Em outubro de 1987, Jair Bolsonaro, então um capitão da ativa do Exército no Rio de Janeiro, foi o foco de uma reportagem da revista “Veja” que denunciava um plano, liderado pelo futuro presidente da República, de espalhar bombas em unidades militares. Poucos dias antes, contudo, um outro evento que abalou o meio militar e foi tão ou mais grave – hoje relegado ao esquecimento – havia ocorrido na cidade de Apucarana (PR).
O capitão do Exército Luiz Fernando Walther de Almeida, então comandante da 1ª Companhia de Fuzileiros do 30º Batalhão de Infantaria Motorizado, reuniu 50 homens com “armamento leve, fardo de combate e capacete de aço”, cercou a prefeitura de Apucarana e entrou, armado com uma metralhadora, no gabinete do prefeito, onde entregou um “manifesto” contra “as autoridades políticas do país”. A tropa tomou o prédio por cerca de dez minutos. Cópias do “manifesto” foram distribuídas pelos soldados a emissoras de rádio e TV da região.
Na época, o prefeito de Apucarana, Carlos Roberto Scarpelini (MDB), disse ao jornal “O Globo” que se tratava de um “movimento da direita visando a desestabilização política do país”. Walther se apresentou ao seu oficial superior e foi preso no mesmo dia.
O cerco à prefeitura ocorreu no dia 22 de outubro de 1987. A reportagem “Pôr bombas nos quartéis, um plano na Esao”, que trazia uma fotografia de Bolsonaro, circulou na edição de “Veja” de 28 de outubro. Ou seja, a reportagem foi apurada e escrita na mesma semana da rebelião de Apucarana.
Em ambos os casos, a alegação dos militares foi a mesma: reivindicar reajuste salarial. Em um curto livro de memórias recém-lançado, Walther chama Bolsonaro de “irmão de rebeldia” e amigo e conta que, em 1988, eles se comunicaram por cartas. O livro não explica se Walther e Bolsonaro trocaram, antes do ato em Apucarana, impressões sobre um eventual ato de “rebeldia” no Exército, embora ressalte que a ação no Paraná foi, em si, um ato solitário de Walther. Localizado por telefone pela Agência Pública nesta quarta-feira (26), o militar disse que não gostaria de dar declarações à imprensa antes do fim do segundo turno das eleições.
Ambos estudaram, em turmas diferentes, na Aman (Academia Nacional das Agulhas Negras). Bolsonaro foi calouro de Walther, 69, que é dois anos mais velho que o presidente.
Em uma live em 13 de maio de 2021, Bolsonaro disse que tinha “uma história com Walther, maravilhosa no ano de 1987, aliás isso não é o caso de contar aqui não”. “No mesmo dia tivemos uma experiência aí… diferente. Mas não é essa que você está pensando. Tivemos aí uma experiência profissional. E nós ficamos conhecidos. Ele continuou no Exército, eu saí.”, disse Bolsonaro. Walther estava na sala.
‘Seria uma tentativa de golpe?’
Mas qual era a história que Bolsonaro não quis contar naquele dia?
Ela começa um ano antes da revolta em Apucarana. Em 1986, Bolsonaro havia assinado um artigo em “Veja” no qual dizia que o “salário está baixo”. Com seu gesto, afrontou o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, e o presidente da República, José Sarney. “Agora, na Nova República, sofremos uma grande perda salarial”, escreveu Bolsonaro. Acompanhando o texto, uma fotografia do autor de boina e camisa militar.
O país havia acabado de sair de uma ditadura militar de 21 anos (1964-1985). Sarney e Leônidas, lutavam por uma transição pacífica que garantisse as eleições diretas presidenciais em 1989 – eleições livres presidenciais que não aconteciam desde 1960, portanto, quase 40 anos de trevas. Nesse contexto, o artigo de Bolsonaro gerou um incômodo nos meios político e militar. No governo, na imprensa e no Congresso, todos queriam saber se algum militar mais graúdo da extrema-direita estava por trás do movimento de Bolsonaro. Um ano depois, estouraram os dois casos simultaneamente, o cerco à prefeitura e o plano revelado por “Veja”.
Na própria contracapa do livro de Walther, esse paralelo foi ressaltado: “Em 22 de outubro de 1987, dois capitães do Exército Brasileiro se revoltaram contra os baixos soldos dos seus soldados. Havia muitos sem receber reajustes num cenário de hiperinflação que beirava os 80% ao mês. Eram, à época, desconhecidos do grande público. A imprensa especulou: seria uma tentativa de golpe? De retrocesso à ditadura militar?”.
Ao escrever o artigo em Veja em 1986, Bolsonaro agiu sem autorização e feriu a hierarquia e a disciplina, dois princípios fundamentais de uma organização militar. Ele cometeu uma grave transgressão disciplinar e, por isso, acabou preso por 15 dias.
