Há décadas, o xamã Yanomami Davi Kopenawa se mantém firme na luta pelos direitos indígenas e pela defesa da “Terra-Floresta”, que, para seu povo, não é apenas um território, mas uma entidade viva onde coexistem seres humanos e não-humanos, essencial para a manutenção da vida no planeta e para evitar a “queda do céu”, ou o fim do mundo. Sua liderança política, intelectual e espiritual, respeitada mundialmente, será mais uma vez reconhecida: a Universidade Federal de Roraima (UFRR), no estado onde vive, acaba de anunciar que concederá a ele o título de Doutor Honoris Causa, a máxima distinção da academia.
Mesmo com tudo isso, ele diz temer pela própria vida e de outros líderes como ele. “Não tenho medo de falar com o homem branco, de discutir e explicar. Mas tenho medo de pistoleiros que podem nos perseguir e acabar com a liderança que está lutando. Porque, para eles, estamos atrapalhando seu trabalho”, relata. Sua preocupação tem sentido: nos últimos anos, a Terra Indígena Yanomami vem sofrendo uma nova invasão garimpeira – a primeira ocorreu na década de 1980 – que tem provocado uma tragédia humanitária nas comunidades, segundo entidades indigenistas. Kopenawa, presidente da Hutukara, a principal associação Yanomami, está mais uma vez na linha de frente do enfrentamento às invasões.
Atento ao que ocorre em outras partes da Amazônia, ele conta ter acompanhado de sua aldeia as notícias sobre os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari (AM), por pescadores ilegais, em junho. “Os dois não estavam roubando, estavam do lado da nossa luta”, afirma. Embora não conheça a região e as lideranças da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), diz que “são irmãos que moram na floresta”. “Eles ficam longe da minha comunidade e eu fico longe da deles também, mas posso denunciar os problemas que eles estão enfrentando”, aponta.
Para o xamã Yanomami, as transformações no clima são consequência dos ataques do “povo da mercadoria” à Terra-Floresta e se manifestam sobretudo na forma de xawara, ou “epidemias”, relacionadas às fumaças produzidas, por exemplo, pelas máquinas do garimpo e queima do ouro e mercúrio. “As mudanças climáticas não se criam sozinhas: as pessoas estão desmatando, queimando, derrubando milhares de árvores grandes para negociar, fazer papel e mandar nossas madeiras para outro lugar”, explicou à Agência Pública. “E a mudança climática mais forte [está associada à] mineração, que não vai parar.”
A ofensiva do garimpo ilegal na TI Yanomami é marcada por assassinatos, casos de abuso sexual, doenças, ameaças a indígenas isolados, aumento da desnutrição infantil e destruição ambiental. A situação é tão grave que em julho a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o governo brasileiro adote medidas para proteger “a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e à água potável” aos Yanomami. Sobre a ineficiência do governo federal em expulsar os invasores, Kopenawa diz que “esse governo não quer saber, não quer respeitar a sua própria lei.” “Para mim, [o presidente Bolsonaro] é um homem mau.”
Embora pense que se Bolsonaro ficar por mais quatro anos “vai estragar toda a nossa área indígena”, o líder Yanomami também não acredita de imediato nas promessas de campanha feitas pelo ex-presidente Lula, o melhor colocado nas pesquisas eleitorais, para os povos indígenas. “Só vou acreditar se ele realmente criar um ministério indígena, melhorar a saúde, a educação e [respeitar] os direitos do povo [indígena], o direito à terra. Aí vou acreditar, agora não”, declara.
Kopenawa conversou com a Pública no fim de julho, durante uma breve visita a São Paulo para acompanhar o lançamento da exposição de Joseca Yanomami no Masp, a primeira individual do artista, que retrata o universo cosmológico de seu povo.
Leia a seguir íntegra da entrevista:
Nos anos 1980, houve a primeira grande invasão de garimpeiros no território Yanomami e você precisou viajar o Brasil e o mundo para denunciar o que estava acontecendo com seu povo. Deu certo: as autoridades te ouviram e tiraram os garimpeiros. Agora, a TI Yanomami está sofrendo mais uma vez com o mesmo problema. Como é para você ter que reviver essa experiência?
