Com fama de boa gestora por revitalizar a orla do rio Branco, construir parques e praças e investir na educação municipal e no cuidado à primeira infância, Teresa declarou no programa de governo que iria combater a “causa” da poluição dos rios, sem citar o garimpo. No dia 14 de setembro passado, porém, a ex-prefeita afirmou o apoio a Bolsonaro e assumiu a defesa da legalização do garimpo em entrevista à Rede Amazônica, afiliada à TV Globo. O deputado Édio Lopes, candidato a vice em sua chapa, é do PL, partido de Jair Bolsonaro. Lopes foi relator do Projeto 121/1995, apresentado por Jucá no Senado, que pretendia abrir terras indígenas para a mineração e foi retirado em 2014.
Três semanas antes da declaração de Teresa à Rede Amazônica, Rodrigo Cataratas, que é candidato a deputado federal pelo PL, na coligação de Surita e Jucá, disse à Pública: “O Denarium tentou realmente criar uma reserva garimpeira no estado, já a Teresa é vista como meio verde, meio ambientalista. Mas ela é pró-desenvolvimento, e disse para mim que tem que haver uma solução para esse problema social. Acredito que os dois vão apoiar o movimento”. Acertou na mosca.
São os órgãos federais que têm o dever de combater o garimpo em terras indígenas, bens da União sobre os quais os indígenas têm direitos inalienáveis, segundo a Constituição. O que explica a disputa dos dois principais candidatos ao governo pelo apoio de Jair Bolsonaro, que chama Roraima de “menina dos seus olhos”. Sem o apoio do governo federal, o garimpo perde terreno no estado.
“Acho que todo mundo sabe que falta vontade política de acabar com o garimpo. E acabar com o garimpo é fácil. Lógico, a proporção que assumiu hoje vai exigir uma atuação mais engajada, um trabalho regular e permanente por um período de tempo relevante, seis meses, dentro e fora da terra indígena, de modo a asfixiar a logística aérea do garimpo. Mas é preciso fazer com regularidade, ficar aqui seis meses combatendo permanentemente o garimpo ilegal”, diz Marugal.
O procurador rebateu também a argumentação de que o garimpo ilegal é um problema social, como alegou Surita ao declarar seu apoio ao garimpo. “Se os brancos não fazem políticas públicas para evitar que as pessoas trabalhem em uma atividade perigosa e ilegal, o ônus não cabe aos indígenas, é uma responsabilidade da sociedade branca, e são eles que estão vivendo uma crise humanitária”, ensinou.
Teresa Surita e Romero Jucá não quiseram dar entrevistas, solicitadas diversas vezes às suas assessorias de imprensa e diretamente aos candidatos durante um evento de campanha em Boa Vista. Irmã do radialista Emílio Surita, da Jovem Pan de São Paulo, Teresa tem bom desempenho nas redes sociais, onde aparece elegante, com um sorriso no rosto e “Deus no coração”. Jucá, 70 anos, tirou o famoso bigodão e investiu na forma física talvez para não destoar da jovialidade de Teresa, a quem acompanha em todos os eventos. Ambos contam com o conglomerado de mídia da família Jucá, composto por duas emissoras de TV, uma de rádio e um site para ter direito a um jornalismo, digamos, mais personalizado.
De braços abertos para o garimpo
Não espanta que os dois principais candidatos ao governo se posicionem a favor do garimpo. A defesa das terras e direitos indígenas nunca ganhou o coração da maioria dos moradores de Boa Vista, acostumados com o vaivém de garimpeiros desde os anos 1940. A capital, maior colégio eleitoral do estado, é decisiva para o resultado das eleições.
“A senhora veio a Boa Vista e viu: esta é uma cidade que tem o Monumento ao Garimpeiro na praça central. O ouro está na bandeira de Roraima. O mito do garimpo fundador é uma realidade aqui. Às vezes, sou otimista, achando que a percepção social tem mudado pelas notícias dos efeitos perniciosos que o garimpo traz também para a sociedade branca, como a contaminação por mercúrio dos rios, mas a minha impressão é de uma sociedade majoritariamente pró-garimpo, o que se mistura a um certo preconceito anti-indígena”, diz o procurador Marugal.
Um “preconceito silencioso”, como descreveu o artista Bartô Macuxi, candidato pelo Psol ao Senado, pelos direitos indígenas e da natureza. As obras de Bartô enfeitam vários pontos de Boa Vista, como a Universidade Federal de Roraima (UFRR), que hoje tem 1.067 alunos indígenas. No dia 26 de setembro passado, Davi Kopenawa recebeu o título de doutor Honoris Causa da Universidade.
