Às cinco horas da manhã do dia 6 de dezembro de 2018 veio à tona a primeira notícia sobre denúncias que acompanhariam o então presidente eleito, Jair Bolsonaro (PL), ao longo de todo seu mandato: as suspeitas de desvio de dinheiro público por meio da prática de “rachadinha” no gabinete do seu filho primogênito, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), na Assembleia Legislativa do Rio. Quase quatro anos depois, a Agência Pública mostra que ao menos seis assessores citados no esquema que ficou conhecido como “O negócio do Jair” permanecem nos gabinetes dos filhos do presidente ou ganharam cargo no governo federal. Juntos, eles receberam só neste ano R$ 729 mil de salário bruto, entre janeiro a setembro.
A marca das nomeações do clã, de empregar servidores com laços familiares entre si – conforme revelado pelo jornal O Globo em 2019 – foi posta em prática com os assessores especiais da presidência Wolmar Villar Júnior, José Matheus Sales Gomes, Joel Novaes da Fonseca e Patrícia Broetto Arantes. Em comum, todos eles trabalharam com Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados e têm algum familiar lotado em cargo comissionado no governo ou, no caso de Patrícia, no gabinete do filho do presidente.
Procuramos todos os servidores citados por meio da assessoria de imprensa da presidência e dos gabinetes de Flávio, Carlos e Eduardo, que não retornaram aos contatos. O chefe de gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, Jorge Luiz Fernandes, disse à Pública que não tem nada a declarar e orientou que procurássemos o advogado Antônio Carlos Fonseca, que representa o filho do presidente. A reportagem procurou o advogado por telefone, que não atendeu.
Homem de confiança de Jair Bolsonaro, Wolmar Villar Júnior trabalha com o político desde seu primeiro mandato como deputado federal. Ele chegou a ser alocado no gabinete de Eduardo Bolsonaro no Congresso durante o período de transição do governo, de 1 a 13 de janeiro de 2019. No dia seguinte já saía sua nomeação para trabalhar na presidência, onde permanece até hoje. Em 2010, Wolmar emprestou R$100 mil para o então deputado estadual Flávio Bolsonaro, conforme declaração do hoje senador à Receita Federal. A informação apareceu na investigação do Ministério Público do Estado do Rio, referente ao caso das rachadinhas. O assessor começou sua trajetória no Planalto com salário bruto de R$ 10,8 mil e atualmente recebe R$ 13,6 mil.
A sua esposa, Miqueline Sousa Matheus, também passou pelo gabinete de Jair na Câmara dos Deputados, no período de abril de 2005 a dezembro de 2018. Atualmente, ela ocupa o cargo de auxiliar administrativo na coordenação de infraestrutura e serviços da Embratur, com vencimento de R$ 3,6 mil. De acordo com reportagem da Revista Crusoé, a agência teria virado cabide de empregos para ex-assessores da família Bolsonaro e parentes de autoridades. A mulher do assessor da presidência Mosart Aragão Pereira também ganhou uma vaga na Embratur. Maria das Dores Leite Pereira está lotada na gerência do centro de documentação e patrimônio histórico da agência, com vencimento de R$25,7 mil.
Ex-cunhada de Renato Bolsonaro, irmão de Jair, Maria das Dores já passou 15 anos no gabinete do presidente na Câmara, e outros quatro pelo de Eduardo. Nas últimas eleições, seu marido concorreu a deputado federal por São Paulo pelo PL, tendo Renato Bolsonaro na coordenação da campanha. O tenente Mosart teve cerca de 33 mil votos, mas não conseguiu se eleger, voltando à vaga no gabinete de Jair Bolsonaro.
A Pública apurou que a Embratur abriga ainda o irmão do assessor do presidente José Matheus Sales Gomes. José Rodrigo Sales Gomes ocupa um cargo na gerência de tecnologia da informação da agência, com salário de R$ 14,6 mil.
Antes de ir trabalhar no Palácio do Planalto, José Matheus trabalhava no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ), cuidando de redes sociais de Jair – cargo que ocupou de fevereiro de 2014 a janeiro de 2019. Ele foi apontado pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos como membro do chamado “gabinete do ódio”. Em depoimento aos policiais, José Matheus disse que auxilia na comunicação digital de Jair Bolsonaro, que é liderada por Carlos.
Enviamos para a Embratur a lista de nomes de servidores e a relação de parentesco com os assessores da presidência, mas a agência não retornou ao contato da reportagem.
Mulher de assessor do presidente ganhou cargo na saúde indígena
Outro assessor especial que teve seu nome envolvido em escândalos junto aos filhos do presidente é Joel Novaes da Fonseca. Conforme noticiado pela imprensa, ele teria intermediado reuniões de empresários parceiros de Jair Renan, junto a representantes do governo. Militar reformado, Joel trabalha com os Bolsonaro desde 2015, ano em que foi nomeado por Eduardo na Câmara. Desde então, ele migrou três vezes de gabinete – em março de 2016, foi para o do patriarca da família; em dezembro do mesmo ano, voltou para o de Eduardo; e, em fevereiro de 2018, assumiu novamente a vaga no gabinete de Jair.
