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Entre diplomatas acusados de financiar terrorismo estão traficantes de armas e drogas

Capa_ICIJ_Consules honorarios_Matt Rota

Após chegar de jatinho na capital de Gana, o comerciante internacional de armas que se auto intitulava “Excelência” cumprimentou seus clientes no hotel Golden Tulip e propôs um negócio secreto: milhões de dólares em mísseis e granadas para usar contra tropas americanas.

“Quem mais sabe que eu estou com o Hezbollah?”, perguntou Faouzi Jaber aos compradores naquele início de noite no hotel quatro estrelas que tem uma estátua de girafa em tamanho real no saguão.

Jaber, que representava um dos principais operadores da organização terrorista apoiada pelo Irã, se dispôs a tornar a proposta ainda mais interessante. Ele ajudaria seus compradores a conseguir a cobiçada posição de diplomatas especiais — conhecidos como cônsules honorários —, que podem transitar facilmente por aeroportos e transportar bagagens protegidas contra a fiscalização de agentes da lei.

“Eu farei com que você seja cônsul no seu país”, disse Jaber. “Todos os seus amigos serão cônsules, porque quando viajamos…”

“Vocês terão passaporte diplomático”, interrompeu seu sócio.

A oferta secreta de Jaber no Outono de 2012, gravada e transcrita por investigadores federais dos Estados Unidos, prometia proteção através de um programa internacional pouco conhecido que permite que países grandes e pequenos possam nomear cidadãos comuns para servir como diplomatas voluntários mundo afora.

Fundado há séculos, o sistema de cônsules honorários foi criado para ajudar países incapazes de custear a manutenção de embaixadas estrangeiras, mas se tornou, desde então, um dos pilares das relações internacionais, sendo adotado pela maioria dos governos mundiais. 

Diferentemente de embaixadores e outros emissários profissionais, cônsules trabalham a partir de seus próprios países, utilizando-se de conexões e influência para promover os interesses dos governos estrangeiros pelos quais são nomeados. Em troca, os cônsules ganham entrada para o nobre mundo da diplomacia e recebem algumas das mesmas proteções e privilégios que diplomatas de carreira.

De acordo com o acordo internacional, seus arquivos e correspondências não podem ser apreendidos. Suas “malas” consulares — bolsas, caixas e containers de qualquer peso e tamanho — são protegidas contra buscas. O título e os benefícios, incluindo passaportes e placas de identificação de veículos especiais, podem abrir portas na indústria e na política.

Mas a nomeação de pessoas corruptas, violentas e perigosas para essas posições, incluindo acusados de colaborar com regimes terroristas, tornou um sistema criado para tirar partido da generosidade de cidadãos honestos em uma perigosa forma de diplomacia selvagem que ameaça o Estado de direito nos Estados Unidos e pelo mundo.

Uma investigação global inédita da ProPublica e do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos identificou pelo menos 500 atuais e antigos cônsules honorários que já foram acusados publicamente de cometer atos ilegais ou se envolveram em controvérsias. Alguns dentre eles chegaram a ser condenados por crimes graves ou foram pegos explorando seus status para ganho próprio; outros foram criticados por apoio a regimes autoritários.

Esse número pode ser ainda maior, já que nenhuma agência internacional monitora os cônsules honorários e dezenas de governos não divulgam seus nomes publicamente.

A ProPublica e o ICIJ descobriram que pessoas condenadas por tráfico de drogas, venda de armas, crimes sexuais e fraude já atuaram como cônsules honorários. Assim como assessores de alguns dos governos mais corruptos do mundo, como Coreia do Norte, Síria e Sudão do Sul.

Trinta cônsules honorários já foram sancionados pelo governo dos EUA e de outros países, incluindo 17 que sofreram sanção enquanto ocupavam a posição. Alguns deles eram membros do círculo íntimo de Vladimir Putin, incluídos na lista de sancionados após a invasão da Ucrânia pela Rússia no início deste ano.

Nove cônsules honorários identificados pela ProPublica e pelo ICIJ foram apontados por agentes da lei e governos por ter vínculos com grupos terroristas. A maioria deles eram ligados ao Hezbollah, um partido político, prestador de serviços sociais e grupo militante do Líbano apontado pelos EUA e outros países como uma organização terrorista.