A jornalista Ariene Susui, 25 anos, que há sete anos veio de uma comunidade Wapichana da zona rural para fazer graduação e depois mestrado em comunicação na UFRR, conta que só encontrou apoio em Boa Vista na comunidade acadêmica. “Enquanto eu esperava o resultado do vestibular, passei por casa de família, fui empregada doméstica, e aí você sente bem esse preconceito velado da sociedade. Não tem a nitidez da violência, mas ela existe”, disse, lembrando que chegou a fugir de uma casa depois de ter sido despertada de madrugada pela patroa para que fosse trabalhar.
A discriminação parece fora de lugar nas ruas largas e planas da capital, onde os nascidos de mãe e pai roraimenses são chamados de “macuxi” e tem como prato típico a apimentada damurida, iguaria indígena à base de peixe. Nas casas simples com grandes quintais ainda passeiam lagartos, jabutis e até tamanduás sob a sombra de árvores nativas do lavrado, como é chamada a savana roraimense, território tradicional de povos Karib e Aruak. Nem é preciso sair do município para encontrar igarapés e lagoas cristalinas, cercadas de buritis, e se refrescar do calor caribenho, quase eterno, na única capital brasileira no hemisfério norte.
No livro As muralhas do sertão: os povos indígenas do rio Branco e a colonização, publicado em 1990, a historiadora Nádia Farage conta que os corpos indígenas escravizados e aldeados à força pelos portugueses serviram de “muralha humana” para o Forte São Joaquim, construído em 1775, para garantir a posse do território disputado por holandeses e espanhóis, assim como tráfico de mão de obra escrava indígena para o Pará. No século 19, quando a pecuária chegou aos campos verdes do lavrado, foi novamente a escravização dos indígenas que durou mais de cem anos e enriqueceu os fazendeiros brancos, como anota o historiador Jaci Guilherme Vieira em sua tese de doutorado, Missionários, fazendeiros e índios em Roraima.
Os garimpeiros só entraram de maneira significativa nessa história no século 20 e por decisão de duas ditaduras: a de Getúlio Vargas, que criou o Território do Rio Branco, em 1943, e incentivou a ocupação das terras “desabitadas”, usando como chamariz os garimpos de diamante na serra do Tepequém; e a que se instalou com o golpe de 1964, que retratou Roraima como “pote de ouro” para atrair mão de obra para a riqueza minerária da região. O famigerado Monumento ao Garimpeiro foi encomendado e instalado na praça principal pelo então governador de Roraima, o coronel aviador Hélio Campos, apenas em 1969.
“Nunca houve uma era de ouro do garimpo, que justifique qualquer saudosismo. O garimpo nunca trouxe nada de bom para a população nem para os próprios garimpeiros, que vivem sem passado e sem futuro”, diz o antropólogo Paulo Santilli, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), que trabalhou como coordenador de identificação e demarcação da Funai da TI Raposa Serra do Sol e é autor do laudo antropológico que comprovou que o leste de Roraima é o território ancestral dos povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona e Taurepang e de outras etnias extintas.
A demarcação do território de Raposa Serra do Sol era reivindicada pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) desde a década de 1970. Foi concluída em 1998, com apoio decisivo do MPF em Roraima, que centrou forças no combate ao garimpo em terras indígenas depois da declaração dos limites, realizada pela Funai. Em seguida, houve uma enxurrada de ações contestatórias na Justiça, “financiadas pelo governo de Roraima”, sublinha Santilli.
“Há uma lição nessa história, que serve para pensar na invasão do território Yanomami hoje: depois da desintrusão de mais de 3 mil garimpeiros, os indicadores de violência, as epidemias de malária, de doenças venéreas despencaram rapidamente. Em 2000 viajei extensamente pela Raposa Serra do Sol e não tinha nenhum foco de garimpo”.
A homologação foi assinada em 2005, pelo presidente Lula. Mas a batalha jurídica movida pelos fazendeiros aliados ao governo perdurou até 2009, quando se encerrou o último processo no Supremo Tribunal Federal, e a constitucionalidade da demarcação. Perante a Constituição de 1988, os 26 mil indígenas que vivem nos 1,7 milhão de hectares de Raposa Serra do Sol têm direito de dispor de todos os recursos naturais do lavrado onde seus ancestrais foram escravizados.
Do preconceito silencioso à hostilidade aberta
A vitória dos indígenas em Raposa Serra do Sol trouxe marcas duradouras na sociedade roraimense. O estado que havia dado a vitória a Lula com 72% dos votos no segundo turno em 2002, tornou-se anti-petista nas eleições seguintes, quando Lula obteve apenas 26% dos votos contra 60% para Geraldo Alckmin, hoje aliado ao ex-presidente.
