Na última quarta-feira (16), pouco antes de o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva fazer o seu primeiro pronunciamento oficial na 27ª Conferência do Clima da ONU, a COP27, que acontece em Sharm el-Sheikh, no Egito, uma caixa de som portátil do lado de fora do salão onde ele era aguardado tocava “tá na hora do Jair, tá na hora do Jair, já ir embora”, uma das músicas que marcaram sua campanha à presidência, encerrada menos de vinte dias antes.
Pessoas que se aglomeravam ali, esperando permissão para entrar, entoaram o “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula” aos gritos e palmas. Aquela cena representou o tom do que foi a passagem do petista pela conferência, apelidada de “Lulapalooza” dado o furor com que foi recebido tanto por brasileiros, quanto pela comunidade internacional.
“O Brasil está de volta”, declarou Lula minutos depois em seu discurso. Mais adiante, ele afirmou que sua volta à Presidência da República também serviria para cobrar aquilo que foi prometido por países desenvolvidos em termos de repasse de recursos a países em desenvolvimento para o enfrentamento à crise climática. Lula se referia a uma meta de financiamento acordada em 2009 pela qual países ricos deveriam destinar 100 bilhões de dólares anuais, a partir de 2020, a nações pobres. “Já se passaram dois anos desde então”, pontuou, lembrando que até hoje o objetivo não foi atingido. “É preciso discutir com os países ricos acordos que não saem do papel, não podemos prometer e não cumprir”, afirmou.
A menção de Lula a pontos chave da agenda de discussão da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), como financiamento climático, fez com que o seu discurso fosse avaliado de forma muito positiva por especialistas e sociedade civil. O presidente eleito ainda manifestou apoio à criação de um fundo para ajudar os países a lidar com perdas e danos causados por eventos extremos relacionados à mudança do clima, a principal demanda das nações em desenvolvimento e grande tema de negociação desta COP, que durante suas duas semanas representou o grande nó para a formação de um consenso entre os países parte da UNFCCC. “Não podemos mais adiar esse debate”, declarou.
“É a primeira vez que se vê um representante [brasileiro] de alto porte falar sobre perdas e danos”, explica Maureen Santos, coordenadora da ONG FASE e professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Ela avalia que o discurso de Lula na COP27 representa “não só o retorno do Brasil ao protagonismo nas negociações internacionais do clima, mas também do papel brasileiro no cenário internacional”.
“Ele trouxe questões importantes que o Brasil costumava defender em sua política externa, desde a questão do multilateralismo, defesa das responsabilidade histórica, dos países desenvolvidos em pagar os 100 bilhões comprometidos desde 2009”, ressalta Santos. “Ao mesmo tempo, traz a conexão da questão ecológica e climática com o combate à pobreza e à fome.”
Mesmo antes de sua chegada à COP27, na última quarta-feira, havia grande expectativa na comunidade internacional em relação à sua vinda, que poderia representar o retorno da diplomacia brasileira ao seu tradicional multilateralismo após quatro anos sob a presidência de Jair Bolsonaro. O atual presidente em diversos momentos afastou o país de aliados importantes, como os vizinhos latinoamericanos, e não apenas não participou de nenhuma conferência durante seu mandato, como declinou de receber a COP25, programada para acontecer no Brasil em 2019.
Este ano o chefe da delegação brasileira na COP foi novamente o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que usou seu discurso oficial para atacar Lula ao dizer que “filantropos, líderes e empresários e seu sempre exagerado número de assessores vieram em jatos particulares ao luxuoso balneário do Mar Vermelho para cobrar metas de redução de emissões dos outros”, em referência ao fato de o petista ter ido ao Egito em uma aeronave de José Seripieri Junior, fundador da Qualicorp e dono da Qsaúde. Ele esqueceu de comentar que o Brasil trouxe para o Egito a segunda maior delegação da COP27, perdendo apenas para os Emirados Árabes. Com 570 pessoas, a delegação brasileira chamava a atenção pela presença de diversas pessoas de fora das esferas governamentais, como esposas e primeiras-damas, e pela baixa presença de pesquisadores e membros da sociedade civil.