Ataques do Hezbollah em Israel, Argentina, Líbano, Iraque e outros países já fizeram centenas de mortos e feridos, incluindo 241 membros da marinha americana que morreram durante uma missão de paz em Beirute em 1983 por ocasião de um atentado suicida no quartel que ocupavam. Este ano, um operador do Hezbollah foi condenado em Nova York por receber da organização armas e treinamento para produção de bombas, além de vigiar locais para planejar futuros atentados, incluindo a Estátua da Liberdade e a Times Square.

Ex-agentes dos EUA que investigaram a rede financeira do Hezbollah afirmam que o uso do status de cônsul honorário pelo grupo terrorista é intencional, bem organizado e precariamente monitorado. Em março, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos sancionou um importante empresário na Guiné, acusando-o de enviar dinheiro ao Hezbollah e usar seu status de cônsul honorário para entrar e sair do país sem fiscalização.

“O Hezbollah percebeu que, se eles usam esses cônsules honorários (…), eles podem basicamente transportar coisas impunemente e ninguém nunca vai pegar eles — você mostra seu passaporte diplomático, e nada é perguntado”, afirma David Asher, ex-assessor financeiro sênior de contraterrorismo no Departamento de Defesa dos Estados Unidos, nomeado em 2008 para auxiliar na coordenação de uma investigação federal da rede criminosa do Hezbollah. “É um enorme ponto fraco no alcance da nossa capacidade de aplicação da lei internacional.”

Para identificar operadores do terrorismo e outros cônsules honorários acusados de crimes, a ProPublica e o ICIJ analisaram registros judiciais, relatórios de governos e políticas públicas e arquivos de imprensa de seis continentes. Repórteres de mais de 50 organizações de imprensa e estudantes de jornalismo da Northwestern University também participaram da investigação.

Alguns dos cônsules identificados foram acusados previamente de práticas criminosas mas nomeados assim mesmo para posições diplomáticas. A maioria dos cônsules foram investigados enquanto detinham suas posições.

Na Macedônia do Norte, agentes de inteligência descobriram que dois cônsules permitiram que suas instalações consulares fossem usadas como base para uma operação russa de propaganda que visava limitar a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em Myanmar, um cônsul sancionado pelos Estados Unidos e outros governos supostamente se utilizou de suas conexões para ajudar no fornecimento de armas para a brutal junta militar do país durante sua campanha genocida contra minorias étnicas. Até o momento, não conseguimos contato com o cônsul.

Quando acusados, alguns cônsules tentaram e, em alguns casos, até conseguiram escapar de inquéritos criminais alegando falsamente ter imunidade legal generalizada, confundindo e obstruindo o trabalho de policiais e procuradores.

As ilegalidades e reivindicações de impunidade têm sido, em grande medida, recebidas com silêncio: poucos governos já defenderam publicamente a implementação de medidas de prevenção, apesar dos alertas de autoridades responsáveis pela aplicação da lei, entre outros.

“Cônsules agem de maneira completamente autônoma e não são controlados pelos Estados que eles representam. (…) O governo espanhol não tem como interferir em suas atividades”, escreveram investigadores espanhóis em um relatório confidencial de 2019 sobre três cônsules honorários sob investigação de lavagem dinheiro para um suspeito de tráfico de drogas.

Os poucos governos que decidiram tomar medidas, como Canadá, Bolívia, Costa Rica e Montenegro, relatam lacunas na fiscalização e perigosas falhas. Em uma ocasião, o governo da Libéria exonerou quase todos os seus cônsules honorários, citando relatos de atividades criminosas.

Após questionamentos de jornalistas, a Alemanha e a Áustria exoneraram um cônsul no Brasil. Outro cônsul, na Suíça, — previamente condenado por evasão fiscal — anunciou sua resignação.

Milhares de cônsules honorários permanecem em atividade ao redor do mundo, apesar de não haver nenhum dado confiável ou maneira de determinar com que frequência eles infringem as leis ou abusam de seus privilégios.

O agente especial de supervisão aposentado da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA) Jack Kelly, que ajudou a levar Jaber à justiça, se preocupa com o fato de que cônsules perigosos passem despercebidos.

“O que as pessoas fazem de fato com essa imunidade parlamentar”, afirmou Kelly, “na maior parte das vezes, nós nunca saberemos de verdade.”

Um sistema de empoderamento e proteção

Cônsules honorários existem pelo menos desde a queda do Império Romano do Ocidente, quando Grécia, China, Índia e países do Oriente Médio nomearam agentes voluntários de relações exteriores para expandir o comércio. Esse arranjo então se espalhou pelo mundo.

