Brasília (DF) – Na última semana, representantes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) vieram a Brasília para cobrar a atuação das instituições brasileiras na defesa dos direitos indígenas e garantia de segurança na região Norte do Brasil. A visita se deu em meio à repercussão do assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, que trabalhava como assessor da Univaja após ter saído da Funai durante o governo de Jair Bolsonaro (PL-RJ).
Na capital federal, os representantes se reuniram com os Poderes Legislativo e Judiciário, mas afirmam não ter tido retorno do Executivo, liderado por Jair Bolsonaro. Assim que o desaparecimento de Bruno e Dom foi reportado, o presidente chamou a viagem a trabalho dos dois de “aventura não recomendável”.
Ainda assim, os representantes da Univaja vieram à capital federal com o intuito de dialogar. “A máxima do povo Marubo é sempre dialogar, independente da condição e situação”, explicou Eliesio Marubo, advogado e procurador jurídico da Univaja, em coletiva na quinta-feira (23).
“Em nome da Univaja e do movimento indígena do Vale do Javari, se por acaso existir alguém do Poder Executivo disposto a dialogar de forma institucional, de acordo com os princípios básicos da administração, e que tenha o mínimo de respeito com o Estado Brasileiro e suas instituições, eu faço esse convite”, acrescentou o advogado. “Fico em Brasília e fico à disposição para dialogarmos sobre os problemas da Amazônia e sobre os problemas do Vale do Javari no que compete à segurança, orçamento, finanças, e no que compete à toda a competência dos órgãos públicos ali na região”.
Sem retorno do governo federal, os representantes se reuniram com deputados, senadores, procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na avaliação de Eliesio Marubo, as reuniões foram proveitosas e já mostram bons resultados. Depois da conversa com Barroso, por exemplo, o ministro determinou encaminhamentos em uma ação sigilosa sobre atuação específica em terras indígenas, considerada importante pela Univaja.
Além disso, atualmente existem comissões externas para investigar o crime e a violência contra os povos indígenas na Câmara e no Senado; além de um grupo de trabalho com o mesmo fim no CNJ. Senadores e deputados viajarão juntos esta semana para o Vale do Javari a fim de investigar o crime e as condições de vida na região.
“Nossa grande questão em Brasília é não só estabelecer o diálogo das instituições e com o governo brasileiro, como também trabalhar no fortalecimento das instituições que representam o Estado brasileiro”, finalizou Eliesio Marubo.
A reportagem questionou a Funai, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Presidência sobre o interesse e disponibilidade dos órgãos em estabelecer contato com a Univaja, mas não obteve resposta.
Na Câmara
A segunda-feira (20) começou com um encontro informal e fora da agenda que reuniu quatro representantes da Univaja e os parlamentares Joênia Wapichana (REDE-AP), José Ricardo (PT-AM), Alice Portugal (PCdoB-BA) e Hélder Salomão (PT-ES), todos integrantes da Comissão Externa da Câmara.
De acordo com apuração da Agência Pública, a reunião buscou alinhar os objetivos da comissão com a Univaja e apresentar as pautas prioritárias para os povos da região. Entre elas, estão que a Univaja seja escutada de forma efetiva pela comissão, que o inquérito seja conduzido com seriedade e profissionalismo pelas entidades competentes, e que a Câmara garanta a segurança dos indígenas, comunidades e servidores públicos que atuam com a proteção da floresta e seus povos — tanto a Câmara quanto o Senado já solicitaram oficialmente que a última demanda seja garantida.
Os representantes também cobraram que fossem elucidadas as circunstâncias da morte de Maxciel Pereira, também indigenista da Funai, que foi assassinado na cidade de Tabatinga, no Amazonas, ainda em 2019. Eles pediram que fosse investigado o motivo da demora para a conclusão do inquérito. A Pública revelou que a família do indigenista conduziu uma investigação própria do caso, mas nunca recebeu retorno da PF.
Leonardo Lenin, indigenista do Observatório dos Povos Isolados (OPI) participou da reunião com a Univaja e explicou a reportagem que todos que trabalham na região sofrem ameaças de morte, “do tipo ‘ou vocês param de fazer o trabalho que vocês estão fazendo aqui, ou vocês vão ter o mesmo final que o Maxciel Pereira teve’”.
Como uma das maneiras de aumentar a segurança, a reunião abordou a necessidade da regulamentação do poder de polícia da Funai, demanda dos servidores do órgão que atuam em campo. Uma parlamentar presente afirmou já estar trabalhando na minuta de um projeto de lei sobre o tema.
