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conflitos no campo

STF abre conciliação em caso de terra indígena pressionada no Mato Grosso


Os não indígenas da Terra Indígena (TI) Kayabi, localizada na fronteira entre o Mato Grosso e o Pará, conseguiram uma vitória judicial no último dia 26 de maio, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli intimou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a se manifestar sobre a possibilidade de conciliação no processo movido pelo estado do Mato Grosso contra a demarcação do território homologado em 2013. O registro da área em cartório está suspenso desde novembro de 2013, quando o ministro Luiz Fux deu decisão liminar favorável ao Mato Grosso com base na tese do marco temporal.

Na decisão de maio, Toffoli se refere a um “ambiente favorável às tratativas de conciliação”, o que foi negado por fontes ouvidas pela Agência Pública a maioria contrária a qualquer possibilidade de conciliação, havendo apenas uma divisão minoritária entre os Kayabi, segundo a apuração. Caso a conciliação prospere, grileiros, madeireiros, garimpeiros e agropecuaristas podem ser beneficiados, em detrimento dos povos Kayabi, Munduruku e Apiaká que habitam o território e foram historicamente esbulhados de seu território, inclusive sendo afetados pela construção de usinas hidrelétricas – há, ainda, evidências de povos isolados no local.

O grupo Kayabi favorável a conciliação é da aldeia Kururuzinho, ligada à Associação Kawaip-Kayabi. Em outubro de 2019, Juvenildo Kayabi Munduruku e Elenildo Kayabi, que à época presidiam a organização, demandaram a reabertura do processo de conciliação. Nenhum deles está constituído no processo judicial. Elenildo, que já foi recebido pelo presidente da Funai Marcelo Xavier em mais de uma ocasião, é um dos signatários de carta intitulada “Deixem o indígena brasileiro trabalhar”, publicada em abril de 2022, na Folha de S. Paulo, por indígenas pró-garimpo. Em seu perfil do Facebook, Elenildo posa com o presidente Jair Bolsonaro (PL). A Pública entrou em contato com a associação e com seu atual presidente, Diego Paleci, mas não obteve resposta até a publicação. Elenildo Kayabi preferiu não se pronunciar.

No ofício apresentado pela Kawaip-Kayabi, é apontado “diálogo frutífero” com a Funai nesse sentido. Como mostrou reportagem da Pública de 2020, o servidor Francisco das Chagas Lopes Rocha é quem estaria atuando favoravelmente à conciliação junto aos indígenas. O envolvimento de Rocha foi reforçado pelas fontes ouvidas para esta reportagem. Procurado, Rocha respondeu ao contato inicial da reportagem, mas não deu retorno até a publicação.

Em 1º de junho, já após a decisão de Toffoli, a Kawaip-Kayabi solicitou ingresso como assistente litisconsorcial na ação, demandando também que o processo fosse remetido à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), ligada à Advocacia-Geral da União (AGU). O pedido é assinado pelo advogado Cléber da Silva Camargo, que em suas páginas do Facebook tem uma série de posts pró-agronegócio e pró-Bolsonaro. Procurado, Camargo não deu retorno até a publicação.

As fontes ouvidas pela reportagem não quiseram se identificar por temerem represálias. Para elas, não há “cenário favorável”, como apontado pelo ministro do STF, já que os indígenas, segundo os relatos, estariam sofrendo ameaças e pressões, tanto por telefone quanto presencialmente. Em um áudio obtido pela reportagem, um indígena que se opõe à conciliação relatou preocupação de ser morto por conta de seu posicionamento.

Localização da terra indígena Kayabi, na fronteira entre o Mato Grosso e o Pará

Uma das pessoas com quem a Pública conversou destaca que o processo de conciliação sequer deveria ocorrer, já que a Constituição estabelece que as terras indígenas “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. 

A fonte também aponta a localização estratégica da TI Kayabi e os impactos em outros territórios protegidos que uma decisão definitiva contra a demarcação pode provocar. “Se eles derrubam a parte do Mato Grosso, eles vão ter acesso às terras Munduruku, ao Parque Nacional [Parna] do Juruena, a todas as unidades de conservação do Sul do Amazonas, então é um veio para eles invadirem tudo porque ali é uma barreira de proteção”, explica. Além da TI Munduruku, a Kayabi também está próxima das TI Pontal do Apiaká e Isolados e Sai Cinza, além do Parna do Rio Novo.

Em julho de 2020, após uma decisão do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, convocando “todos os envolvidos” para discutir o processo movido pelo Mato Grosso, reportagem da Pública revelou parte dos atores interessados na disputa. Entre os beneficiados por uma possível anulação da demarcação estão a Agropecuária Vale do Ximari Ltda, que à época era controlada pelo bilionário fundo canadense Brookfield, e outros latifundiários, como Jeremias e Moisés Prado dos Santos, que são acusados de invadir mais de 13 mil hectares do território Kayabi, e Jair Roberto Simonato, com fazendas que totalizam 8,8 mil hectares.