Nos Estados Unidos, John Adams, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson fizeram referência ao uso de cônsules no final dos anos 1700. De acordo com registros e estudos, um cônsul em Londres era encarregado da coleta de informações de inteligência.

No entanto, o governo dos EUA parou de nomear cônsules seus no exterior em 1924, optando por empregar exclusivamente diplomatas de carreira. Foi uma ação premonitória: três anos mais tarde, um painel internacional alertou que conceder vantagens especiais a particulares possibilitava que eles competissem de “forma injusta” com rivais de negócios.

O painel também afirmou que cônsules honorários não deveriam “mais existir”, acrescentando que a maior parte “está muito mais ocupada com seus assuntos pessoais que com aqueles do país que os conferiu o título.”

A preocupação com abusos cresceram, de acordo com centenas de páginas de notas e documentos dos arquivos das Nações Unidas. Em 1960, um especialista no assunto indicado pela ONU alertou que cônsules honorários não eram sujeitos a controles disciplinares da mesma forma que diplomatas de carreira.

Ainda assim, quando dezenas de governos se reuniram alguns anos mais tarde em Viena, eles instituíram na lei internacional um valioso conjunto de benefícios [para esse grupo] que incluíam poucos protocolos de fiscalização.

Sob a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, cônsules honorários passaram a ter a garantia da “liberdade de deslocação e circulação” nos países em que servem. Eles também podem se comunicar sem restrições, ter seus registros consulares e correspondências protegidos contra buscas e suas instalações consulares protegidas contra “qualquer intrusão, (…) perturbações (…) ou ofensas à sua dignidade.”

Os cônsules receberam imunidade legal para questões envolvendo seus trabalhos. Apesar de a imunidade não se estender para infrações não relacionadas às suas funções, o tratado estipulou que cônsules honorários tivessem direito a processos criminais “sem a menor demora” e ao “respeito que lhes é devido (…) em virtude da sua posição oficial.”

Alguns países, preocupados em parte com as regras de sigilo para malas consulares — que podem ser transportadas por avião, trem, carro, barco ou courier (serviço de entrega rápida) —, insistiram que não os protegeriam. Outros países optaram por simplesmente não aderir à convenção, se recusando a nomear e a receber cônsules.

Mas a diplomacia é delicada: restringir representantes de outros países, voluntários ou não, pode produzir uma resposta recíproca. A vasta maioria dos países se comprometeram com o tratado, e, apesar de alguns aplicarem privilégios e imunidades de forma diferente na prática, as regras abrangentes permaneceram inalteradas passadas quase seis décadas.


“Se isso me preocupa? Claro que sim”, afirma Louis Vella, que representa Malta na Califórnia e dirige uma associação nacional de cônsules estrangeiros e honorários nos Estados Unidos. Vella recebeu dignitários em visita e apoiou a equipe Olímpica Especial de Malta na competição de Los Angeles.

Cônsules honorários afirmam realizar um trabalho valioso por pouco ou nenhum pagamento e querer livrar o sistema de abusos

“Se você tem um balde de boas maçãs e coloca uma [maçã] ruim dentro, as boas maçãs vão ficar muito chateadas”, diz Vella. “É muito ruim por causa da má imagem que ela vai dar para todas as outras.”

No ano passado, o Departamento de Estado dos EUA pressionou estados para que estes parassem de fornecer “placas de vaidade” para veículos de cônsules honorários para evitar “novas fraudes e abusos”. No entanto, o departamento se opôs quando, anos atrás, membros do Congresso mencionaram preocupações com o terrorismo e recomendaram a revisão do uso de malas diplomáticas. 

A preocupação entre aqueles que há anos questionam o sistema de cônsules honorários é que qualquer país no mundo pode colocar um escudo diplomático em volta de indivíduos a quilômetros de distância ao simplesmente nomeá-los cônsules.

O título se tornou tão cobiçado que surgiu uma indústria de consultores online que prometem conseguir nomeações para posições de cônsules honorários de países empobrecidos por taxas de milhares de dólares.

“Viaje por canais diplomáticos como uma pessoa VIP, frequentemente com vistos”, alardea online a empresa internacional Elma Global, afirmando que os benefícios podem incluir a ausência de “checagens aduaneiras irritantes” e “privilégios ilimitados de entrada e saída.”