“Raposa Serra do Sol foi uma situação muito diferente daquela dos Yanomami, que ficam em uma região distante, na floresta, enquanto ali era um território ocupado há muito tempo, havia fazendas, vilas, as pessoas se assustaram aqui em Boa Vista, alguns até passaram a ver os indígenas como inimigos, mas é claro que o direito está com eles”, lembra o ex-procurador estadual aposentado Edson Damas.
A atuação do governo de Roraima durante o processo de demarcação e homologação da TI também contribuiu para envenenar a população contra os indígenas. Depois da expulsão dos garimpeiros, o governo convidou os arrozeiros gaúchos para ocuparem o território indígena demarcado, abrindo estradas e concedendo isenções fiscais. “Como o discurso do desenvolvimento tem muito apelo no estado, principalmente entre a população urbana, o governo passou a dizer que os arrozeiros eram essenciais para a economia de Roraima, que sem eles o estado não sobreviveria, que haveria desemprego”, lembra Santilli.
Dentro da Terra Indígena, a realidade era bem diferente. Os fazendeiros e seus pistoleiros passaram a tocar o terror na região, incendiando aldeias e agredindo os indígenas. No ano passado, o ex-líder dos arrozeiros Paulo César Quartiero foi condenado a pagar R$ 200 mil de indenização aos povos indígenas de Raposa Serra do Sol, por ter ordenado um ataque, no final de 2004, que feriu nove indígenas e queimou 34 casas. Entre ações e inquéritos policiais, Quartiero acumula hoje 35 processos no STF. Na Justiça Federal, são outras dezenas de ações.
Os arrozeiros alegavam que a violência na Terra Indígena era fruto da disputa entre os próprios indígenas, uma mentira cuidadosamente armada pelo governo de Roraima ainda durante o processo de demarcação. Em 1993, o governo estadual articulou a fundação da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Soddiur) para se contrapor ao CIR, amplamente majoritário como representante dos indígenas no estado. Condenado no mesmo processo de Quartiero, o Soddiur agia junto com os fazendeiros e o governo estadual, sustentando suas falsas narrativas perante a Justiça.
O Soddiur foi um dos primeiros grupos indígenas a participar das lives de Bolsonaro para legitimar a tese do presidente de que a abertura das TIs para o agronegócio e o garimpo seria uma reivindicação dos próprios indígenas. Foi ao lado de um representante da entidade, que Bolsonaro declarou, em abril de 2019: “Em Roraima, tem 3 trilhões de reais embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso de forma racional, obviamente. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica”.
A homologação da TI Raposa Serra do Sol foi uma conquista para todos os indígenas brasileiros e também uma demonstração da importância de ter um governo federal com vontade política, como diz Marugal, e respeito à Constituição. Também trouxe duas figuras hoje importantes no mundo político: uma indígena wapichana que participou da luta pela TI e um empresário goiano, quase desconhecido, escolhido como representante político pelos derrotados de Raposa Serra do Sol, que acabaria se tornando peça-chave na batalha entre o garimpo e os indígenas com a eleição de Bolsonaro, em 2008.
A deputada federal Joenia Wapichana, assistente jurídica do CIR durante toda a luta jurídica que se seguiu à demarcação, ganhou projeção nacional, em 2008, durante o julgamento do caso no STF, quando pela primeira vez um advogado indígena – no caso, uma mulher – fez uma sustentação oral diante da Suprema Corte. Foi quando o CIR começou a pensar em uma representação indígena no Congresso, uma decisão que foi tomada depois de muitas assembleias, com a escolha de Joenia para disputar a eleição para a Câmara dos Deputados em 2018. “A gente tem a nossa própria política, a política do malocão. É aquela que traz todo mundo, discute problema, ouve todo mundo, respeita todo mundo, mas toma decisão em nome de todos”, conta a deputada.
Do lado oposto, a reação veio com a urgência de uma reunião de diretoria. Ainda em 2009, um grupo de empresários decidiu investir na carreira política de um dos seus pares, Antonio Denarium, que já em 2010 disputou a suplência do Senado na chapa de Marluce Pinto, mulher do governador Ottomar Pinto, que, no ano anterior, havia suspendido uma operação de retirada dos arrozeiros pela PF. A chapa foi derrotada, mas em 2018 Denarium seria afinal eleito governador pelo PSL.
