Um grupo representativo de organizações não governamentais socioambientais protocolou nesta quarta-feira (9) no Gabinete do Procurador do TPI (Tribunal Penal Internacional) em Haia, na Holanda, um pedido de investigação sobre uma “rede” de criminosos públicos e privados. Segundo a petição, tal “rede” provocou “sofrimento em massa” e “graves danos à Floresta Amazônica” brasileira em um período de dez anos (2011-2021), o que representaria crimes contra a humanidade previstos no Estatuto de Roma.
A ação da “rede”, segundo a petição, foi “promovida e incentivada” pelo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Embora “já influente há muitos anos”, a “rede” conseguiu, com a eleição de Bolsonaro em 2018, “capturar o Poder Executivo do país”, diz a petição.
Segundo a comunicação, a “rede” é “um grupo organizacional de atores dos setores público e privado, a nível local, estadual e federal” que é motivado “pelo desenvolvimento econômico voraz e desenfreado da Floresta Amazônica Brasileira”. Para isso, tem buscado “uma política para facilitar a expropriação de terras, a exploração de recursos naturais e a destruição do ambiente, independentemente da lei”.
A comunicação foi apresentada ao Gabinete do Procurador pelo Climate Counsel, uma fundação sem fins lucrativos com sede em Haia formada por ex-advogados das Nações Unidas dedicados à justiça ambiental e climática, Greenpeace Brasil e OC (Observatório do Clima), coalizão que reúne 77 organizações não governamentais do campo socioambiental no Brasil. A petição também é apoiada por várias organizações, entre as quais CPT (Comissão Pastoral da Terra), Instituto Zé Cláudio e Maria, Global Wittness e Greenpeace Internacional.
A petição é subscrita pelos advogados Richard Rogers, fundador do Climate Counsel e advogado sênior em vários tribunais de crimes de guerra da ONU, e Paulo Busse, do Greenpeace e do OC, especializado em casos criminais e ambientais, e por Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas do OC.
“Plataforma Digital de Provas”
Também nesta quarta-feira foi aberta na internet uma “Plataforma Digital de Provas” no endereço https://brazil-crimes.org com os detalhes sobre o conteúdo da petição.
As organizações ambientalistas pedem a investigação e, por fim, a condenação de um grupo de brasileiros – os nomes estão em sigilo num anexo confidencial – por supostos crimes contra a humanidade, incluindo homicídio, perseguição e outros atos desumanos, conforme previsto no artigo 7º do Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil em 2002.
Segundo a petição, “um ataque generalizado e sistemático foi cometido contra a população civil, incluindo diversos ‘crimes subjacentes’ do Artigo 7º do Estatuto de Roma, a saber, homicídio, perseguição e outros atos desumanos”.
Esse ataque, diz a comunicação, “foi cometido ao longo da última década contra milhares de ‘Usuários de Terras Rurais’ e seus ‘Defensores’, de acordo com uma política organizacional voltada a facilitar o esbulho de terras, a exploração de recursos naturais e a destruição do meio ambiente, independentemente da lei. Essa política promoveu e/ou incentivou o cometimento dos crimes subjacentes descritos em outras partes desta Comunicação, os quais foram cometidos por atores dos setores público e privado nos níveis local, estadual e federal”.
A comunicação mencionou os levantamentos anuais da CPT que apontaram um total, de 2011 a 2021, de 11.057 conflitos relacionados à terra e 2.290 relacionados à água no Brasil. Nesse contexto, foram registrados 430 homicídios, 554 tentativas, 2.290 ameaças de morte, 87 casos de tortura, 1.559 prisões, 2.072 agressões e 259 mortes delas resultantes. No tópico da violência contra a ocupação e a posse do solo, foram catalogados 14.889 expulsões, 96 mil despejos, 31,4 mil destruições de casas, 33 mil destruições de roças/canteiros de cultivo, 44 mil destruições de outros itens e 163,9 mil ameaças.