Após o encontro, Beto Marubo, da Univaja, explicou à Pública que a entidade relacionou a falta da regulamentação do poder de polícia da Funai aos assassinatos que ocorreram no Vale do Javari. “A Funai é um órgão que tem a atribuição de fiscalização, mas não tem poder pra fazer tal. Nós temos o Maxciel [Pereira] morto em 2019, nós temos agora o Bruno, e eles reivindicaram essa pauta. Como fazer fiscalização, que é uma atribuição da Funai, se o órgão não tem um poder de polícia regulamentado? A Funai vai atrás da Polícia Federal e do Ibama, mas nem todo mundo está disponível e por aí vai. É isso que a gente ressaltou aí [na reunião]”.
Ele considera que o fortalecimento e regulamentação do poder de polícia tornariam a Funai um órgão capaz de minimizar a situação do crime na região, mas reconhece que não existe força política para aprovar essa regulamentação no Congresso atual.
Além dos quatro parlamentares que estavam na reunião, outros 11 deputados de seis partidos (PT, REDE, PCdoB, PSB, PSD e PSOL) compõem a comissão criada em 15 de junho de 2022 para “acompanhar, fiscalizar e propor providências acerca da apuração das circunstâncias” do crime. No dia seguinte à reunião informal, os representantes da Univaja participaram de sessão oficial da comissão na Câmara. Lá, Elcio Manchineri, assessor da APIB, também falou em nome dos povos indígenas: “Esse foi um caso que tinha um jornalista estrangeiro, fora outros massacres que aconteceram na floresta e não foram divulgados”.
“Há um certo clima de medo lá. Se duas pessoas de expressão nacional e internacional foram assassinadas, imagino o que não pode ocorrer com outras lideranças que não têm toda essa expressão”, ressaltou o deputado José Ricardo, coordenador da comissão, em entrevista. Ele explicou que a intenção do grupo é “levar sugestões e cobranças em relação à estrutura pública no atendimento dos povos indígenas” em “uma região de muita falta de Estado”. “A maioria dos órgãos públicos estão lá de forma extremamente reduzida. É uma área onde notoriamente existe a história de crime organizado, narcotráfico e tudo isso deve influenciar também. O Brasil precisa ser cuidado”.
A deputada Alice Portugal aponta que “o trabalho tem um objetivo pontual em função do episódio, mas acima de tudo um objetivo sistêmico”. “Esperamos que o debate possa dar suporte legislativo para o retorno do trabalho de defesa das comunidades indígenas, dos povos isolados, do meio ambiente e da floresta”.
No Senado
A Comissão Externa do Senado também escutou os representantes. Na quarta-feira (22) às 10h, Eliesio Marubo foi um dos que compareceu ao Senado e narrou os problemas e demandas dos povos do Vale do Javari. Na audiência também falaram Fernando Vianna, presidente da Indigenistas Associados (INA), e Geovânio Oitaia Pantoja, coordenador-geral substituto de Índios Isolados e Recém-Contatados da Funai. Mesmo estando em Brasília, o representante da Funai falou virtualmente, o que gerou críticas por parte dos senadores.
À tarde, às 14h, seria a vez do comparecimento do ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, mas, por indicar que enviaria um representante da Polícia Federal ao invés de comparecer, a sessão foi adiada.
“Esse é um caso emblemático de descumprimento da Constituição da parte do governo, que não vem dando a atenção devida à sua responsabilidade de garantir a integridade das terras indígenas, proteger esses povos originários, combater os ataques ao meio ambiente e as atividades econômicas ilegais”, explicou o senador Humberto Costa (PT-PE) à Pública. “Nada disso têm sido feito, porque houve um desmonte de toda essa estrutura de fiscalização que havia no Brasil, então é muito importante que o Senado Federal possa acompanhar isso, denunciar e imaginar propostas para viabilizar o cumprimento daquilo que a Constituição prevê”.
Eliesio Marubo conta que uma das sugestões apresentadas aos parlamentares foi a ampliação do orçamento dos órgãos Executivos de fiscalização: “Uma questão que nós abrimos diálogo com o Parlamento é que o Poder Executivo, por meio da Funai, sempre diz que não tem condição financeira operacional para realizar as atividades em campo. Então nós estamos sugerindo ao Parlamento brasileiro que faça um crédito suplementar, um crédito adicional, um remanejamento de despesa ou um destaque orçamentário no orçamento vigente na unidade da Funai para que ela realize as suas funções principais, que são a fiscalização e a proteção da terra”.
A Comissão Externa do Senado, cujo presidente é o senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), está atuando em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, presidida por Costa. A intenção, explicam os senadores, é aumentar a possibilidade de ação da comissão temporária ao uní-la com uma permanente, que detém mais recursos para realizar o trabalho. Participam do grupo nove senadores de partidos como Cidadania, União Brasil, PT, Rede, PSD, Progressistas e PDT. O foco dos senadores, além de fiscalizar as providências adotadas pelos órgãos responsáveis na elucidação do crime, é entender os motivos para o aumento da violência na região Norte, em especial contra “povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e jornalistas”.