O maior doador de sua campanha foi Genor Luiz Faccio, arrozeiro da Raposa Serra do Sol que teve papel de destaque na batalha jurídica contra a homologação da TI. Faccio é sócio de Denarium e de oito empresários no Frigo 10, o maior frigorífico de Roraima, aberto pelo grupo em 2011 (na declaração de bens de 2022, as cotas de Denarium na sociedade foram avaliadas em R$ 4,5 milhões). O arrozeiro acumulou sete multas por desmatamento entre 2005 e 2019, sendo que somente uma delas – coincidentemente aplicada em 2009 – supera R$ 13,6 milhões ainda não pagos à União. Denarium também foi multado pelo Ibama em R$ 135 mil pela destruição de cercas em 26 hectares de floresta amazônica, em Iracema, no sul do estado.
Não é à toa que o desmatamento em Roraima aumentou 122% em três anos, de acordo com o Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam). Quando questionei o governador, ele respondeu sem corar: “Nós não concordamos com o desmatamento ilegal nem com as queimadas. Ou seja, o que houve foi um crescimento econômico do estado de Roraima. Portanto, se houve desmatamento, foi legal”.
Denarium, o governador do ouro
Sede do governo, o Palácio Hélio Campos, no Centro Cívico, foi batizado em homenagem ao governador que fincou o Monumento Garimpeiro em frente ao prédio. Em 1979, quando era deputado pela Arena, Campos propôs retirar os indígenas das fronteiras de Roraima, argumentando: “Os índios só querem saber de caçar e pescar, não fazem mais nada, enquanto nós ficamos trabalhando e pagando impostos”.
Nada diferente do que eu ouviria do governador Denarium mais de 40 anos depois: “No Brasil inteiro tinha indígenas, mas só aqui 46% do território é de terras indígenas. E os indígenas, isso é o que acontece, não estou discriminando, praticamente não produz (sic) nada. Nós temos 20% de população indígena, só que eles não recolhem um centavo de imposto. Eu tenho 260 escolas em área indígena. Tem escolas que pra mim levar merenda é de avião. A meu custo. Eu tenho que manter as estradas e pontes, eu tenho que dar saúde, eu tenho que dar a segurança alimentar pra eles, programas sociais, eu tenho que fazer cirurgia, eu tenho que fazer exames. Quanto os índios pagam de imposto? Zero”, insistiu, como se não fosse sua obrigação atender aos indígenas como os demais cidadãos brasileiros.
Observei que a saúde indígena é responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e os recursos para as escolas vêm do Ministério da Educação e perguntei por que ele não pedia ajuda ao presidente Bolsonaro – à essa altura a entrevista já havia sido interrompida várias vezes por pedidos de Denarium para que seus assessores me mostrassem posts comprovando a simpatia de Bolsonaro por sua candidatura.
O governador se impacientou, agora jogando a culpa nos imigrantes venezuelanos: “Aí é um jogo de interesses. E ninguém está disposto a gastar mais dinheiro com… Nós nunca recebemos dinheiro para compensar o estado pelo atendimento aos venezuelanos. Eu tenho 100 mil venezuelanos no estado, mais de 10 mil alunos nas escolas estaduais. Eu faço dez partos todo dia de venezuelana, ok? Hoje eu tenho mais de 4 mil venezuelanos no meu sistema prisional. De 30% a 40% das ocorrências que tem na cidade é venezuelano”, disse, errando feio também nos números.
Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), há 32 mil venezuelanos no estado, 6 mil deles nos abrigos de refugiados, e não existe nenhum tipo de levantamento de ocorrências por nacionalidade do autor – o que a assessoria de imprensa do governador também não enviou, apesar dos pedidos da Pública. Quanto aos partos que “o governador faz todo dia”, os fatos são constrangedores: a única maternidade pública que funciona em Boa Vista está abrigada há mais de um ano sob a lona de um hospital de campanha alugado pelo governo por quase R$ 13 milhões, onde os alagamentos – e até a presença de ratos – são frequentes.
Denarium muda de tom quando passa a falar de suas realizações. “Roraima hoje é o melhor estado do Brasil em ambiente de negócios, o melhor estado do Brasil em liberdade econômica”, disse com o mesmo entusiasmo com que defendeu a legalização do garimpo: “Eu faço tudo para colocar na legalidade. Eu sou a favor do garimpo de forma organizada totalmente regulamentada, porque hoje o minério que é produzido aqui, ouro, por exemplo, não é emitida uma única nota fiscal aqui, a gente não recebe um centavo de imposto do garimpo, porque é ilegal”, afirmou, ressalvando ser “contra a mineração em terras indígenas”, embora o potencial minerário de Roraima esteja exatamente nas TIs, como me explicou Marugal.
Já no final da entrevista, perguntei como ele imaginava Roraima quando soube que seria transferido para Boa Vista. Ele rebateu: “Como a senhora imaginava? Você ia imaginar que está cheio de venezuelano nas ruas, que tinha índio pra tudo que é lado, que não tinha asfalto, que não tinha serviço público que presta, ia imaginar um estado bagunçado”, disse, sob meus protestos.