Os Estados que concentram o maior número de casos de violência são Pará, Maranhão e Mato Grosso. “As seis principais causas de conflito são fazendeiros, empresários, grileiros, madeireiros, governo federal e mineradoras. Os cinco principais grupos de vítimas são sem-terra, ocupantes ilegais (posseiros), grupos indígenas, quilombolas e assentados (ocupantes cujos direitos estão em processo de regularização).”
A comunicação ao TPI chama a atenção para alguns “casos específicos de criminalidade”: o massacre de Baião, em março de 2019 no Pará (seis mortos), o massacre de Colniza, em maio de 2017 em Mato Grosso (nove assassinatos) e o massacre de Pau d’Arco, em maio de 2017 no Pará (dez mortos). Em janeiro de 2021, o defensor do direito à terra Fernando dos Santos, testemunha e sobrevivente do massacre de Pau d’Arco, “foi encontrado mortos a tiros em sua casa no Estado do Pará”.
O relatório ressalta, como “grupos específicos visados no longo prazo”, diversos episódios de violência sofrida ao longo de anos por povos indígenas de Mato Grosso do Sul (guarani-kaiowá), de Mato Grosso (xavante) e do Pará.
Também são enfocados perseguições e assassinatos dos chamados “guardiões”, principalmente no Maranhão (guajajara), no Pará (gamela) e em Rondônia (uru-eu-wau-wau) , que são grupos de indígenas que resolvem fazer a fiscalização de suas terras ante a inoperância e omissão do Estado na proteção dos territórios. A comunicação destaca ameaças a lideranças Munduruku, no Pará, como Alessandra Korap.
Casos de violência que tiveram grande repercussão são mencionados na comunicação, como os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho de 2022, e do casal de assentados de uma reserva extrativista do Pará José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, em maio de 2011. Diversos ataques a servidores públicos, principalmente fiscais do Ibama e do ICMBio durante o governo de Bolsonaro, são ressaltados na comunicação ao TPI.
Grupo acusado assemelha-se a “um Estado profundo”
A petição foi apresentada em nome das vítimas e dos “usuários de terras rurais”, quais sejam “comunidades tradicionais e indígenas, assentados, posseiros, pequenos proprietários, parceleiros, pequenos arrendatários, trabalhadores rurais/assalariados, garimpeiros, caiçaras, faxinalenses, geraizeiros, marisqueiros, pescadores, quilombolas, aposentados, pescadores artesanais e outros ribeirinhos, seringueiros, vazanteiros, extrativistas (castanheiros, palmiteiros, quebradeiras de coco babaçu) e outros”.
Conforme o rito processual do TPI, agora o Procurador vai analisar a petição para saber se concorda com a abertura de uma investigação. Só depois disso é que os brasileiros citados na petição poderiam ser alvo de um processo no TPI. Não há prazo para a decisão do Procurador – pode demorar muitos meses ou mesmo anos.
Segundo a petição, são diversos os membros da “rede” agora denunciada, entre os quais “políticos a nível federal do ramo Executivo e do Congresso, executivos de empresas, atores-chave da indústria e seus lobistas, executivos de empresas de nível médio, chefes de redes criminosas, e operadores-sombra e empreiteiros, para citar alguns”.
“A ‘Rede’ assemelha-se a uma espécie de ‘Estado profundo’ ou ‘complexo agroindustrial’ informado, com acordo e compreensão tácita entre os seus participantes”, diz a comunicação. Há vários membros da “rede” na “poderosa bancada parlamentar – os ruralistas” que, por sua vez, por meio da FPA (Frente Parlamentar da Agricultura), “promoveram a agenda da ‘Rede’, direta ou indiretamente, por meio do apoio à legislação pró-comercial, mercados globais de exportação expansivos.
“Embora o atual presidente do Brasil e alguns membros de seu governo sejam, sem dúvida, parte da ‘Rede’, eles são apenas as últimas engrenagens de uma máquina imensa, complexa e duradoura – cuja existência e operação são anteriores a eles e, se não forem reduzidas, continuarão por muito tempo depois que eles se forem”, diz o documento apresentado em Haia.