No ano seguinte, pelos eventos no Paraná, o capitão Walther também foi preso. Primeiro condenado a três anos de reclusão, a pena foi reduzida no STM (Superior Tribunal Militar) a oito meses. Diferentemente de Walther, contudo, Bolsonaro escapou praticamente ileso. Considerado culpado por um Conselho de Justificação, ele conseguiu se livrar da condenação em julgamento no STM. Dali saiu para uma carreira política na Câmara de Vereadores do Rio. Os caminhos dos dois capitães voltariam a se cruzar quando Bolsonaro se tornou presidente da República, conforme veremos adiante.
Com 35 anos completados neste mês, o cerco de Apucarana é revisitado no livro de memórias assinado por Walther, que passou à reserva como tenente-coronel, e pela escritora Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano e lançado em abril último (“Um passado de presente – O capitão rebelde de Apucarana”, Soul Editora, 130 páginas).
O livro traz um rápido contexto político também com uma menção importante sobre o papel de Bolsonaro. “Naquele ano [1986], o capitão Jair Messias Bolsonaro, seu companheiro de turma, num ato de muita coragem, se manifestara publicamente contra os baixos salários dos militares brasileiros. Sofreu severa punição disciplinar.”
O livro diz que “alguns capitães, alunos da Escola de Aperfeiçoamento, protestavam através de manifestações de suas esposas com ‘bateção’ de panelas, na Vila Militar”. Walther pensava diferente, como diz o livro, “bateção de panela” é “coisa de mulher de presidiário” e “temos fuzis e tiramos o governo… protesto de militar é com munição real”.
Assim como Bolsonaro fez na época, Walther mostra toda sua oposição ao então ministro do Exército, Leônidas Pires (1921-2015), cujo nome sequer é citado no livro. Há menção apenas a um suposto apelido pejorativo, “Sabonetão”. Walther dizia não concordar com o “baixo padrão de vida, baixo poder aquisitivo” dos militares. Considerava os chefes militares da época “cretinos, carreiristas e covardes”. No início de 1987, confidenciou pela primeira vez a parentes em Ribeirão Preto (SP) que estava pensando “em fazer uma merda grande”. Seu pai tentou dissuadi-lo da ideia, sem sucesso.
O estopim da rebelião de 22 de outubro de 1987, diz Walther nas suas memórias, foi a notícia de que a família de um “colega falecido” não tinha condições de pagar o enterro e que teria “sua assistência médica cortada”. Walther diz que agiu por impulso pessoal, sem consultar ninguém do comando do batalhão. Escreveu no bilhete entregue à prefeitura e aos meios de comunicação: “Declaro que, nesta data, inconformado com a situação financeira e de assistência médica em que vivem os meus comandados, tomei a iniciativa e a responsabilidade de protestar contra as autoridades políticas do país, não obstante confie nos meus superiores hierárquicos e reconheça os seus esforços. Procedo desta maneira antes que os meus oficiais subalternos ou os sargentos o façam”.
Durante o processo a que respondeu na Justiça Militar, Walther dirigiu-se pela primeira vez à imprensa que foi cobrir uma das sessões em Curitiba (PR). Conforme registrado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, Walther procurou saber se ali estava algum jornalista da revista “Veja” porque pretendia esclarecer que a sua atitude não teve relação com a operação de espalhar bombas nas unidades militares associada ao nome de Bolsonaro.
Bolsonaro intercedeu para cargo no governo
Mesmo preso e condenado, Walther seguiu no Exército após o cumprimento da pena. Diz, no livro, que sua carreira sofreu um forte impacto. Ainda assim, exibia prestígio na Força, como ilustra um episódio que novamente envolveu Bolsonaro. No começo dos anos 90, diz o livro, Walther servia em Brasília quando Bolsonaro, então deputado federal, se dirigiu a um churrasco no Clube do Exército que reunia militares da turma de 1977. Bolsonaro, diz o livro, “estava proibido de ingressar no Clube por ser considerado persona non grata”. Walther procurou o então presidente do Clube do Exército, general Lee, e ouviu dele que Bolsonaro “ofendeu o ministro, que é presidente de honra do Clube!”.
Naquela época, diz o livro, Bolsonaro “continuava pregando melhores salários e atuava junto às esposas, que protestavam, já que os maridos não o faziam”. Numa ocasião, diz a obra, “um militar à paisana filmava Bolsonaro”, quando o então deputado “virou o rosto diretamente para a câmera [e] falou impropérios para o ministro do Exército”, Carlos Tinoco Ribeiro Gomes (1928-2015), que foi ministro de Fernando Collor de 1990 a 1992.
Voltando ao churrasco: Walther diz que intercedeu junto ao presidente do Clube e Bolsonaro foi enfim autorizado a comparecer.
No livro, Walther conta que, numa das cartas trocadas em 1988, Bolsonaro lhe escreveu que “não teremos como continuar nossas carreiras no Exército, temos que ir para a política”. Walther se recusou e Bolsonaro “ficou bravo até hoje por essa decisão dele”.