Um homem de negócios
Antonio Oliverio Garcia de Almeida, 58 anos, chegou em Boa Vista em 1992, como gerente do Bamerindus, transferido de Goiás. Tornou-se Antonio Denarium em Roraima por extensão de seus negócios, depois de sair do então HSBC em 2000. No ano seguinte, o ex-gerente abriu a factoring Denarium Fomento Mercantil Ltda. e passou a ser conhecido pelo nome da moeda romana que deu origem à palavra dinheiro em português e que batizou o empreendimento.
Uma empresa de factoring adquire à vista os direitos creditórios de seus clientes, ou seja, os pagamentos que eles teriam a receber a prazo, mediante taxas de juros e de serviços. Mas, segundo um pedido de investigação feito pelo Ministério Público de Roraima (MP-RR), há suspeitas de que não é apenas com essa finalidade que a Denarium Fomento Mercantil funcionaria.
Em junho de 2022, após ter recebido denúncias de pessoas que teriam contraído empréstimos com a Denarium, oferecendo bens pessoais como garantia, o que configuraria agiotagem, o promotor André Vieira dos Santos Pereira encaminhou uma notícia-crime à Procuradoria Geral da República (PGR), pedindo a investigação do governador, que tem foro privilegiado. A pedido da Pública, a assessoria de imprensa da PGR localizou o processo, protocolado pelo MP-RR sob o número 00196407/2022, mas informou que está sob sigilo e, portanto, não pode ser acessado pelo sistema público de consultas. O governador foi informado através de sua assessoria de imprensa de que a investigação do MP-RR, agora na PGR, seria citada na reportagem, mas não enviou nenhum tipo de resposta.
Em 2005, o governador abriu a Denarium Empreendimentos Imobiliários para negociar terras e imóveis de terceiros e administrar seu próprio patrimônio, que, segundo sua declaração de bens ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) neste ano, corresponde a R$ 21,5 milhões – quase dez vezes maior do que o patrimônio de R$ 2,4 milhões que consta em sua primeira declaração de bens ao TSE, em 2010. Os bons negócios do governador já se refletem na declaração das eleições de 2018, quando seu patrimônio somava R$ 15 milhões, incluindo 53 imóveis em áreas urbanas e 23 fazendas e sítios. Em 2022, o governador listou 98 imóveis urbanos e rurais entre os seus bens. Descontando sítios e fazendas sem área descrita na declaração, são ao menos 7,3 mil hectares de terras em áreas rurais pertencentes ao governador.
Não é possível saber o valor real das fazendas, boa parte delas situada ao longo da rodovia 174 (Manaus-Boa Vista), a principal do estado. As terras nessa região se valorizaram muito com o repasse de 3,9 milhões de hectares de terras públicas feito pela União ao estado de Roraima, anunciado em setembro de 2021 pelo presidente Bolsonaro em um palanque montado para ele pelo governador em Boa Vista.
O repasse das terras da União aos ex-territórios, definido pela Constituição, estava previsto para ocorrer em Roraima desde 2009, mas foi adiado duas vezes por divergências nas regras entre estados e governo. Para resolver o imbróglio, Bolsonaro e Denarium atuaram juntos. O governo federal sancionou uma lei (14.404), proposta por um deputado federal de Roraima, flexibilizando as exigências, sobretudo ambientais; e o governo estadual sancionou uma lei de terras, ainda em 2019, que aumentou de 1.500 para 2.500 o limite máximo da propriedade para obter o título, derrubou a exigência de um único título por produtor e reduziu de 2009 para 2017 o tempo exigido para a comprovação da posse.
Com isso, o governo estadual pode titular os imóveis, o que interessa sobretudo aos pecuaristas e produtores de soja, como o próprio governador, que tem terras em Boa Vista, Bonfim, Cantá, Mucajaí, Iracema e Caracaraí. É nessas regiões que a expansão da soja vem trazendo “a maior taxa de crescimento em uma fronteira agrícola do país”, como ele gosta de dizer.
Em abril de 2022, o Imazon publicou o estudo “Ameaça e Pressão em Áreas Protegidas” apontando dez Terras Indígenas mais pressionadas no primeiro trimestre do ano: cinco delas estão em Roraima. A TI Waimiri-Atroari, demarcada depois de os indígenas terem sido quase dizimados na ditadura militar durante a construção da BR-174, aparece como a mais ameaçada. A maior pressão está em sua porção norte, que fica no sul de Roraima.