Costa explica que Câmara e Senado devem trabalhar juntos. Nos dias 30 de junho e 1º de julho, senadores e deputados irão ao Vale do Javari para “diagnosticar [também] as condições de trabalho dos servidores da Funai”, como explicou a deputada Alice Portugal. “Nós precisamos saber: há suporte? Há plano de trabalho? Há segurança? Qual é a estrutura? Como trabalham? Como estão alojados? Acho que essa materialidade do trabalho do Estado na Amazônia precisa ser diagnosticada, e os representantes populares têm credencial para trazer isso formalmente”.
Com o diagnóstico feito, ela levanta a possibilidade do Congresso atuar a partir do reforço legislativo, com a criação de novas leis, ou por meio de uma provocação ao Ministério Público Federal para que a lei em vigor seja cumprida. “Por antecipação, posso dizer que a Funai está sendo esvaziada de maneira criminosa e precisa ser restaurada”, conclui a deputada.
Equipes de reportagem da Agência Pública estão na Amazônia, no Vale do Javari, desde o dia 9 de junho, e mostram que funcionários da Funai na região expressam raiva, frustração e impotência diante da situação precária a que estão submetidos.
Na Justiça
Além da agenda no Legislativo, os representantes da Univaja também se reuniram com ministro Barroso, do STF, e com representantes do CNJ.
No início das investigações, Barroso deu cinco dias de prazo para que a União tomasse “todas as providências necessárias” à localização dos dois desaparecidos, em retorno a um pedido formulado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) na ADPF 709, que aborda o genocídio da população indígena e medidas sanitárias da Covid-19. Caso descumprida a ordem, a União seria multada em R$ 100 mil por dia de atraso.
A ação do ministro foi lembrada por Beto Marubo, que compareceu ao STF na terça-feira (21) com Eliana Torelly, subprocuradora-geral da 6ª Câmara do MPF e responsável pelos temas que envolvem populações indígenas e comunidades tradicionais.
O representante relatou ao ministro que a região em que vive seu povo está abandonada pelo Estado, com constantes alegações das Forças Armadas de falta de recursos para operações necessárias e dificuldade da Polícia Federal em articular ações sem apoio das Forças Armadas. De acordo com matéria no site do STF, também apontou as consequências da atuação das quadrilhas internacionais envolvendo brasileiros, peruanos e colombianos que exploram pesca ilegal e caça ilegal e disse que Bruno Pereira foi morto por ter feito o mapeamento dessas atividades ilegais e da logística das quadrilhas.
“Estamos perdendo a soberania da Amazônia para o crime organizado”, teria lamentado Barroso durante a conversa.
Além do encontro no STF, também na terça o CNJ promoveu uma audiência para ouvir os representantes. Na reunião, o presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luiz Fux, se comprometeu com a melhoria da infraestrutura de comunicação da comarca de Atalaia do Norte (AM).
Na reunião com o CNJ, falaram Beto Marubo e a viúva de Bruno Pereira, a antropóloga Beatriz Matos. Beto argumentou que “o Judiciário deve estar atento ao que se passa no Vale do Javari, que é a renúncia do Estado numa região onde a retórica oficial é de soberania. Não existe soberania com o esfacelamento da política indigenista, os criminosos estão se associando com várias atividades ilícitas no contexto de fronteira e matando nossos parceiros.”
“É o judiciário que vai dirimir grandes questões que nós temos”, apontou Eliesio Marubo em coletiva de imprensa dois dias depois da reunião de seu irmão com o ministro. “É importante que o Poder Judiciário se mobilize para não só investigar profundamente este fato que aconteceu e descubra quem de fato são os mandantes desse crime terrível que aconteceu no Vale do Javari, como também dê resposta para a família do Maxciel para indicar o que aconteceu com ele de fato e quem são os mandantes, a quem interessava a morte do Maxciel. É importante que o Poder Judiciário cumpra seu papel”.
A primeira semana dos representantes em Brasília encerrou com uma homenagem aos mortos. Na sexta (24), a Univaja organizou um ato ecumênico de despedida no Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas da Universidade de Brasília (Maloca), na Universidade de Brasília.
“Ele [Bruno] teve que voar junto com os espíritos encantados para nos proteger de lá, de onde vai acompanhar a continuidade da nossa luta, que também foi sua. Luta por justiça social, luta por respeito e dignidade”, disse Eliesio Marubo na ocasião.
Publica