“É inacreditável que você possa se tornar cônsul honorário amanhã, se você quiser e tiver dinheiro para pagar”, afirma Bob Jarvis, professor de Direito internacional e constitucional na universidade Nova Southeastern, na Flórida, que defende a revisão do sistema há quase 40 anos. “As pessoas compram essas coisas ou ganham como recompensa pelo apoio a um candidato político, e essas pessoas não têm ideia do que deveriam estar fazendo. E ninguém se preocupa em fiscalizar.”

A Elma Global afirmou em nota que não garante nomeações à posição de cônsul honorário, acrescentando que “nós sabemos que há muitos golpes na internet com relação a nomeações consulares e diplomáticas, mas nós estamos muito longe disso.”

Ao redor do mundo, organizações jornalísticas e governos ocasionalmente reportam incidentes isolados de atos ilícitos entre cônsules. A ProPublica e o ICIJ compilaram esses casos para constituir o levantamento mais completo até o momento, que incluiu cônsules identificados em ações penais ou civis que não foram reportadas publicamente.

A investigação, que incluiu casos de cônsules investigados individualmente ou através de empresas ligadas a eles, também se baseou em descobertas feitas por organizações de direitos humanos, pelas Nações Unidas, observatórios anticorrupção e organizações de imprensa. A ProPublica e o ICIJ identificaram 57 cônsules que foram condenados criminalmente enquanto ocupavam suas posições.

O levantamento não só mostra com que frequência diplomatas voluntários se envolvem em problemas, mas também quão variadas são as circunstâncias em que eles abusam de seus status.

Houve casos de cônsules que invocaram suas credenciais diplomáticas para evitar buscas e prisões ou até impostos e multas por estacionamento irregular. Cônsules também já foram acusados de esconder dinheiro e contrabando em suas instalações e malas consulares.

Um antigo cônsul no Egito foi condenado por tentar contrabandear mais de 21 mil antiguidades para fora do país em um contêiner diplomático, incluindo máscaras de múmia e um sarcófago de madeira, antigo caixão utilizado por civilizações da antiguidade para honrar seus mortos.

O agente especial de supervisão aposentado da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA) Jack Kelly afirma que o uso do status de cônsul honorário por agentes ligados ao Hezbollah é intencional e perigoso

O uso do sistema por financiadores e apoiadores do terrorismo é o mais preocupante, segundo especialistas, por representar uma ameaça iminente aos Estados Unidos e a outros países ao redor do mundo.

“Essa coisa de cônsul honorário — essa é a questão”, afirma o ex-supervisor do DEA Jack Kelly, que passou uma década investigando o Hezbollah, até sua aposentadoria em 2016. “Isso mostra [que há] uma abordagem bem organizada da condução de atividades na África e provavelmente no mundo todo.”

“Você é o Cônsul Oficial”

Kelly sabia muito pouco sobre cônsules honorários no final de 2008, quando números em um celular que estava sendo rastreado pelo governo dos EUA o levaram até um elusivo empresário libanês que rapidamente se tornaria um dos principais alvos do DEA.

Naquela época, Kelly estava ajudando a chefiar uma operação federal conhecida como Projeto Cassandra, criada para desmantelar o extenso império criminoso do Hezbollah. Em um cubículo de um estabelecimento secreto do governo em Chantilly, na Virgínia, Kelly estudava os contatos de um telefone usado por um emissário do Hezbollah suspeito de ajudar no avanço de programas secretos nuclear e de mísseis balísticos do Irã. Kelly acabou se concentrando em um número de telefone no Líbano.

Era o número de Mohammad Ibrahim Bazzi.

“Ei, eu encontrei esse cara que parece ser bem importante”, Kelly lembra de ter contado a Asher, assessor do Departamento de Defesa que também chefiava o Projeto Cassandra.

Kelly e Asher suspeitavam que Bazzi fosse um importante financiador do Hezbollah e alguém muito próximo do regime iraniano, que estaria lavando dinheiro ilícito através de suas empresas no Líbano e na África.

Na Gâmbia, Bazzi era importador de petróleo e um importante parceiro do presidente Yahya Jammeh, um antigo coronel do exército acusado por um painel governamental do país de sequestro, estupro, assassinato e tortura. Jammeh nega o cometimento dos crimes.

Kelly e seus colegas estavam focados nas atividades criminosas de Bazzi, mas descobriram que ele era cônsul honorário, nomeado pelo governo da Gâmbia em 2005.