No mesmo palanque em setembro foi comemorado “o aval da Funai” para construção do Linhão do Tucuruí, incluindo Roraima no Sistema Integrado Nacional (SIN) de energia. Os Waimiri-Atroari, que aguardavam um acordo para permitir a passagem de 122 km de linhas e torres em seu território, paralisaram a obra até maio deste ano, quando o termo do repasse de R$ 134 milhões como compensação foi assinado por Denarium e Bolsonaro.
“É o fim dos entraves para o crescimento de Roraima”, comemorou o governador, que já planeja a expansão dos cultivos de soja no estado com o barateamento da energia elétrica. Se “dinheiro é doença”, como diz Kopenawa, Antonio Denarium deve se preocupar com a saúde. Mas não só ele.
No hangar de Rodrigo Cataratas
Rodrigo Mello Martins, o Rodrigo Cataratas, se tornou nacionalmente conhecido depois de ter sido investigado pela PF por suspeita de ter movimentado cerca de R$ 200 milhões com a extração ilegal de ouro na Terra Yanomami além de tentar incendiar um helicóptero do Ibama. Com 51 anos, ele é candidato a deputado federal pelo PL e fundador do Movimento Garimpo É Legal.
O paranaense veio para Roraima nos anos 2000 para “tentar a sorte”, como ele diz. Deu certo: seu patrimônio declarado ao TSE é de R$ 33,5 milhões, incluindo R$ 4,5 milhões em dinheiro vivo. “Os grandes empresários de Boa Vista foram todos garimpeiros”, comentou durante a entrevista concedida no dia 24 de agosto na sede da Cataratas Poços Artesianos, que lhe legou o apelido.
Uma semana antes, no dia 16 de agosto, uma nova operação de busca e apreensão da PF na empresa encontrou helicópteros com bancos retirados, munições, mantimentos, equipamentos de garimpo, motores e combustível. O empresário foi indiciado pela PF por crime ambiental, contra a ordem econômica e por munição ilegal.
Fui com ele ao hangar, agora completamente vazio, com exceção de um único helicóptero decorado com a bandeira do Brasil. No ano passado, a PF já havia apreendido cinco de suas aeronaves e interditado uma por suspeita de que estariam sendo usadas no transporte para a área do garimpo. Quando perguntei quantas aeronaves lhe restavam depois das apreensões, Cataratas, dono de duas empresas de táxi aéreo, desconversou: “Não sei nem precisar quantas aeronaves eu tenho”. Em sua declaração de bens ao TSE constam dez aeronaves, com valores que variam entre R$ 600 mil e R$ 4 milhões cada uma.
Rodrigo Cataratas também jurou que defende o garimpo “fora das terras indígenas”, mas acrescentou: “a não ser se explorado pelos próprios indígenas”, e negou traficar minérios da Terra Yanomami. Como prova de boas intenções, anunciou que, no dia 22 de agosto passado, obteve uma Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) da Agência Nacional de Mineração (ANM) para extrair ouro, cassiterita e diamantes em uma área de 44 hectares em Amajari, perto do rio Trairão, na serra do Tepequém.
Confirmamos a autenticidade do documento, que ele me enviou pelo WhatsApp, e verificamos que a área não tem sobreposição com terras indígenas. “Sou o primeiro garimpeiro legal do estado de Roraima, estou 100% legalizado em todos os órgãos”, gabou-se, acrescentando que tem alvará de pesquisa para uma área de 9.800 hectares, também próxima da serra do Tepequém.
Consultei o procurador Marugal sobre o documento apresentado por Cataratas, que respondeu: “Nós estamos apurando para verificar as circunstâncias de obtenção dessa Permissão de Lavra Garimpeira, a única PLG vigente em Roraima, então não posso dar um juízo definitivo, mas causa estranheza que, em um estado que não há licenciamento ambiental para esse tipo de atividade, a ANM tenha concedido uma PLG, curiosamente para o Rodrigo Cataratas”.
Perguntei se a área coberta pela PLG poderia servir para esquentar ouro de terras indígenas. “Não só pensando no caso do Rodrigo Cataratas, mas em relação à própria legislação estadual que foi considerada inconstitucional pelo STF, nosso receio sempre foi de que houvesse licenciamento ambiental fora das terras indígenas e essas áreas licenciadas fossem usadas para esquentar ouro extraído ilegalmente. Isso acontece no Pará, onde um estudo recente indicou que 90% do ouro extraído no estado vinha de terras indígenas e era esquentado através dessas PLGs, mesmo autorizações de pesquisa”, explicou o procurador.
Uma informação importante para interpretar corretamente o discurso dos políticos de Roraima. Todos eles sempre que defendem o garimpo, de Surita ao governador Denarium, fazem sempre a ressalva: “fora de terras indígenas”. Uma sutileza que se tornou necessária com a atuação vigilante do MPF e a possibilidade cada vez maior da derrota de Jair Bolsonaro nas eleições.