Simonato foi protagonista de outra reportagem da Pública, que foi ao ar no início de agosto de 2020. A apuração revelou que o pecuarista transferiu mais de 3 mil cabeças de gado de uma das suas fazendas localizadas no interior da TI Kayabi para uma propriedade fora do território indígena, prática conhecida como “lavagem de gado”. Os animais, criados ilegalmente e “esquentados”, foram parar na JBS, dona da Friboi e da Seara.

Trecho entre as terras indígenas Apiaka e Kayabi

Quem está interessado na redução do território

Em novembro de 2006, a Polícia Federal do MT deflagrou a Operação Kayabi, que visava deter mais de uma centena de acusados de crimes ambientais e grilagem no interior da TI, incluindo Simonato e os dois Prado dos Santos citados acima. Entre as pessoas que foram presas preventivamente na ocasião também estão ao menos 12 pessoas que tentaram ingressar como assistentes litisconsorciais na ação movida pelo estado do Mato Grosso ao longo do processo.

Pelo menos dois desses interessados foram sócios de empresas de exploração madeireira ou agropecuária. André Juliano Eger era sócio da AJE Indústria e Comércio de Madeiras, que consta como baixada desde 2010. Osmilda Sibila Eger, que é mãe de André, também foi uma das pessoas presas em 2006 que tentaram ingressar na ação. A outra pessoa é Francisco Lino de Paiva, que foi sócio da Tico Paiva Intermediação e Comércio de Gado, baixada em 2019. Junto a ele, também tentaram ingresso Jeremias e Moisés Prado dos Santos. Paiva foi um dos autores de ação judicial de 2004, que pleiteava a suspensão da demarcação administrativa da TI Kayabi, anos antes do processo ser finalizado.

Ao longo do processo, ao menos 34 “pessoas físicas” tentaram ingressar como assistentes litisconsorciais no processo movido pelo Mato Grosso, dizendo-se legítimos possuidores de terras, a maior parte delas na parcela paraense da TI Kayabi. A despeito da ação do MT referir-se à parcela matogrossense do território, esses produtores rurais com atuação no Pará objetivam que os efeitos da suspensão da demarcação se expandam também para a sua área, o que pode ampliar o efeito sobre os Kayabi e demais povos indígenas locais.

Em uma das ações, interposta pelo escritório Ferraz Advogados Associados, de Rudy Maia Ferraz, chefe da assessoria jurídica da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), eles alegam depender dos terrenos para sobrevivência. Em outra, os não-indígenas contestam a atuação do Ibama, afirmando que o órgão faz “invasões e depredações patrimoniais”. Além disso, alegam que em Jacareacanga o registro cartorial da terra indígena continua valendo, o que iria de encontro à decisão do STF.

A Pública entrou em contato com os fazendeiros que tentaram ingressar como assistentes no processo ou com suas defesas. Em nota, o escritório de Rudy Maia Ferraz, que representa André e Osmilda Eger disse possuir “uma política de não comentar casos em curso”. Francisco Paiva não deu retorno até a publicação. Jeremias e Moisés Prado dos Santos afirmaram estar no território desde 1988, questionaram a ação de ONGs na região e disseram conviver “pacificamente” com os indígenas e que “não há por que brigar” já que há terra para todos. Eles disseram manter interlocução com lideranças indígenas como Elenildo e também com Francisco Rocha, servidor da Funai. Confira a íntegra das respostas de Jeremias e de Moisés.

Além das pessoas físicas, ao menos três empresas tentaram ingresso como assistentes litisconsorciais. Uma delas é a Agropastoril, Madeireira e Colonizadora Sanhaço, que é ligada ao Grupo CR Almeida, da família do empresário Cecílio do Rego Almeida, falecido em 2008. O braço do grupo no setor de engenharia é responsável pela construção de grandes obras, como a duplicação da Rodovia dos Imigrantes e o Rodoanel, ambas em São Paulo. A organização também atua na concessão de diversas rodovias ao redor do país.

Além de expertise em infraestrutura e concessões, o grupo empresarial também se destaca como pivô do maior caso de grilagem do país. A Indústria, Comércio, Exportação e Navegação Ltda (Incenxil), ligada à CR Almeida e a seu fundador, se dizia dona de uma área de 4,7 milhões de hectares na região da Terra do Meio, no Pará, área equivalente ao tamanho de Bélgica e Holanda somadas. Almeida também reivindicava uma outra área na mesma região, de cerca de 1,5 milhões de hectares. As terras foram questionadas judicialmente.

O administrador da Sanhaço e advogado do Grupo CR Almeida, Eduardo Toledo, também já foi alvo do Judiciário. Toledo e sua empresa Ônix Empreendimentos Minerários foram investigados por um esquema de emissão de títulos minerários falsos no Xingu, que tinha como objetivo extrair ilegalmente areia e seixo nas proximidades das obras de Belo Monte. De acordo com a investigação, a fraude envolvia o chefe do Departamento Nacional de Produção Mineral do Pará, João Bosco Pereira Braga.