Acusado de pagar propina a Jammeh e contribuir para o que as autoridades chamaram de “quase ruína” do país, Bazzi se apresentou como cônsul perante ao painel do governo da Gâmbia em 2017. Funcionários gambianos afirmaram que seu status de cônsul honorário havia sido revogado vários meses antes.

“Ele não tinha o menor respeito pelos gambianos e pelas instituições gambianas”, concluíram as autoridades no relatório final. “Em sua busca por riqueza, ele pensava apenas no lucro, obtido majoritariamente de maneira ilegal.”

Naquele mesmo ano, Bazzi tentou colocar seu filho como cônsul para que pudesse “exercer sua influência” sobre ele, de acordo com o Departamento do Tesouro dos EUA.

Mesmo que Bazzi nunca tenha sido indiciado criminalmente nos Estados Unidos, ele foi apontado como financiador do Hezbollah e sancionado em 2018. Seu filho também foi sancionado um ano depois por trabalhar em favor de seu pai.

O advogado de Bazzi não quis responder às questões enviadas pela reportagem, que também não conseguiu contato com o filho, Wael Bazzi. Em 2019, os dois homens processaram separadamente o governo dos Estados Unidos, em uma tentativa de reverter as sanções impostas. Em registros judiciais, Bazzi afirma que o governo exagerou as transações e eventos que teriam ocorrido anos antes e não conseguiu provar que ele financiou o Hezbollah.

Bazzi também afirma que um de seus deveres enquanto cônsul honorário era “fortalecer laços de investimento estrangeiro entre o Líbano e a Gâmbia”, e que ele havia rompido sua relação com Jammeh em 2016, devido a uma série de ameaças. Ele também alega que havia concordado previamente em trabalhar como informante para o governo dos EUA e que havia sido informado de que não seria sancionado.

Em 2020, um juiz federal arquivou o processo aberto pelo filho de Bazzi. No ano passado, Bazzi encerrou seu próprio processo contra o governo dos EUA. Bazzi e seu filho permanecem sob sanção, e o Departamento de Estado está oferecendo uma recompensa de até 10 milhões de dólares por informações sobre Bazzi e outros que possam levar à ruptura da rede financeira do Hezbollah. 

Com o avanço do Projeto Cassandra, o status de cônsul honorário apareceria novamente — dessa vez, durante uma operação que capturou Jaber, o vendedor de armas ligado ao Hezbollah que se encontrou com compradores em um hotel em Gana em 2012.

Os compradores eram informantes do DEA que se passavam por representantes de um grupo internacionalmente conhecido de guerrilha e cartel de drogas da Colômbia, que estariam tentando derrubar o governo e atacar as forças americanas destacadas no país.

“Nós estamos lutando contra os americanos (…) eles estão invadindo meu país”, disse a Jaber um informante, de acordo com a transcrição de uma conversa obtida pela ProPublica e pelo ICIJ. “O que nós precisamos realmente (…) é de uma pessoa boa que possa nos fornecer armas.”

“O Hezbollah vende”, disse Jaber. “Que tipo de armas?”

“Você sabe, M14, M16?”, disse o informante, se referindo a rifles. “Granadas, pistolas, rifles.”

“Explosivos”, disse Jaber. “Dinamite e tal… Bum, bum, bum, bum.”

Como forma de proteção, Jaber ofereceu acesso ao status consular dizendo que “Todas as pessoas importantes, todas as pessoas ricas, [são] todos cônsules.”

“O melhor é a África”, disse Jaber, acrescentando que “muitos homens brancos europeus trabalham como [cônsules]” a partir de seus próprios países, onde não há embaixadas próximas.

Em um segundo encontro com os compradores três meses depois, Jaber disse: “Nós vamos para qualquer país da África. Podemos te tornar cônsul da Guiné Equatorial [ou] da Guiné-Bissau (…) Você paga 200 mil dólares, você é o cônsul oficial do país. E você tem um outro passaporte.”

Em 2014, Kelly viajou para Praga, onde uma nova reunião havia sido planejada, para se certificar de que Jaber e seu sócio Khaled el-Merebi, além do alvo principal do DEA, o vendedor de armas libanês Ali Fayad, fossem levados sob custódia. Fayad e Merebi foram posteriormente soltos pelo governo tcheco, supostamente em troca de cinco cidadão tchecos sequestrados no Líbano.