Segundo a petição, Bolsonaro “chegou ao poder com o apoio dos Ruralistas”. Mas, ao contrário dos seus antecessores, “(que tinham relações políticas mais matizadas com a poderosa bancada), os Ruralistas finalmente encontraram seu verdadeiro representante em Bolsonaro – um homem que disse ter ‘ouvido as necessidades’ do agronegócio”.
A petição também cita alguns de “influência” da “rede” no nível estadual, como o do sojicultor, um dos maiores do país, Blairo Maggi, que foi ministro da Agricultura no governo Temer e governador de Mato Grosso de 2003 a 2010. A petição diz que o mandato de Maggi como governador promoveu “a captura política de agências estatais”.
“Enquanto estava no governo estadual em Mato Grosso, ele tomou uma série de medidas para diminuir os esforços anti-desmatamento em favor do setor de agronegócio. Ele foi o responsável pela construção da Rodovia MT-235, que corta a Terra Indígena Utiariti, para que a produção de soja seja transportada para o Rio Madeira. Durante seu mandato, o desmatamento em Mato Grosso cresceu pelo menos 40%, e a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva afirmou que sofreu pressão política para aliviar algumas medidas que foram tomadas para frear o desmatamento na Amazônia. O agronegócio agora domina Mato Grosso.”
Bolsonaro ‘desmantelou controles ambientais’, diz a petição
É a sétima comunicação feita ao TPI sobre o Brasil desde o final de 2019. Ainda não há uma posição final do TPI sobre as outras seis demandas. Porém, diferentemente das demais, que focaram no presidente Jair Bolsonaro e na sua gestão, a nova petição se refere a um período de 10 anos, o que engloba os governos Dilma Rousseff (2010-2016), Michel Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022).
A petição menciona que o avanço ruralista se intensificou no governo Temer. “Os Ruralistas levaram o presidente Michel Temer ao poder apoiando o impeachment de sua antecessora Dilma Rousseff em 2016, e ajudaram a mantê-lo no cargo apesar de sucessivas ameaças de investigações de corrupção. Talvez em troca de apoio em seu próprio processo de impeachment, Temer promoveu a agenda ruralista ao adotar ordens executivas normalizando ‘terras rurais irregulares’ e concedendo anistias por desmatamento a produtores rurais”.
Apesar de cobrir uma década, a comunicação dá um papel proeminente a Bolsonaro. Segundo a petição, “sem dúvida, a ‘Rede’ prosperou sob a vigilância de Bolsonaro”. “Para resumir, Bolsonaro apoiou o desenvolvimento comercial a todo custo, desmantelou controles ambientais, enfraqueceu agências federais que fiscalizam a Amazônia e promoveu um aumento na mineração, desmatamento e destruição descontrolados. A demarcação de territórios indígenas continua paralisada, deixando espaços abertos a disputas e comunidades suscetíveis à violência. Muitos legisladores e ativistas ambientais brasileiros concordam que o aumento do desmatamento está sendo impulsionado por um senso predominante entre madeireiros e garimpeiros ilegais de que derrubar a floresta tropical traz um risco mínimo de punição e gera recompensas significativas. Onde os legisladores da oposição bloquearam a legislação que legalizaria o desmatamento, o governo recorreu a outros meios à sua disposição”, diz a petição ao TPI.
A comunicação afirma ainda que foi obtido “um aumento na atividade ilegal na Amazônia” durante o atual governo “por meio de um esforço tenaz e contínuo”.
“O ataque da ‘Rede’ foi possibilitado pela captura e corrupção de instituições civis e por atos e omissões conjuntos dos poderes Executivo e Legislativo […]. A arquitetura desse sistema de múltiplas camadas é variada – alguns aspectos são claros, outros são obscuros e outros são misturados. O efeito geral é irresistível: os muitos e variados membros da Rede aceitam tacitamente seu objetivo comum (nunca declarado explicitamente) e se esforçam ativamente para alcançar tal objetivo (sempre compreendido). Esse é o mecanismo através do qual a violência é sistemática e deliberadamente perpetuada. Os responsáveis raramente são levados à justiça.”
Fonte: Publica