Em 2013, a Sanhaço entrou com mandado de segurança tentando impedir o iminente decreto de homologação. A ação foi movida em conjunto com a Mandarim Agropecuária, igualmente ligada ao Grupo CR Almeida. Na petição, as empresas alegam ser proprietárias de diversas terras em Apiacás e em Alta Floresta, adquiridas do estado do Mato Grosso por meio do Instituto de Terras do Mato Grosso (Intermat), em dezembro de 1985. A ministra Rosa Weber indeferiu a liminar em março de 2014.

A Pública enviou uma série de perguntas para a CR Almeida via e-mail e fez contato telefônico, mas não obteve retorno até a publicação. 

Outra empresa é a Madeireira e Agropecuária Sópau S/A, que na Receita Federal tem como sócios os empresários Osório Victor Biazus e Enio Roberto Dias dos Reis, este segundo falecido em agosto de 2019. O ramo de atuação de ambos é o setor de transportes urbano ou intermunicipal. Biazus é dono da Viação Canoense, de Canoas (RS), e de outras empresas, enquanto Reis era dono da Viação Alto Petrópolis, de Porto Alegre (RS), entre outras. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, a Sópau pertencia também ao Grupo CR Almeida e esteve envolvida em outro esquema de grilagem, dessa vez na própria cidade de Apiacás. A reportagem tentou contato com Biazus por meio de uma das suas empresas, mas não houve retorno até a publicação.

A mais recente empresa a tentar ingresso é a já citada Agropecuária Vale do Ximari, que recentemente passou para o controle de Carlos Arruda Garms Neto e Marcos Fernando Garms Filho. Ambos são ligados à Cocal Energia Responsável, empresa familiar do ramo sucroenergético. Antes de assumir cargo na empresa fundada por seu avô, Carlos Arruda trabalhou na Brookfield, antiga controlada da Ximari. A Cocal já recebeu investimentos milionários do Bndes para produção de energia sustentável no interior de São Paulo.

A companhia fez a solicitação de ingresso no processo em 30 de maio, apenas quatro dias após a decisão de Toffoli. Os autos da ação judicial no STF mostram que os advogados que representam a empresa obtiveram procuração para tal em 23 de maio, exatamente três dias antes do ministro do Supremo levantar a possibilidade de conciliação.

Em nota, a Cocal Energia afirmou não ter adquirido a Vale do Ximari e não ter nenhuma relação direta com as terras. A reportagem não conseguiu contato com Carlos e Marcos Fernando Garms, mas o espaço segue aberto caso entrem em contato posteriormente. 

Até o momento, nenhum dos não indígenas interessados foi aceito no processo, a maior parte por oposição da União. Além da Kawaip-Kayabi, a Associação Indígena Dace do Povo Munduruku do Baixo Rio Teles Pires, contrária à conciliação, também aguarda decisão acerca do ingresso como assistente litisconsorcial.

Além de interesses de fazendeiros e madeireiros, a Terra Indígena Kayabi também é visada por garimpeiros e mineradoras. Reportagem da Pública de 2020 listou o território como um dos mais visados na Amazônia Legal. De acordo com o site Amazônia Minada, há 24 requerimentos de mineração que incidem na TI, com data de solicitação entre 1996 e 2021. Eles abrangem mais de 68 mil hectares, sendo cerca de 38 mil no Mato Grosso e o restante no Pará. A maior parte refere-se a minério de ouro, mas também há solicitações por minério de cobre. Nem toda a área da solicitação é incidente no território indígena.

Ação de Dias Toffoli pode reduzir TI Kayabi e beneficiar grileiros, madeireiros, garimpeiros e agropecuaristas

TI no Pará mostra que “conciliação” não foi benéfica para indígenas

Exatamente dois anos antes da decisão de Toffoli, em 26 de maio de 2020, o ministro Gilmar Mendes autorizou que o município de São Félix do Xingu (PA) e a União negociassem a redução da Terra Indígena Apyterewa, no Pará. A demarcação do território, homologado em 2007, foi questionado pela administração municipal e por associações de agricultores locais por meio de um mandado de segurança.

Na ocasião, o Procurador-Geral da República apresentou parecer demandando que o MPF e os indígenas Parakanã e Araweté fossem ouvidos, o que não havia ocorrido. Em outubro de 2020, a Funai de Marcelo Xavier se manifestou positivamente em relação à conciliação.

Após a decisão de Gilmar, a TI passou a viver uma escalada de violência e destruição ambiental. Em novembro de 2020, uma base do Ibama chegou a ser cercada por invasores, que hostilizaram a equipe de fiscalização e incendiaram uma ponte que dava acesso à terra indígena, segundo o jornalista Rubens Valente. Entre agosto de 2020 e julho do ano seguinte, a TI Apyretewa foi a mais desmatada do país, com 68,5 km² destruídos, em um aumento de 8,2% em relação ao mesmo período do ano anterior. Após uma série de negociações conflituosas, o mesmo Gilmar Mendes encerrou as possibilidades de conciliação, em 14 de dezembro de 2021.

Até hoje não houve a desintrusão do território indígena, uma das condicionantes que o Estado brasileiro deveria cumprir no âmbito do licenciamento da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que fica na região. A despeito disso, mais de 1,5 mil invasores ainda estão no interior da TI Apyterewa. 

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