Na Oca Grande com Joenia
No ano passado, quando o STF julgaria a tese do Marco Temporal, retirada de pauta em junho deste ano e ainda sem data de votação, indígenas de Raposa Serra do Sol foram ao Congresso para demonstrar o sucesso da gestão sustentável de suas terras, onde desenvolvem a produção orgânica de arroz, feijão, milho, batata e frutas. As comunidades de Raposa Serra do Sol também monitoram as mudanças climáticas e estudam o desenvolvimento de energia eólica dentro da TI.
Esse é um dos motivos de Joenia, desde sua primeira campanha, majoritariamente feita pelos “parentes”, atrair artistas, cientistas, intelectuais e a juventude não indígena, principalmente estudantes e professores da UFRR. Na campanha de reeleição, esse público é ainda maior. A Rede, partido em que Joenia está desde a primeira eleição, apoia a candidatura de Lula na disputa pela presidência.
“Da primeira vez, eu cheguei preparada pelo movimento indígena e com muita estima, mas eu não entendia nada da política em Brasília, agora sou deputada do Congresso Nacional, já sei o meu potencial como parlamentar. Antes eu tinha a expectativa de fazer, agora tenho a perspectiva de continuar o que eu já fiz”, explica em seu gabinete em Boa Vista, uma casa simples e ampla no bairro de Mecejana, na cidade que ela chama de “Oca Grande”, em referência à sua origem Wapichana.
Além da experiência, agora Joenia carrega a credibilidade conquistada durante o mandato que foi premiado quatro vezes pelo Congresso em Foco. “Há muita desconfiança em relação à política dos brancos, ainda há um tabu em diversas comunidades. Realmente não foram os indígenas que criaram essa política, mas é uma necessidade muito grande a gente ter voz, fazer parte da tomada de decisão. A gente ouvia ‘os índios têm voto barato, se vendem por uma cesta básica, um churrasco, se vende por cenzinho, quinhentinho, camelinho’. Eu rebato dizendo: ‘mas não é só indígena, os brancos pobres também se vendem, eles se aproveitam de nossa vulnerabilidade e compram a gente por migalhas’”. Roraima é um dos estados recordistas em número de inquéritos policiais por esse tipo de crime, como confirmou o procurador eleitoral do MPF em Roraima, Alisson Bonfim, que disse estar combatendo a compra de votos neste ano.
“Eu acredito que política se constrói para as pessoas terem uma vida melhor, não é uma questão individual, é um projeto político coletivo”, diz Joenia. “É possível se eleger sem se corromper, sendo uma mulher indígena, pobre. Eu nunca tive dinheiro, tudo que conquistei foi sem dinheiro”, diz, rindo.
Joenia nasceu na comunidade de Truaru da Cabeceira, na zona rural de Boa Vista, a mesma da jovem Ariene Susui. Mas, enquanto Ariene pode ser educada na escola da comunidade até o vestibular, a mãe de Joenia teve que ir para a cidade para garantir os estudos dos filhos. Escolhida para o lançamento de sua campanha, a comunidade recebeu Joenia com o parixara – o ritual de cantos e dança dos Wapichana – em 16 de agosto, dia do aniversário de sua mãe, que está enterrada ali.
“Eu fiquei muito emocionada, foi muito forte lembrar que o sonho de minha mãe era que eu fosse professora, naquele tempo em que a gente quase não tinha perspectiva de estudar”, conta. “Hoje eu posso ajudar, inclusive estou com uma emenda para reformar a escola daquela comunidade.”
Quando entrou, em quinto lugar, no curso de direito da universidade federal, não havia cotas para indígenas. “Foi um tempo de conflito. Meus colegas eram altos, loiros, filhos de militares, juízes, jornalistas, e nós estávamos ainda na luta pela Raposa Serra do Sol, as pessoas não gostavam dos indígenas. Até hoje, às vezes quando eu vou em um restaurante, ficam olhando pra essa minha face, meu jeito, minha cor, o nariz chato, o pé largo de parente. Essa é a minha identidade: meu pai é Wapichana, minha mãe é Wapichana, meus avós são Wapichana.”
Aos 22 anos, já formada, apesar de ter criado os dois filhos junto com o marido, e trabalhado durante todo o curso de direito, decidiu largar o emprego na universidade para se dedicar à defesa dos parentes. “Eu nunca trabalhei em um escritório de advocacia branco. Assim que passei na Ordem, meu primo me levou para o CIR, onde me tornei o departamento jurídico. Eu era a única advogada, atendendo pessoas vítimas de violência, orientando lideranças que relatavam invasões. Com 24 anos eu já estava nos tribunais, derrubei muitas decisões de meus professores”, diz com uma ponta de ironia. Apesar do espanto dos brancos com sua sustentação oral no STF, Joenia já era uma advogada experiente quando defendeu as comunidades indígenas diante da Suprema Corte.