Em 2001, Walther deixou o Exército e foi trabalhar como chefe de segurança no Barra Shopping, considerado então o maior da América Latina. Depois trabalhou no shopping Grande Rio e no Caxias Shopping. Ao todo, trabalhou 12 anos no setor.
Ao final dessa fase, em 2013, o militar montou com sua esposa, bancária aposentada no Banco do Brasil, uma empresa de navegação em Salvador (BA) denominada Logship, ou Walther Operações Logísticas e Serviços de Transportes Ltda.
Sete anos depois, em 2020, já com seu amigo Bolsonaro na Presidência da República, Walther rumou para o serviço público. O livro descreve como Bolsonaro atuou pessoalmente para isso. O episódio também ajuda a iluminar como ocorreram escolhas de militares para cargos no governo Bolsonaro.
No final de 2018, com Bolsonaro já eleito, Walther foi lhe fazer “uma visita de cortesia”. “Afinal, tinham sido companheiros de farda e de aventuras. Estreitaram seus laços de amizade a partir de então.”
Walther não explica, no livro, o que foi conversado nesse encontro. Logo depois, quando estava num hotel em Campinas (SP), recebeu um telefonema de uma pessoa que ele identificou como “comandante Cesar Castro, oficial da Marinha”.
Esse militar teria dito o seguinte, na versão de Walther: “Olha, Walther, eu recebi um convite para trabalhar na diretoria dos portos de Fortaleza, no Ceará, e me parece que é o General [Hamilton] Mourão que está distribuindo e fazendo consultas para esses cargos”.
Não fica claro, no livro, porque o “comandante” teria procurado Walther para falar sobre isso. Walther, contudo, preferiu falar “com um outro amigo, assessor do Bolsonaro, mais próximo a ele do que o vice-presidente, general Mourão”. O nome do assessor também não é revelado. Na conversa, Walther teria falado: “Avise ao presidente, já que ele está precisando de pessoas da sua confiança que conheçam a rotina dos portos brasileiros, que há sete anos eu estou atuando em Salvador com uma empresa de logística que atende ao abastecimento de navios, ‘transfer’ de tripulantes, fornecimento de equipamentos e outros itens. Não sou leigo na rotina portuária”.
Walther disse que foi pego de surpresa ao saber que, ao lado do assessor do outro lado da linha, estava o próprio Bolsonaro, que pegou o telefone e passou a conversar com ele. Novamente não se diz o que foi falado. No dia seguinte, Walther voltou a procurar o assessor, que lhe contou a impressão de Bolsonaro. “Muito bem – foi a resposta. Gostou do que ouviu e fez, inclusive, um comentário: por que não o Porto de Santos?”
A sua nomeação, contudo, “levou mais de um ano”. Em 2019, o jornalista Lauro Jardim escreveu em sua coluna no jornal “O Globo” que o também militar Tarcísio Freitas, então ministro da Infraestrutura e hoje candidato de Bolsonaro ao governo de São Paulo, estava “resistindo”, por razões não informadas, à indicação que tinha partido “de um núcleo bem próximo de Bolsonaro”. Se havia resistência de Tarcísio, ela acabou em janeiro de 2020, quando Walther foi nomeado para um porto na Bahia também sob gestão do ministério de Tarcísio. Lauro Jardim atribuiu a nomeação à intervenção do “vice-almirante Carlos Autran”.
Em dois anos, Walther passou pela direção de Infraestrutura da Companhia Docas da Bahia, pela chefia de gabinete do Porto de Santos (SP) e, por fim, foi nomeado no último dia 18 de julho diretor de Gestão Portuária da Companhia Docas do Rio de Janeiro, a autoridade portuária que administra os portos do Rio, Itaguaí, Niterói e Angra dos Reis. A Docas do Rio é também vinculada ao Ministério da Infraestrutura.
“Todas essas andanças portuárias nada mais eram do que missões aceitas em respeito e admiração pelo presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, seu colega de turma no Exército e ‘irmão de rebeldia’, naqueles idos de 1987, um no Rio e outro em Apucarana. Agora, porém, era 2020 e pouquíssimos brasileiros se lembravam ou mesmo se importavam com aquela história antiga”, escreveu Walther em seu livro.
A coautora, Isabel Fomm, que é prima de Walther, disse que ele apresentou a ideia, no ano passado, de deixar a história registrada em livro que abordaria não só o evento de Apucarana, mas também a trajetória de sua família. “É uma história muito bacana, muito bonita. O Fernando é um sujeito estourado. Não conseguiu ver seus soldados passando fome. Fez aquele ato e foi severamente punido pelo Exército. Teve sua carreira prejudicada. Tanto que se reformou tenente-coronel, quando poderia ter chegado a general. Eu achei que devia ouvi-lo e contar essa história. Ele é amigo pessoal do Bolsonaro, foi o único militar convidado para o jantar de posse em Brasília. O Bolsonaro o trata com a maior deferência.”
Fonte: Publica