Meu povo Yanomami que está lá na ponta, na base do Brasil, por muito tempo está ocupando esse lugar. Hoje, em 2022, retornaram os invasores que procuram as riquezas da terra – ouro, diamante, cassiterita e outras pedras preciosas que eles gostam de usar para fazer mercadoria, colocar nas lojas da cidade, e as pessoas gostam de usar. Mas elas não servem para mim, para os povos indígenas, só servem para o povo da cidade. Você me perguntou o que eu sinto ao olhar o homem da cidade que chega lá, pessoa estranha, sem consulta à comunidade. Eles são como animais selvagens, como queixadas [porcos do mato]. Nasci na minha comunidade, na boa, tranquilo, quando era menino não tinha invasores. Achei muito ruim porque eles estão estragando nossas casas, destruindo nossas florestas e rios e a beleza da nossa terra. Os garimpeiros são antigos, vêm destruindo, poluindo, e quando o ouro acaba, eles deixam a terra destruída, só tiram as pedras preciosas e vão embora. E para nós é muito ruim, fica a água suja, chegam doenças que eles transmitem para o povo indígena. Os homens da cidade que chegam na nossa casa vão armados e carregam a doença em seus corpos. É nesse ponto que fiquei revoltado, porque são invasores que deixam a doença na nossa comunidade, e também a bebida. E o homem que sai sem mulher chega lá e fica usando as nossas índias. Então eu saí para defender meu povo Yanomami.
E agora isso se repete.
A terra Yanomami já foi reconhecida pelo governo federal. Foi muito trabalho, muita luta para demarcar as nossas terras. Os garimpeiros que já foram expulsos, voltaram para lá. Aumentou muito o número de garimpeiros, máquinas, aviões, helicópteros. De garimpeiros colocando balsa no rio, usando mercúrio.
Investigações da Polícia Federal mostram que os garimpos na Terra Indígena Yanomami estão dominados pelo PCC. Você percebe diferença entre a invasão garimpeira de agora e a dos anos 1980?
A segunda invasão veio muito forte. O número de pessoas aumentou muito. Os garimpeiros não estão sozinhos: têm chefes e associações que dão apoio para eles trabalharem e destruírem. Esse governo é diferente, é muito ruim, está maltratando nossa floresta amazônica e o meu povo. As autoridades são contra o meu povo indígena do Brasil. Ficou muito grave [a invasão garimpeira]. Os rios grandes que passam pela terra Yanomami – Uraricoera, que na língua Yanomami é Palimi Ú; Mucajaí; Catrimani; Apiaú – estão todos mexidos. Piorou muito. Muita gente entrou, eles não ficaram com medo quando aconteceu a doença [causada pelo] coronavírus, eles aproveitaram. Garimpeiro não tem medo de doença. Mas nós, da associação Yanomami, reforçamos que também [aqui] ninguém ficou com medo, porque é a nossa luta para defender nossas casas, nosso povo, nossas mulheres, nossos filhos e nosso lugar. Ficou muito ruim para todo mundo, não é só para o índio: quem mora na cidade também está adoecendo.
Dessa vez a invasão dos garimpeiros está pior porque há um governo incentivando?
Dessa vez é pior. Esse governo foi eleito para destruir. O governo [cheio de] militares que está ameaçando nossa floresta e nosso povo não respeita e não gosta de mato, nem de floresta, nem de índio. Querem acabar com a gente. Eles falam que a terra é muito grande para pouco índio. Não é só na terra Yanomami, ele não quer demarcar outras terras, quer explorar. E não só ele, mas outros grupos: os governos federal, estadual e municipal, as polícias, os deputados e senadores estão juntos.
O governo já conseguiu expulsar os garimpeiros da TI Yanomami, numa época em que os recursos tecnológicos eram bem mais escassos. Mas agora, quando cobrado, diz que é muito difícil fazer isso porque a terra é muito grande e tem muita gente ali. Por que você acha que eles se recusam a atuar?
O governo do [Fernando] Collor de Mello foi mandado, não foi ele que teve vontade de demarcar e de tirar os garimpeiros da terra Yanomami. Foi muita luta, uma pressão muito forte sobre ele, até a ONU mandou o governo tirar os garimpeiros. Tirou, demarcou, demorou um pouco, mas vieram outros. Esse governo não quer saber, não quer respeitar a sua própria lei. Para mim, [o presidente Bolsonaro] é um homem mau. Ele está fazendo muita maldade para todos.
Daqui a dois meses, temos o primeiro turno das eleições. O que você acha que acontecerá se tivermos mais quatro anos de governo Bolsonaro?