Eleito presidente, Jair Bolsonaro o levou para trabalhar como seu assessor pessoal, e deu um cargo comissionado para a esposa do amigo, Ghislaine Maria de Oliveira Barros. Médica concursada da Secretaria da Saúde do Governo do Distrito Federal, a companheira de Joel está lotada desde outubro de 2019 no Ministério da Saúde. Ela é coordenadora-geral de Participação Social na Saúde Indígena e recebe um salário de R$ 6,2 mil. Questionamos a nomeação ao Ministério da Saúde, que não retornou o contato.
Mais antiga na relação de servidores da família Bolsonaro do que Joel, Patrícia Broetto também foi levada por Jair para a presidência. A psicóloga ficou lotada por 10 anos como assessora parlamentar do então deputado federal, de 2008 a 2018. Quando Patrícia foi nomeada no gabinete de Jair na Câmara, seu pai, o ex-agente da Abin, Telmo Broetto, já estava lá há três anos, onde permaneceu até o fim do mandato do político no Legislativo.
Em 2014, Telmo doou R$ 7 mil à candidatura de Eduardo, enquanto recebia R$ 10 mil de salário mensal como assessor de seu pai. Quando Jair Bolsonaro foi eleito, foi para o gabinete de Eduardo que ele migrou. A repórter Juliana Dal Piva revelou ainda em sua coluna do Uol que Telmo foi um dos assessores de Jair Bolsonaro no Legislativo Federal que teriam feito depósitos para a ex-cunhada do presidente, Andrea Siqueira Valle — seriam três depósitos, que somariam R$ 670.
Andrea é irmã da segunda mulher de Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle. De acordo com a investigação de Dal Piva, foi ela que teria gerenciado por muitos anos o “Negócio de Jair”, que virou nome do livro da jornalista lançado recentemente.
Mas não foram só parentes dos antigos assessores do clã Bolsonaro que ganharam cargos no governo federal. Os novos também foram contemplados. A filha de Aída Íris de Oliveira, chefe de gabinete adjunto de Jair, ganhou uma vaga em abril também no Palácio do Planalto, conforme revelou o portal Metrópoles. A advogada Juliana Nunes Gomes de Oliveira é assistente da Divisão de Apoio Administrativo, da Secretaria Especial de Administração da Secretaria-Geral, e recebe um salário de R$ 3,4 mil.
Ex-assessores de Jair que nunca pisaram no Congresso estão no gabinete de Carlos
A prática de nomear servidores com parentesco entre si começou quando Jair Bolsonaro assumiu seu primeiro mandato na Câmara dos Deputados, em 1991. A investigação do Jornal O Globo nos gabinetes de Carlos, Eduardo, Flávio e Jair mostrou que, em 28 anos na política, eles empregaram 102 pessoas com algum vínculo familiar.
No livro, Juliana Dal Piva denuncia que os próprios parentes ou os familiares de amigos eram nomeados, mas tinham que devolver parte do salário para os patrões. Sobrava aos assessores uma pequena parcela. Muitos deles, no entanto, seriam fantasmas, como por exemplo, a mulher e mãe do miliciano morto Adriano da Nóbrega e a esposa e filhas do ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz.
Reportagens publicadas em 2019 pela Pública divulgaram o nome de assessores de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados que nunca haviam pisado no Congresso. Assim que o político foi eleito presidente, dois deles migraram para o gabinete de Carlos Bolsonaro na Câmara Municipal do Rio de Janeiro: Levy Alves dos Santos Barbosa e Patrícia Cristina Faustino de Paula.
Levy trabalhou com Carlos de 2008 a 2017. Em outubro daquele ano, foi nomeado por Jair em Brasília, onde ficou até 1º de janeiro de 2018. Apesar de ter recebido um salário de R$ 8 mil líquidos, não há registros de sua entrada na Câmara dos Deputados nesse período. A publicação da exoneração no Congresso saiu exatamente no mesmo dia que ele era novamente alocado numa vaga no gabinete de Carlos Bolsonaro. Hoje ele recebe um salário de R$ 17,4 mil como assessor especial do vereador.
Já Patrícia Faustino ficou lotada no gabinete de Jair Bolsonaro de 2008 a 2018, mas nunca teve crachá ou registro de entrada no Congresso. Ela começou a carreira junto ao clã quando tinha apenas 21 anos. A Folha de São Paulo mostrou que o salário dela variou neste período de R$ 845 a R$ 8 mil, subindo e descendo. A reportagem revelou uma intensa e incomum rotatividade salarial no gabinete de Jair Bolsonaro.
Outros assessores de Carlos também já foram empregados ou tiveram parentes no gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. É o caso de Regina Célia Sobral Fernandes, casada com Jorge Luiz Fernandes, que também trabalha para o vereador, e irmã de Carlos Alberto Sobral Franco, que já foi lotado no gabinete de Jair entre 1995 e 1997, à época em que este era deputado federal. Franco é casado com a microempresária Maria Janice Andrade Franco, que esteve lotada no gabinete de Jair de 1991 a 2000. Como assessores de Carlos Bolsonaro, Regina e o marido recebem hoje R$ 13 mil e R$ 23 mil, respectivamente.