Usado de maneira distorcida na discussão do Marco Temporal, o caso de Raposa Serra do Sol é exemplar para compreender a diferença entre a demarcação de terras em área contínua e em “ilhas”, que os políticos de Roraima, como George Melo, continuam a defender abertamente. Mas o problema ultrapassa o estado: de acordo com a Funai, há 115 terras indígenas no país ainda não demarcadas. Se o retrocesso na política indígena se mantiver em um próximo governo, no futuro poderemos estar discutindo não apenas a abertura da mineração, também proibida pela Constituição, como a redução drástica das terras indígenas ainda sem limites declarados.
Usado de maneira distorcida na discussão do Marco Temporal, o caso de Raposa Serra do Sol é exemplar para compreender a diferença entre a demarcação de terras em área contínua e em “ilhas”, que os políticos de Roraima, como George Melo, continuam a defender abertamente. Mas o problema ultrapassa o estado: de acordo com a Funai, há 115 terras indígenas no país ainda não demarcadas.
“Eu sempre digo que nós, indígenas, não somos pobres, somos empobrecidos. Se você pegar o mapa das terras indígenas de Roraima, demarcadas na década de 1980, como a Serra da Lua, é um pontinho assim, foram deixadas de fora as matas, os rios, que são recursos naturais imprescindíveis à nossa sobrevivência física e cultural, por isso tem que reforçar outras políticas, investir em segurança alimentar, educação, principalmente. Já nas terras indígenas demarcadas depois da Constituição – Wai-Wai, Yanomami, Raposa Serra do Sol, Waimiri-Atroari – é diferente. Se vai o Censo lá e pergunta: ‘Você tem televisão, geladeira, acesso à internet?’. ‘Não.’ ‘Então você é pobre.’ Mas se vai para os nossos conceitos, as perguntas mudam: ‘Você tem acesso ao rio?’. ‘Tenho.’ ‘Você tem floresta em pé?’ ‘Tenho.’ ‘Você tem o que comer?’ ‘Tenho.’ ‘Você tem flora, fauna e uma riqueza em biodiversidade?’ ‘Tenho.’ ‘Então você é rico, hein, parente.’ Mas essa riqueza está ameaçada, como a gente vê na Terra Yanomami, onde estão jogando mercúrio nos rios, desmatando, as mulheres têm medo de ir pra roça e não podem alimentar seus filhos.”
Quando pergunto porque o movimento indígena de Roraima não participa da disputa pelo governo estadual (Fábio Almeida, do PSOL, que está na chapa de Joenia tem 1% nas pesquisas), ela responde: “Eles [os principais candidatos] falam assim: ‘Eu cuido das nossas comunidades’, mas o cuidado que a gente quer é demarcar e proteger nossas terras. Somente indígena que não defende seu povo quer vender, quer arrendar. Se um governador fala que as terras indígenas atrapalham o desenvolvimento de Roraima, ele não trabalha para os indígenas. Levar escola, arrumar estrada é obrigação dele, somos cidadãos brasileiros. Eles não chamam a gente para conversar, chamam indivíduos para negociar, não entendem que nosso sistema é coletivo, que nós temos também as nossas regras, a nossa Constituição. Nós queremos investimento? Queremos, mas nós temos projetos também, projetos bonitos que vêm das comunidades, não queremos os que eles impõem.”
No dia seguinte à entrevista, acompanhei Joenia e sua equipe de campanha à comunidade de Aningal, em Amajari, o mesmo município onde está o garimpo “legalizado” de Rodrigo Cataratas. Quando se dirige às cerca de 50 pessoas, principalmente mulheres e estudantes da escola da comunidade, Joenia pergunta: “Quem já me viu na televisão?”. Todo mundo levanta a mão. “Por que eu sou uma das únicas políticas de Roraima que aparece na TV sem ser por dinheiro na cueca nem ter tornozeleira na perna? Porque eu tenho trabalho pra mostrar. Eu sou a única dos oito parlamentares de Roraima que enfrenta tudo que é contra os direitos indígenas, que há três anos estão sendo perseguidos no Congresso. O direito à terra, o direito à educação”. Os aplausos aumentam.
Enquanto as meninas de Aningal abraçam Joenia, talvez sonhando em ser advogadas, médicas, professoras, não consigo deixar de pensar no bordão destas eleições, que tem um número recorde de candidaturas: “O futuro é indígena”. Depois de conversar com Joenia, Bartô e Ariene, acrescento: e coletivo.
Fonte: Publica