Se o governo Bolsonaro ganhar, vai estragar toda a nossa área indígena. Ele quer primeiro acabar com as áreas indígenas. A Funai, que quer nos proteger, ficou fraca. Se ele ganhar, vai diminuir a nossa terra demarcada. Esse homem não é honesto, não é boa pessoa. Para mim, ele não pode ser considerado um homem brasileiro. O sangue dele vem dos europeus. Ele está aproveitando para explorar. E ele não está sozinho, tem o apoio de quem compra ouro, de quem faz transporte [do ouro ilegal] de avião e helicóptero e está também negociando e financiando [o garimpo]. Grandes empresários estão atrás de fazer isso.
No começo de junho, mais dois defensores da floresta foram assassinados: o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari (AM). O fato de dois aliados dos povos indígenas terem sido mortos te dá medo?
Isso acontece faz tempo: lutando e matando. Eu vi [as notícias] quando estava na minha terra Yanomami. Não estava na cidade, estava com meu povo quando isso aconteceu. Eram duas pessoas que davam apoio, que tentavam nos proteger. E aí um homem criminoso foi atrás de matar nossos parceiros que estavam tentando nos ajudar. Mandaram alguém pago para acabar com a vida dos dois homens que tentaram proteger nossa floresta amazônica e nosso povos Yanomami e indígena. Isso é muito ruim. Os dois não estavam roubando, estavam do lado da nossa luta, e acabaram com a vida deles. Isso é crime. Não tenho medo de falar com o homem branco, de discutir e explicar. Mas tenho medo de pistoleiros que podem nos perseguir e acabar com a liderança que está lutando. Porque, para eles, estamos atrapalhando seu trabalho. Tenho medo de arma de fogo, pistola, porque bala mata. Mas de falar pela boca e discutir não tenho medo. Tenho direito de reclamar e defender meu povo, de cuidar de onde meu povo mora. Esse é o meu papel.
Agora, as lideranças do Vale do Javari estão fazendo o mesmo périplo que você iniciou há décadas: viajar o Brasil e o mundo para denunciar os ataques a seus povos. Que recado você gostaria de dar para as lideranças da Univaja?
Ele [Bolsonaro] está mexendo com todos nós. Parece que nós somos indígenas selvagens que não sabem de nada, ele pensa que não cuidamos da nossa floresta e da terra, quem cuida da terra é o homem da cidade – ele fala isso. Nunca andei pelo Vale do Javari, não conheço eles, mas somos irmãos que moram na floresta. Defendo qualquer irmão que está nas comunidades, com quem os criminosos estão tentando acabar. É por eles que escolhi essa luta. Eles ficam longe da minha comunidade e eu fico longe da deles também, mas posso denunciar os problemas que eles estão enfrentando, falar com vocês e outros parceiros fora. Hoje em dia, nós, indígenas, não estamos sozinhos, o mundo está de olho. Então, ele [Bolsonaro] não pode acabar com a gente. Isso é crime. Índio é ser humano, os parentes que moram na floresta são seres humanos do nosso criador. Ele não pensa isso, acha que tem direito [de atacar os povos indígenas], mas ele não tem direito de acabar com a vida dos meus parentes. Ele tem responsabilidade porque representa nosso Brasil fora. Para mim, ele trabalha sujo, não está correto.
O ex-presidente Lula tem dito que, caso eleito novamente, homologará todas as terras indígenas, criará um ministério para assuntos indígenas, a ser comandado por um de vocês, o que também promete para a Funai. Você acredita nessas promessas?
Eu conheço o Lula, mas não vou acreditar agora. Falar é fácil, enganar a gente e vocês também. Só vou acreditar se ele realmente criar um ministério indígena, melhorar a saúde, a educação e [respeitar] os direitos do povo [indígena], o direito à terra. Aí vou acreditar, agora não.
O que são mudanças climáticas para você e os Yanomami, Davi? Elas podem ser descritas como “a queda do céu” para toda a humanidade, indígenas e não indígenas?
