Então é preciso que haja uma conjunção desses instrumentos, como tem no mundo inteiro.
Dessa forma, a resposta é com certeza não, é necessária uma interação entre esses instrumentos.
O evento visou criar um mercado global de carbono, pensando também em exportar créditos de carbono gerados no mercado brasileiro. Isso é possível? Como funcionaria?
Eles falam que criaram um mercado global e que agora precisariam criar um mercado regulado nacional para exportar esse crédito. Isso aí já mostra uma grande confusão, porque esse mercado que eles estão dizendo que foi criado é um mercado não regulado, e que seria criado um mercado regulado nacional para exportar, mas não existe isso. Não acontece de um mercado regulado exportar crédito. Não existe. O que existe é que um mercado regulado pode contar com offset florestal, mas transacionar com outro mercado é até um avanço de mercado, que a gente chama de linking. O Brasil sequer tem o mercado para pensar em exportar e se relacionar com outros mercados.
Da forma como está, o decreto ajuda o Brasil a cumprir as metas do Acordo de Paris de redução de emissões?
Não, não ajuda. Quer dizer, ele não ajuda diretamente, ele ajuda indiretamente, porque ele vai estabelecer que será preciso setores criarem os seus planos setoriais, o que significa que os setores vão precisar propor medidas mitigatórias, e essas medidas vão ajudar nas metas do Acordo de Paris e da NDC brasileira. Mas o decreto não fala quanto os setores devem reduzir, ele incentiva que os setores façam seus respectivos planos setoriais de redução de emissão.
Então deixa a criação de metas na mão dos próprios setores?
Exato. Inclusive houve um debate sobre quem iria fazer, se haveria alguém para revisar, ou se não. O decreto faz nada mais nada menos do que isso: cria essa base regulatória para que os segmentos possam desenvolver e trabalhar nos seus planos setoriais. Ele não estabelece metas, então só pode ajudar na NDC indiretamente, via a elaboração desses planos setoriais de mitigação.
E de que forma um mercado regulado auxilia os países a bater a meta e frear a crise climática?
Um mercado regulado ajuda porque nele se estabelece um limite de emissão. Dessa forma, o país pode estabelecer esse limite próximo à sua meta. Claro que um país não usa só o mercado de carbono para alcançar sua meta, e, a depender da particularidade do setor, você vai ter um tipo de instrumento mais adequado para ele.
Para a indústria, geralmente é o mercado de carbono; para [o setor de] combustível, geralmente é um imposto. É importante pensar [também] em instrumentos econômicos e de comando de controle. Gerindo todos esses instrumentos, o país consegue fazer com que eles levem a uma emissão que esteja alinhada à meta.
Uma das críticas é que o decreto conflita com o RenovaBio, que é uma iniciativa do Ministério de Minas e Energia (MME) para expandir a produção de biocombustíveis, fundamentada na previsibilidade e sustentabilidade ambiental, econômica e social. Poderia explicar como ocorreria esse conflito?
Isso também é outro tema seríssimo. O RenovaBio é um programa em que basicamente existe a geração de créditos de descarbonização, que seriam os CBios, mas eles estão voltados apenas para o setor de transporte, ligado às distribuidoras. Foi criada uma meta, que foi revisada por causa da pandemia, então o próprio RenovaBio já está confuso por si só. Quando ele interage então com essa proposta [decreto], a gente está juntando duas coisas confusas, ou seja, confusão completa. Teoricamente ter um RenovaBio e ter um mercado de carbono não seria um problema, mas você tem que harmonizar essas políticas de modo que você não acabe prejudicando duplamente um setor, o que é uma preocupação.
Se você tem vários instrumentos acontecendo simultaneamente, é necessário garantir que não exista dupla contabilização. Não pode existir um fardo duplo sobre um segmento. Se você colocar o RenovaBio e também um tributo sobre o setor de transporte, você terá um problema com certeza. É necessário que tudo esteja muito bem orquestrado, e parece que essa orquestra não está muito bem afinada. Um está tocando uma escala de sol, outro em escala de fá, outro em escala de mi, e ninguém está se entendendo muito bem, porque cada um está tocando em uma orquestra diferente. É preciso harmonização entre essas políticas para que haja um alinhamento entre essas propostas.
Por fim, como conciliar a crise econômica e social que o Brasil vive, em um momento de crescimento da fome e da pobreza, com a necessidade de atender às metas do Acordo de Paris e reduzir as emissões de gases estufa?
A grande questão da agenda climática é que, em um país em crise econômica, a agenda prioritária vira a geração de emprego e renda, isso é fato. Porém é possível pensar um plano de recuperação econômica para o país que não negligencie ou desconsidere como um todo outras pautas que também são importantes, como a União Europeia e os Estados Unidos estão fazendo.
O Brasil tem metas, compromissos que já foram pré-acordados, então não pode falar que “tem uma pandemia agora” e desconsiderar tudo. Não existe isso, até porque os outros países estão fazendo a parte deles. O que tem que ser feito é se pensar uma estratégia de médio a longo prazo de recuperação econômica, porque os estudos mostram que os impactos econômicos da pandemia vão perdurar ainda por alguns anos, então a economia brasileira precisa se recuperar do ponto de vista econômico e social, endereçando ao mesmo tempo as agendas ambientais, de governança e sociais, porque são as importantes também. Não é porque eu tenho um olhar para a economia que eu vou acabar com as florestas. É possível fazer uma coisa harmônica, mas isso no Brasil, infelizmente, não está acontecendo: não tem um plano que leve isso em conta.
Fonte: Publica