Descontrole
Fazia menos de um mês que a família morava em Porto Seguro quando Reges Amauri Krucinski assassinou J. Foi a segunda mudança em pouco tempo em um relacionamento que evoluiu rapidamente, segundo familiares com quem a Pública conversou.
O casal se conheceu em 2019 no litoral paulista e pouco depois Krucinski, originalmente do Rio Grande do Sul, se mudou para São Bernardo do Campo, região do ABC Paulista onde J. vivia. O casal chegou a comprar uma casa, mas decidiram mudar-se para o litoral baiano para construir uma pousada no Sul do Estado. Levaram um bebê de poucos meses, fruto do relacionamento, e as filhas que cada um têm de casamentos anteriores, de 14 e 10 anos.
A casa de São Bernardo do Campo permaneceu por muitos meses intocada. Ali estavam outras armas que pertencem a Krucinski e que não foram averiguadas pela Polícia, segundo familiares com quem a Pública conversou, que afirmaram ter alertado investigadores sobre a existência destas. Um familiar ouvido em depoimento pela Polícia disse que Krucinski alegava ter cerca de 11 armas. Recentemente, um caminhão levou embora todos os pertences da casa, disseram familiares. Não se sabe o destino das armas.
Questionada pela Pública, a Polícia Civil da Bahia disse “não ter conhecimento da existência dessas armas em São Paulo. Todas as armas foram apreendidas no local do crime.”
O “esquecimento” das armas é ilustrativo de como a fragilização nos controles das armas de fogo dificulta o trabalho policial e aumenta o risco de que essas armas sejam roubadas ou extraviadas.
Um dos pontos-cegos em investigações do tipo é o acesso limitado aos sistemas do Sinarm, da Polícia Federal, e do Sigma, do Exército. Via de regra, armas legais no Brasil estão registradas em um dos dois sistemas, a depender de quem concedeu a autorização de posse da arma.
“É muito grave. Sabemos que, no Brasil, e não só as delegacias de mulheres, mas as polícias em geral, as civis especialmente, têm muita dificuldade de acessar o Sigma, e conseguem acessar de forma um pouco mais facilitada o Sinarm. E aí você tem um universo enorme de armas que você não consegue acessar, quando elas são numeradas, para conseguir obter informação mais precisa para quem ela foi vendida ou revendida”, diz Carolina Ricardo, do Sou da Paz.
O Exército, órgão responsável pelos CACs, informou em setembro de 2022 ter 1,731 milhão de armas registradas no Sigma. No mesmo mês, a Polícia Federal disse ter expedido 117 mil registros de arma de fogo até junho deste ano.
Carolina Ricardo, do Sou da Paz, explica que, em casos de feminicídio, obter informações sobre a arma não costuma ser tão necessário, já que na maior parte das vezes, o autor é conhecido e frequentemente alguém do círculo íntimo da vítima.
Mas em crimes em geral, como homicídios, investigar a trajetória e origem da arma é primordial para entender o impacto que essas armas e munições têm na violência e na criminalidade. Medidas como a remoção da marcação de munições, que estaria prevista pelo projeto de lei 3.729, fragilizam ainda mais o trabalho policial.
Falta de registros
Em um caso de violência doméstica em que a arma seja o instrumento empregado, a autoridade policial deve verificar se o agressor possui registro ou porte e, caso sim, notificar a instituição que concedeu a autorização.
Tais diretivas foram estabelecidas em agosto de 2019, quando a Lei Maria da Penha foi editada para prever a apreensão de arma de fogo sob posse do agressor em ocorrências de violência doméstica e a notificação da instituição responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte.
O problema é que nem a Polícia Federal e nem o Exército mantêm dados sistematizados de ocorrências em que armas registradas em seus sistemas foram utilizados em ocorrências de violência doméstica.
A Pública solicitou à Polícia Federal e à Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército por meio da Lei de Acesso à Informação as notificações recebidas por cada organismo de ocorrências de violência em que o agressor possuía arma de fogo registrada nos respectivos sistemas, como estabelece a Lei Maria da Penha.
A DFPC negou o pedido, alegando que as informações estariam protegidas por dados pessoais. Foi só na terceira instância, quando um recurso chegou à Controladoria-Geral da União, que foram feitos esclarecimentos. “A suspensão da autorização de posse e/ou porte de arma de fogo pela autoridade competente não gera nenhum evento no SIGMA que possa identificar essa situação, inviabilizando a extração de dados do sistema que indiquem proprietários nessa condição”, escreveu a CGU em resposta ao recurso.
Já a Polícia Federal informou que “não dispõe de controle (…) de ocorrências de violência doméstica em que o agressor possuía arma de fogo registrada no SINARM” e complementou “que além de as determinações judiciais chegarem diretamente nos Estados e Delegacias Descentralizadas (não havendo um canal único de informação), também não há um campo específico no Sinarm para os casos de suspensão de posse/porte e/ou cancelamento de porte para os casos da Lei Maria da Penha. Apenas há o campo impedimento, que pode ser marcado por diversas razões além de decisões judiciais exaradas em casos envolvendo a Lei 11.340/2006.”
Na resposta, o DPF admite a possibilidade de passar a manter registro claro no sistema de casos de violência doméstica. “Será solicitado à DARM/CGCSP/DIREX/PF, responsável pelo SINARM, que analise a viabilidade de inserir campo estruturado no sistema que permita identificar mediante simples pesquisa o registro de novas ocorrência de violência doméstica vinculada a determinado porte ou registro (posse) de arma de fogo, em atualizações futuras do sistema.“
Desafios
Por serem mais letais que armas brancas, a chance de sobrevivência das vítimas é menor. A delegada da Polícia Civil piauiense Eugênia Villa explica que os maiores desafios não estão nos trâmites jurídicos ou burocráticos para apreender a arma, mas sim em fazer com que as mulheres peçam ajuda antes que seja tarde demais.
“O grande desafio é porque as mulheres são assassinadas em silêncio, elas não chegam até a polícia”, disse Villa à Pública, acrescentando que entre 80 a 90% dos casos de vítimas fatais que chegam até sua divisão são de mulheres que nunca procuraram a polícia.
Foi na tentativa de mitigar esse cenário e facilitar que vítimas peçam ajuda que a Secretaria de Segurança Pública do Piauí lançou em 2017 o aplicativo Salve Maria, que permite denúncias anônimas. A ferramenta já foi adotada por outros Estados brasileiros e tem sido estudada por outros países.
A delegada Eugênia Villa, que se tornou uma referência nacional ao instituir linhas de investigação e treinamento específicas para feminicídio, alerta que, diferentemente de feminicídios com arma branca, cujo acesso é facilitado, crimes com arma de fogo são facilmente possíveis de serem prevenidos.
“Uma arma branca é uma arma doméstica, que era o que a gente via mais sendo utilizado nos feminicídios domésticos. Quer dizer, uma faca qualquer pessoa tem dentro de casa. Quem é que não tem uma faca para cortar uma carne, preparar um alimento, não é verdade? Então ficava difícil a gente evitar esse feminicídio”, disse a delegada.
“Agora uma arma de fogo, não é uma arma comum. Não é um instrumento doméstico, então é possível a gente reduzir essa mortandade se nós pudermos controlar ou proibir acesso à arma de fogo”, acrescentou.
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