Flávio levou para o Senado assessores envolvidos no escândalo das rachadinhas
Apesar do escândalo dos funcionários fantasmas e da quebra do sigilo bancário de vários assessores de Flávio Bolsonaro, a família manteve por perto ao longo dos últimos quatros anos alguns dos pivôs mencionados no suposto esquema.
Apontado pelo Ministério Público do Rio como integrante do núcleo operacional das rachadinhas no gabinete de Flávio na Assembleia do Rio ao lado de Fabrício Queiroz, Miguel Ângelo Braga Grillo, o coronel Braga, virou chefe de gabinete do político no Senado. Ele recebe um salário de R$22,9 mil.
Flávio também levou para Brasília em 2019 a advogada Lygia Regina Martan. Ela está na lista de assessores da Alerj que tiveram sigilo quebrado no caso das rachadinhas. No Senado, o político ainda deu uma vaga em seu gabinete para o marido de Lygia, Marcelo Martan Siqueira. Além de trabalhar juntos no Congresso, os dois atuam na defesa do senador na Justiça.
Os outros dois assessores que Flávio Bolsonaro levou da Assembleia do Rio para o Senado são: Alessandra Esteves Marins Vianna e Juraci Passos dos Reis. Eles integram a equipe do escritório de apoio do senador na capital fluminense. Em 2020, Alessandra foi alvo de busca e apreensão no caso das rachadinhas e Juraci também teve o sigilo quebrado durante as investigações.
O caso das rachadinhas foi arquivado pelo Tribunal de Justiça do Rio em maio deste ano. A Justiça considerou que o caso não deveria estar na primeira instância porque Flávio tem foro privilegiado e as provas também foram anuladas, sem análise do conteúdo. Em novembro de 2021, o STF anulou os relatórios do COAF que embasaram a denúncia arquivada.
Citados nas rachadinhas, fantasmas nas eleições
Além dos vários assessores envolvidos no escândalo das rachadinhas e suspeitos de serem funcionários-fantasmas que permanecem nos gabinetes dos Bolsonaro, alguns ex-funcionários do clã também tentaram a sorte nas eleições de 2022, buscando angariar votos se associando ao presidente e a seus filhos.
O caso mais notório é de Fabrício Queiroz, apontado como líder do esquema das rachadinhas, que tentou uma vaga de deputado estadual pelo PTB no Rio de Janeiro. Ele chegou a ser preso na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, em Atibaia, por conta da acusação, mas teve liberdade concedida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em março de 2021. Procurado, Queiroz disse que não irá se manifestar.
Na campanha, Queiroz utilizou o slogan “Lealdade de verdade” e estampou o rosto do presidente em seu material, mas não teve apoio público do ex-chefe. O ex-policial militar recebeu R$ 250 mil do partido de Roberto Jefferson, mas não conseguiu converter o montante significativo em votos: ele recebeu apenas 6.701 votos e foi o 7º mais votado da legenda, que elegeu somente um deputado.
Outra ex-funcionária da família presidencial também tentou, sem sucesso, uma vaga na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj): ex-assessora de Flávio na Alerj, Valdenice Meliga concorreu pelo PL, mas conseguiu apenas 1.845 votos, sendo uma das menos votadas do partido, que elegeu 17 deputados estaduais. O desempenho ruim ocorreu a despeito de uma doação financeira de R$ 300 mil do diretório nacional da legenda – a título de comparação, o valor foi R$ 50 mil a mais do que o recebido por Alan Lopes, que conquistou a última cadeira do PL na Alerj, com mais de 42 mil votos. Ao longo da campanha, Meliga utilizou o slogan “A candidata que a Família Bolsonaro confia”.
A ex-assessora, que teve o sigilo quebrado durante a investigação das rachadinhas, foi figura recorrente do noticiário nos primeiros anos do governo Bolsonaro. Reportagem da Revista Istoé, de 2019, revelou que ela é irmã de dois policiais militares acusados de fazer parte da milícia no Rio de Janeiro. Então tesoureira do PSL no Rio, ela assinou cheques em nome de Flávio Bolsonaro no pleito de 2018, quando o partido chegou a ser acusado de utilizar candidatas-laranja no estado e também teve a prestação de contas questionada.
O rol de figuras ligadas ao escândalo das rachadinhas que tentaram se alçar a cargos políticos teve ainda um representante em São Paulo: Frederick Wassef, que concorreu a deputado federal pelo PL de Bolsonaro. Advogado de Flávio no caso e ex-anfitrião de Fabrício Queiroz, Wassef tentou se eleger com o slogan “O escudo do presidente”, mas foi mais um que não teve sucesso. O advogado recebeu R$ 200 mil do PL para impulsionar sua campanha, mas apenas 3.628 eleitores confiaram seu voto a ele, número muito distante dos 71 mil recebidos por Tiririca, que levou a última vaga conquistada pela legenda.
Fonte: Publica