Jaber, que havia prometido o fornecimento de mísseis superfície-ar (SAM, por sua sigla em inglês), fuzis de assalto e granadas, o transporte e armazenamento de cocaína na África Ocidental, e lavagem dos lucros através de contas em Nova York, foi extraditado para os Estados Unidos. Em 2017, ele se declarou culpado de conspirar para ajudar um grupo terrorista colombiano e foi sentenciado à prisão.

Na audiência, ele pleiteou sua liberdade, alegando que estava sob influência de drogas na ocasião e que havia cometido aquele erro “uma vez só na vida.”

“Eu admito que eu cometi um crime, mas não o fiz de caso pensado”, afirmou. “Não é como se eu tivesse desejado cometer aquele crime (…) Eu estou pedindo perdão para vocês e para a nação americana e para o governo americano. Eu amo o povo americano.”

Em uma entrevista de dentro da prisão federal na Virgínia Ocidental, Jaber admitiu ter oferecido posições de cônsul honorário, mas afirmou que o governo americano havia alterado as transcrições de reuniões para “capturá-lo”. Ele acrescentou que se opõe ao Hezbollah.

“Cônsules honorários, eu sei como eles trabalham, eu sei como eles são criados”, afirmou. “Cônsules honorários transportam drogas, dinheiro. Eu conheço muitos cônsules honorários que se envolvem com todo tipo de besteira.”

Busca por Justiça

Enquanto os agentes do Projeto Cassandra caçavam os traficantes de armas e drogas do Hezbollah, o procurador de New Jersey Gary Osen estava submerso em relatos sobre a campanha letal do Hezbollah contra membros do serviço americano no Iraque.

Osen e seu time jurídico coletaram registros de morte, estudaram relatórios forenses de campos de batalha e entrevistaram as famílias dos soldados mortos. A pesquisa encontrou referências a cônsules honorários acusados de ter relações com a rede financeira do Hezbollah.

“Todo mundo que tem influência naquele universo é cônsul honorário”, afirma Osen. “Não é algo necessário para suas operações. Mas é um facilitador adicional.”

O procurador Gary Osen representa mais de mil americanos, incluindo membros falecidos do serviço americano, que estão processando bancos libaneses por supostamente violar leis antiterrorismo. De acordo com a denúncia, o ex-cônsul honorário Mohammad Ibrahim Bazzi, sancionado por supostos laços com o Hezbollah, tinha contas em dois desses bancos.

Em 2019, Osen abriu uma ação em nome de mais de mil cidadãos americanos, incluindo membros do exército mortos ou feridos no Iraque por bombas de beira de estrada e outras armas, que a denúncia relaciona ao Irã e ao Hezbollah.

O processo, em andamento no tribunal federal de Nova York, acusa 13 bancos libaneses de violar leis antiterrorismo por terem conscientemente administrado e movimentado dinheiro para o Hezbollah durante os ataques letais, incluindo aquele que matou o capitão do exército dos EUA Shawn English a bordo de um veículo do exército próximo a Bagdá em 2006. Pai de três filhos, English estava finalizando seu destacamento de dez meses no país.

“Aconteceu alguma coisa com o papai?”, perguntou Nathan English, de sete anos, após cumprimentar dois militares que foram à casa da família, na Flórida, pouco antes do Natal, para dar a notícia.

A ação judicial alega que os bancos forneceram “amplo e contínuo apoio material, incluindo serviços financeiros, ao Hezbollah (…) e a seus operadores e facilitadores”, além de um “acesso vital ao sistema financeiro dos Estados Unidos.”

Os bancos negam a acusação e afirmam em documentos judiciais que eles “abominam categoricamente o terrorismo e quaisquer atos de violência injustificados. Mas eles não são legalmente ou factualmente responsáveis pelos ferimentos em campo de batalha dos demandantes.” Os bancos também afirmam que a acusação não identificou transações para ninguém vinculado ao Hezbollah.

O banco Fransabank, de Beirute, um dos credores que aparecem como réu na ação judicial, foi adquirido por Adnan Kassar e seu irmão Adel, que atuou como presidente adjunto do conselho de administração e CEO do banco e é cônsul honorário da Hungria no Líbano pelo menos desde 2002, de acordo com documentos.

De acordo com a ação de Osen, Bazzi, o ex-cônsul honorário da Gâmbia no Líbano sancionado pelos EUA, mantinha uma conta no Fransabank e em outro banco libanês apontado no caso.

