O governo federal bloqueou R$ 250 milhões do orçamento destinado à saúde indígena e chegou a distribuir aos 34 distritos sanitários espalhados pelo país uma série de orientações sobre como economizar dinheiro até o final do ano. Três dias depois, contudo, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde, cancelou a orientação e distribuiu um novo ofício, agora dizendo que está tentando reverter uma parte do bloqueio junto ao Ministério da Economia. Procurado pela Agência Pública, contudo, a Saúde nada explicou se conseguiu a reversão parcial.
De acordo com a nota técnica número 51/2022 da Sesai, datada de 31 de agosto último, o bloqueio de R$ 250 milhões atingiu seis ações de governo, incluindo combustíveis, transporte, convênios com entidades sem fins lucrativos que fornecem mão de obra para a Sesai (cerca de 15 mil trabalhadores), com R$ 150 milhões, e obras de saneamento básico. O valor bloqueado corresponde a 15,6% da dotação orçamentária total prevista para a Sesai no ano inteiro (R$ 1,6 bilhão).
“É muito triste o que está acontecendo com o povo Yanomami. Estou aqui na minha comunidade. Hoje morreram mais duas crianças de malária, no Parafure, e estão indo resgatar mais seis crianças graves e tem um paciente internado de desnutrição, de verme. A gente está pedindo socorro e nossa voz não está conseguindo chegar”, disse Junior Hekurari, presidente do Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena) da Terra Indígena Yanomami. Ele falou à Pública por telefone nesta quarta-feira (21) na aldeia de Surucucu, no centro da TI Yanomami.
O grosso dos gastos com saúde no território Yanomami vai para o transporte aéreo, segundo Hekurari. Há comunidades distantes três horas de avião de uma unidade de pronto-socorro. O DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami atende, segundo Hekurari, 31.180 indígenas em 368 comunidades e 70 unidades básicas de saúde, muitas das quais aguardando reparos urgentes.
Hekurari disse que no começo do mês o DSEI recebeu o ofício com a recomendação de uma série de cortes de gastos, mas depois o documento foi cancelado. Nesta semana, contudo, recomeçou a circular a informação sobre o bloqueio dos valores.
“Começaram de novo essas conversas desse corte nessa semana. Estamos fazendo um documento para mandar para Ministério Público Federal, Ministério da Saúde, Ministério da Economia. Se cortar 50%, a gente vai receber o quê? Se cortarem, o povo Yanomami vai morrer muito, principalmente criança. Já está morrendo muito”, disse Hekurari.
A líder indígena Eliana Karajá, integrante do Condisi no Tocantins, afirmou que o corte orçamentário já impactou na construção de unidades básicas de saúde indígena, entre as quais uma nova que estava programada para a aldeia Fontoura, a segundo maior aldeia do povo Karajá, na Ilha do Bananal, que deveria atender mais de 800 indígenas. Além disso, eram aguardadas reformas em outras duas unidades.
“Foi anunciado que iria acontecer, que estava tudo ok, que iriam fazer. Agora não vai acontecer, disseram que não vai ter mais jeito. A UBS de Fontoura era muito aguardada porque lá não tem nada de saúde, não tem como manter os profissionais na área. Quem perde com isso é a comunidade. O descaso da saúde indígena dentro do distrito está cada vez pior”, disse Eliana. “Eles só se importam quando a gente denuncia. Se não é a gente denunciando, ninguém tá preocupado não.”
A nota técnica da Sesai que detalha o bloqueio, assinada pelo coordenador-geral de planejamento, orçamento e monitoramento da execução financeira, Nelson Soares Filho, e datada de 31 de agosto último salientou “o agravamento das limitações orçamentárias da Sesai”.
A nota explica que o valor das despesas projetado para 2022 supera em R$ 44,6 milhões o valor estabelecido na LOA (Lei Orçamentária Anual). Ou seja, mesmo que os R$ 250 milhões ainda sejam, até o final do ano, integralmente liberados ainda “seria necessário suplementar o valor apresentado acima para fazer frente às necessidades da Sesai no presente exercício”.
A diferença de R$ 44,6 milhões ocorreu devido a uma “disparidade existente entre o valor aprovado na LOA e os valores dos contratos”, que sofreram alterações relativas ao turbulento cenário econômico no país ao longo do ano, com crescentes reajustes dos valores dos combustíveis e inflação galopante. O contrato para aquisição de combustíveis, por exemplo, começou com R$ 57 milhões, passou para R$ 65 milhões e “atualmente se encontra em R$ 90 milhões”. O combustível é uma despesa essencial no atendimento à saúde indígena.
A nota técnica sugeriu uma série de medidas, entre as quais “sobrestar processos de investimento de Estruturação de Unidades e remanejar o saldo para Custeio”, suspender “50% de parte dos contratos de mão de obra a partir do 4º trimestre de 2022”, remanejar R$ 5 milhões do investimento em saneamento para o custeio e estabelecer que “novas viagens só deverão ser feitas em caráter estritamente essencial”. Além disso, os “acréscimos em contratos vigentes ou novas contratações só deverão ser aprovadas mediante supressão de outras despesas para abarcar os novos custos”.
A nota pediu ainda uma “atuação para desbloqueio de recursos e suplementação orçamentária, a fim de garantir o cumprimento da missão institucional da Sesai nos mesmos parâmetros de qualidade que se tem hoje”.
Seis dias depois da nota técnica, o secretário especial de Saúde Indígena, Reginaldo Ramos Machado, distribuiu um ofício (número 215) aos coordenadores dos 34 distritos sanitários e às diretoras de dois departamentos da Sesai para dizer que precisavam ser tomadas “medidas para mitigar as restrições orçamentárias da Sesai no 4º trimestre de 2022”.
De acordo com o ofício, o bloqueio do orçamento da Sesai foi de R$ 250.139.750,00. O secretário orientou, entre outras medidas, “sobrestar processos de investimento de Estruturação de Unidades; suspensão de 50% dos postos de contratos de limpeza, vigilância, secretária, recepcionista, serviço de copa e cozinha, artífice e cozinheiro, conforme se aplicar a cada distrito”; e que “novas viagens deverão ser feitas em caráter estritamente essencial”.
A notícia caiu como uma bomba nos distritos sanitários e na sequência houve um recuo do governo. No último dia 9, o secretário da Sesai emitiu um novo ofício (de número 217) a fim de “corrigir informações”. Ele tornou sem efeito o ofício anterior “em virtude de sinalização da Subsecretaria de Planejamento e Orçamento da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, em conjunto com o Ministério da Economia, quanto à possibilidade de desbloqueio parcial dos recursos atualmente indisponíveis em proporção suficiente para descontinuar a adoção de tais medidas, além de outras providências em andamento que estão sendo tomadas em conjunto com aqueles Órgãos”.
O secretário reforçou, no entanto, “a necessidade da observância constante da gestão eficiente dos recursos públicos, procurando, sempre que possível, gerar economicidade para que a Sesai e o Ministério da Saúde continuem a atender as necessidades da população indígena”.
Procurada pela Agência Pública, a Sesai disse que a resposta partiria do Ministério da Saúde que, também procurado, fez referência ao novo ofício da Sesai que havia cancelado o primeiro. A Pública então indagou no último domingo (18) sobre o total bloqueado até o momento e que medidas estão sendo tomadas para o desbloqueio, total ou parcial, mas não houve resposta a essas dúvidas.
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