Nós, povos indígenas, nossas lideranças que lutaram em 1988 [ano da Constituinte], já falávamos um pouco sobre mudanças climáticas. O povo da mercadoria cresceu, o povo da cidade grande, como aqui em São Paulo, Manaus e Brasília. As mudanças climáticas a gente chama de xawara [“epidemia”, para os Yanomami]. O povo cresceu e as mudanças climáticas criaram raiz muito forte. As pessoas que falam em mudanças climáticas é porque estão destruindo. As mudanças climáticas não se criam sozinhas: as pessoas estão desmatando, queimando, derrubando milhares de árvores grandes para negociar, fazer papel e mandar nossas madeiras para outro lugar. E a mudança climática mais forte [está associada à] mineração, que não vai parar. O sol desce, entra na Terra, a Terra esquenta, a poluição levanta, a mudança climática levanta e todo mundo fica doente: adoecem a cidade e a floresta, que fica com árvores secas, com as folhas caindo. Eu, Yanomami, a nossa visão dos xapiri [os espíritos xamânicos que Omama, o criador Yanomami, deixou na terra para cuidarem dos humanos], [é de que as mudanças climáticas] estão crescendo muito porque o capital precisa de muita mercadoria – carro, avião, bicicleta, computador. E as mudanças climáticas do nosso planeta não tem homem que tire, que resolva. Eles podem viajar para gastar dinheiro e fazer grandes reuniões, falar bonito, mas cadê o resultado? As mudanças climáticas só estão crescendo, aumentando, espalhando. Essa é a visão do povo originário Yanomami. Não vou dizer que o homem branco vai resolver: ele resolve na casa dele, no roçado dele, no campo dele. Agora, para nós, ele não vai resolver, não.
Por que, para lutar contra as mudanças climáticas, os não indígenas precisam ouvir e aprender as palavras Yanomami?
Eu, vocês, somos crianças. Vocês trabalham muito, mas nós somos crianças que não reconhecemos esse problema. Os homens da cidade que vieram [da Europa], atravessaram o mar, chegaram aqui e encontraram nossos parentes Guarani e outros moradores da beira do mar. O meu povo que está lá na fronteira, na ponta do Brasil, o governo não reconhece. Conhece o nome, mas para conhecer de perto precisa chegar lá nas comunidades. Eu falo, falo, mas eles não escutam, não acreditam, porque são outro povo. Por isso que eles não querem conhecer, conversar, perguntar para a liderança que fala português – falta isso. Na minha casa, nunca chegou o presidente do Brasil para falar com o meu povo, ele só faz maldade, planos de trabalho que monta na cidade para destruir a natureza. O povo Yanomami e Ye’kwana e outros parentes – Kayapó, Xavante – somos espalhados, mas estamos fazendo um bom trabalho para proteger nossa grande alma da terra, alma da floresta. O governo só quer destruir a alma do rio, da terra, da floresta. E isso cria problema.
Nós, não indígenas, precisamos aprender a sonhar como os Yanomami? Isso é possível? Como, se nas cidades o olhar dos brancos “está preso no que os cerca: as mercadorias, a televisão e o dinheiro”, conforme você diz em “A Queda do céu”?
O nosso rei da terra e da floresta nós também não conhecemos, mas ele conhece a gente. Eu sempre falo: o branco mora na cidade, longe da floresta, da montanha, com a casa cheia de pedra, com quarto pequeno e cama sem a terra para sonhar. Vocês são diferentes, sonham sim, mas com mercadoria, dinheiro, carro, querem comprar casa, trabalhar, achar emprego, estudar. Nós, povo da floresta, moramos dentro do universo, a nossa casa é a floresta, lá a gente sonha diferente. Nosso sonho é de riqueza da terra, nascer bem, se alimentar e alimentar nossos filhos, deixá-los crescer, ter saúde, viver bem sem doença de malária e tuberculose, sem a bebida alcóolica. No meu povo, quem sonha são os pajés, que guardam nossa sabedoria tradicional. A gente sonha para ser xapiri, pajé, boa liderança, liderança guerreira para proteger o povo. Também sonhamos com as mudanças climáticas: muita chuva, que está estragando outro lugar. Na nossa floresta, onde a gente mora, a gente recebe isso, sonha com trovão, porque o trovão fala no sonho que temos que tomar cuidado: se o Yanomami começar a derrubar também [a floresta], vai dar problema. Sonhamos também com [um clima] muito quente, que para vocês, não indígenas, não é bom, vocês são fracos no sol. Essa é a mudança climática [causada porque] a floresta acabou em outro lugar. O meu grande criador se chama Omama, ele criou nesse plano um caminho para sonhar.
E como os não indígenas podem sonhar um pouco mais como os Yanomami, tem jeito?