“É dinheiro sujo. E a que preço? Quantas vidas?”, afirma Robert Bartlett, sargento aposentado do Estado-Maior dos EUA, um dos demandantes no processo.

De acordo com a ação, em 2005, assim como English, Bartlett e sua comitiva no Iraque foram atingidos por um tipo particularmente letal de bomba de beira de estrada conhecido como projétil penetrante formado por explosão (EFP, por sua sigla em inglês).

A bomba atravessou a porta do veículo militar em que Bartlett estava, abrindo seu rosto da têmpora ao maxilar, envolvendo o veículo em fumaça e derramando diesel no chão. O sargento que estava sentado próximo a ele foi decapitado, e o artilheiro que estava entre os dois acabaria perdendo ambas as pernas. Bartlett, que na época tinha 31 anos, teve que passar por 40 procedimentos médicos desde então, incluindo 12 grandes cirurgias, para conseguir recuperar um pouco das funções em seu rosto, corpo e mãos.

“O diabo queria me ver morto”, ele afirma.

Os irmãos Kassar e o Fransabank não responderam aos pedidos de comentário.

Em novembro de 2006, antes de retornar ao Iraque para completar seu destacamento de 10 meses no país, Shawn English comemorou o aniversário de três anos de seu filho Austin. English foi morto semanas depois.

Um centro de poder para cônsules

No Líbano, onde o Hezbollah atua como um importante partido político, prestador de serviços públicos e uma temida força miliciana, o título de cônsul honorário é comumente considerado um símbolo de status.

“É algo como os Lordes no sistema britânico”, explica Mohanad Hage Ali, membro sênior do Carnegie Middle East Center em Beirute. “Se você tiver conexão com algum Estado soberano, conhecer um presidente ou alguém do seu entorno, você consegue esse título de cônsul honorário. É o jeito libanês de dizer ‘Eu sou importante’.”

Em 2015, um redator de um jornal afiliado ao Hezbollah observou em uma coluna intitulada “A Terra dos Cônsules” que, para se tornar cônsul no Líbano, é preciso primeiramente “encontrar uma ilha independente do outro lado do oceano da qual ninguém tenha ouvido falar. Em segundo lugar, descobrir a maneira mais apropriada de fazer contato com seu rei: um diamante raro, um relógio Rolex ou dezenas de milhares de dólares ao ano.”

Um dos cônsules honorários no Líbado é Ali Myree, nomeado pelo Sudão do Sul em 2019.

Nascido no Líbano, Myree vivia no Paraguai em 2000, quando foi acusado de piratear CDs, vídeo games e softwares. As autoridades suspeitavam que ele estava destinando parte dos lucros para o Hezbollah, de acordo com reportagens de veículos paraguaios.

Quando a polícia invadiu seu apartamento, eles alegaram ter encontrado filmagens de ataques terroristas e entrevistas com homens-bomba, incluindo um CD de um líder extremista que incitava seus ouvintes a atacar os Estados Unidos e Israel.

Myree saiu do Paraguai e, após algum tempo, reapareceu no Sudão do Sul, um país históricamente conturbado, onde se tornou um importante líder empresarial. Lá, Myree fechou uma parceria de mineração com a filha do presidente e fez uma série de pagamentos para um general sancionado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, entre outros, por desestabilizar o país, como mostra um relatório de 2021 de The Sentry, uma organização sediada em Washington que investiga o financiamento de conflitos armados.

“Desde o primeiro dia, nós assumimos essa responsabilidade e confiança”, afirmou Myree durante a comemoração da abertura do consulado do Sudão do Sul em Beirute, ocasião em que posou com diplomatas e um bolo branco com as bandeiras dos dois países.

Myree, que afirma no site consular que seu lema de vida é “o céu é o limite”, negou em nota ter tido relação com quaisquer organizações terroristas. Myree alega que a pirataria era uma prática comum no Paraguai na época de sua prisão e que lhe faltavam “orientação, educação, exposição jurídica e experiência (…) Eu também não me envergonho das minhas más experiências, e eu não as ignoro ou escondo.”

Ele afirma que foi nomeado cônsul do Sudão do Sul pelo presidente do país e que suas relações com todos os seus clientes são “meramente profissionais.” “Eu tenho orgulho do filho, marido, pai, empresário e cônsul honorário que sou hoje em dia”, completa.

O governo libanês não respondeu aos pedidos de comentários, assim como o porta-voz do Hezbollah e a associação local de cônsules honorários do Líbano, que publicou uma lista online de cônsules que inclui Myree e Kassar, dono do Fransabank.

A lista também inclui um célebre empresário da África Ocidental: Ali Saade.

“Para servir à Guiné”

No agitado porto africano de Conakry, homens descalços arrastam sacos de arroz para fora das carrocerias de caminhões e os empilham do chão ao teto em um vasto depósito de propriedade do Sonit Group, empresa que tornou Saade um dos homens mais ricos da Guiné.

Saade tem 80 anos e nasceu em um país empobrecido da costa Atlântica da África Ocidental, mas sua mãe e esposa são de Jwaya, um dos vários vilarejos onde se cultivam oliveiras e figueiras no sul de Beirute, uma região que há muito se tornou um centro de poder do Hezbollah.

Na Guiné, Saade criou a Sonit em 1992, após trabalhar para a empresa têxtil de seu pai, e se instalou em um bairro imaculado a muitos quilômetros de distância do porto de Conakry, onde mulheres defumam sardinhas em tambores de óleo abandonados e crianças brincam com caranguejos pescados das águas sujas.

Em 2006, Saade foi nomeado pelo governo da Guiné como cônsul honorário no Líbano, onde sua esposa e filha vivem.

No início deste ano, o governo dos EUA acusou Saade e outro proeminente empresário da Guiné, Ibrahim Taher, de serem importantes financiadores do Hezbollah. O governo também apontou que Taher usava de seu status de cônsul honorário do Líbano na Costa do Marfim para entrar e sair da Guiné com “o mínimo de fiscalização”.

Saade é acusado de dar início às transferências de dinheiro da Guiné para o Hezbollah e fornecer “acesso irrestrito” ao alto escalão do governo guineense para Kassem Tajideen, que foi sancionado em 2009 pelos Estados Unidos por financiar o Hezbollah. Tajiden foi preso posteriormente no estado de Maryland por violar a sanção ao ajudar na movimentação de 1 bilhão de dólares pelo sistema financeiro dos Estados Unidos. Em 2020, ele foi solto e enviado de volta para o Líbano.

O governo dos EUA também alega que Saade, Taher e outros viajaram em 2020 para o Líbano em um voo especial levando “grandes somas de dinheiro”, que o grupo afirmou ser destinado ao combate à Covid-19. Autoridades afirmam que a pandemia foi usada como pretexto para transferir dinheiro da Guiné para o Hezbollah.

Os dois homens foram sancionados em março deste ano. Após as sanções, procuradores da Guiné abriram uma investigação criminal.

Em entrevista, Saade afirmou que agiu em conformidade com sua posição de cônsul honorário ao conectar Tajideen com ex-presidente da Guiné.

“Escuta, Ali, como cônsul honorário você deveria fazer algo para encorajar o investimento”, Saade recorda que o antigo presidente teria dito.

Saade diz que não sabia que os Estados Unidos haviam sancionado Tajideen. Em nota, ele acrescentou que levava 800 dólares no voo que dividiu com Taher e outras oito pessoas em 2020. “Eu nunca dei ou transferi um dólar [sequer] ao Hezbollah”, afirma.

Taher, 59 anos, não respondeu aos pedidos de comentário. Em um comunicado anterior, ele negou as acusações, dizendo que não tinha nenhuma relação com o Hezbollah e que “nunca usou nenhum meio ilegal para transferir dinheiro para fora da Guiné”. Taher também afirmou que nunca foi cônsul honorário.

Em julho, o juiz de um tribunal de apelação da Guiné encerrou a investigação criminal contra Taher e Saade, afirmando que não havia evidências de financiamento ao terrorismo. O juiz também citou uma investigação do governo da Guiné que mostrou que Taher não era um cônsul honorário.

As autoridades guineenses apelaram da decisão, de acordo com um funcionário.

Saade afirma que o governo da Guiné suspendeu seu status de cônsul honorário após a sanção imposta pelos Estados Unidos, mas que ele não está preocupado com os desdobramentos. Ele conta que se encontrou com o novo presidente da Guiné pouco tempo após as sanções serem anunciadas.

“Ele me garantiu que não haverá atos de injustiça”, afirma Saade. “Eu atuei como cônsul para servir à Guiné. É para ajudar o país.”

Fonte: Publica

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