Isso aí é difícil para vocês, porque vocês são napë [inimigo, estrangeiro, branco], o sangue é diferente. Para pensar como o índio sonha, será que vão na comunidade para olhar a floresta de perto, em pé? Você vai olhar a beleza da floresta e vai se apaixonar por ela. A floresta é uma grande sabedoria, é ela quem manda o sonho. Ela manda o sonho para a sociedade, mas vocês não conseguem, só conseguem sonhar outra coisa. Nós, Yanomami, também sonhamos com as coisas de vocês: avião voando, guerreando, jogando bomba; [vocês] fazendo caminho para andar de carro. A gente sonha mais porque a gente conhece, está acostumado desde pequeno. Vocês sonham com o que vocês são apaixonados, dinheiro: querem ganhar, estudar. Eu quero sonhar com os xapiri, cantar, agradecendo à beleza da floresta, à grande alma da floresta que está ligada com o povo originário – é por isso que sonhamos. Os seus sonhos são só tecnologia – luz, água encanada, elevador para descer, sair para o cinema, passear. Não vou dizer que branco não sonha, sempre falo que branco sonha diferente. Ele não vai sonhar com a proteção da floresta, com o respeito aos povos indígenas do Brasil. Poucos sonham. Muitas pessoas nunca saíram da cidade para conhecer a realidade, a cara da Amazônia e da floresta.
Desde que o Estado brasileiro foi criado, os povos indígenas – inclusive os Yanomami – sofreram inúmeras violências: foram expulsos de sua terra, dizimados por assassinatos e doenças, tiveram seus modos de vida atacados, sofrem até hoje preconceito. Mesmo assim, você tem dito que você é um Yanomami do Brasil. Ainda acredita no Brasil?
Eu sou um legítimo brasileiro. Nascemos aqui na terra, ninguém nasceu caindo [do céu]. O meu pata, chefe da aldeia, pajé grande, me ensinou e eu acredito que somos [parte do] povo brasileiro, somos povo da floresta. Há muitos anos, o meu povo ocupa essa terra, e os homens não indígenas vieram derrubar, roubar e plantar. Usam a palavra PL 490, para mim isso representa uma cobra grande. O Marco Temporal é uma cobra gigante que quer engolir todo mundo, acabar com a minha floresta, água e montanhas. Com a minha terra Yanomami, que foi reconhecida pelo próprio governo federal. Acredito na força da Maxita-Urihi [a Terra-Floresta], Brasil. O povo que veio para o Brasil ficou rico, mas nós, povos indígenas, somos ricos de saúde. Saúde é prioridade, é fundamental. Por isso que você me encontra aqui, sou sobrevivente do meu povo Yanomami, Ye’kwana, Krenak, Guarani e outros parentes. Os homens capitalistas chegaram aqui, mataram primeiro – quase acabaram [com as populações indígenas] – e pegaram o lugar dos meus parentes. Onde era o lugar para caçar e pescar, agora não tem mais. São Paulo [foi assim]. Os parentes Guarani têm a terra pequena, mas são fortes, porque a natureza está junto com eles.
A aproximação dos garimpeiros às aldeias dos Moxihatëtëa, grupo indígena que vivem em isolamento voluntário na terra Yanomami, não é novidade, ela acontece há anos e os servidores da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami Ye’kwana já fizeram uma série de relatórios de monitoramento, enviados à Funai em Brasília, mostrando isso. Você acha que agora os isolados correm mais risco do que antes?
Agora eles correm mais riscos. Os Moxihatëtëa estão se protegendo de nós e nós estamos protegendo eles também. Eles nunca saíram da comunidade para chegar na cidade ou na minha comunidade. A todo o tempo são respeitados: do jeito que escolheram, ficam nas suas casas. Eu, Yanomami, que sou parente deles, não posso chegar lá e levar doença para ele. Agora, os garimpeiros estão levando doença. Os garimpeiros são muito ignorantes. Acham que [a terra dos] índios isolados não tem dono, tem dono sim. Estou preocupado com eles. Com o PL 490, estão querendo chegar lá, com o Marco Temporal estão querendo pegar a nossa terra. Nesse ponto, estou revoltado.
No fim do ano passado, os Yanomami, Munduruku e Kayapó se juntaram na Aliança em Defesa dos Territórios, criada para combater o garimpo ilegal. Qual a importância da articulação com outros povos para a luta por direitos indígenas?
Esse ano, criamos a aliança em Brasília [no Acampamento Terra Livre deste ano, em abril, houve o encontro dos povos integrantes da aliança]. Encontraram Yanomami, Munduruku e Kayapó, onde as invasões estão muito fortes. A Hutukara sempre conversa [com outras lideranças] atrás da internet, do computador. Isso é muito importante porque estamos juntos, é o mesmo problema que estamos enfrentando. É muito importante fazer aliança entre os Yanomami, Munduruku, Kayapó e outros indígenas. É bom para nos fortalecermos e podermos enfrentar o homem da cidade.
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