Leite deixou Sharm el-Sheikh na madrugada deste sábado (19), antes do fim das negociações. Na sexta-feira de manhã, um momento crítico para o rumo dos trabalhos, ele foi fotografado esperando para fazer um mergulho no Mar Vermelho, famoso por seus corais.
As expectativas da comunidade internacional se concretizaram: Lula teve uma intensa agenda de reuniões bilaterais durante os três dias em que esteve em Sharm el-Sheikh. Encontrou-se separadamente com os enviados para o Clima dos Estados Unidos, John Kerry, e Xie Zhenhua, da China; com o líder da União Europeia para questões climáticas, Frans Timmermans; com o secretário-geral da ONU, António Guterres; com Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha; e com o ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega, Espen Barth Eide. Com o último, acertou, na quinta-feira (17), a retomada do Fundo Amazônia, interrompido pelo governo Bolsonaro em 2019. Eide afirmou ao Valor Econômico que há no fundo 540 milhões de dólares esperando para serem liberados.
Por acontecer em um país africano fortemente impactado pelas mudanças do clima, a COP27 prometia muito, mas durante as duas semanas de negociação não entregou quase nada: atingiu-se consenso em poucos itens da agenda, tendo as decisões sobre os temas mais espinhosos, sobretudo financiamento para perdas e danos, ficado para o final, que precisou ser adiado de sexta-feira para o final de semana. Além disso, os grandes protestosde rua que normalmente acontecem durante as COPs, puxados por grupos de ativistas climáticos como o Fridays For Future, de Greta Thumberg, dessa vez ficaram restritos ao espaço da conferência por ordem do governo autoritário de Abdul Fatah Al-Sisi, que antes da COP27 prendeu uma série de pessoas acusadas de serem manifestantes. Por isso, a presença de Lula na conferência acabou sendo um dos grandes destaques, com a perspectiva da nova postura que o Brasil reassumiria.
A atenção recebida antes da chegada de Lula pela deputada federal eleita Marina Silva (Rede-SP), cotada para assumir o Ministério do Meio Ambiente e anunciada como integrante da equipe de transição durante a COP27, foi um prenúncio do que esperava o petista. Logo em seu primeiro dia na conferência, em 10 de novembro, ela se reuniu com o vice-presidente para a América Laitina e o Caribe do Banco Mundial, Carlos Felipe Jaramillo, e antecipou o encontro com John Kerry que Lula teria no dia 15. Já Leite só conseguiu uma agenda com o norte-americano no dia 16, depois de Marina e Lula. Posteriormente, a deputada ainda esteve com Jennyfer Morgan, enviada climática da Alemanha, entre outros nomes.
Na plateia, parlamentares, sociedade civil, diplomatas
Usando sua gravata da sorte com as cores da bandeira do Brasil, Lula reforçou ainda em seu discurso o compromisso de acabar com o desmatamento e degradação florestal em todos os biomas até 2030 – as fontes que mais impulsionam as emissões de gases de efeitos estufa no país – e combater atividades ilegais como o “garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária indevida” – assuntos deixados de lado no estande oficial do governo federal na conferência.
Ele também prometeu “que o combate à mudança climática terá o mais alto perfil na estrutura” de seu governo. Isso indica que ele pode acatar a sugestão de Marina Silva de criação de uma Autoridade Nacional para o Risco Climático, cuja função seria coordenar de maneira interdisciplinar a ação climática do governo brasileiro e corrigi-la quando sair do rumo de cumprimento das metas do país sob o Acordo de Paris, funcionando como uma autoridade monetária. Na primeira semana da conferência, Marina – que estava em umas das primeiras fileiras da plateia – explicou à Pública sua proposta.
Mesmo que sem clareza de como isso se dará na prática, as falas do novo presidente animaram a audiência, formada por parlamentares – como os senadores Renan Calheiros (MDB-AL), Katia Abreu (PP-TO), Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Fabiano Contarato (PT-ES) e os deputados federais Rodrigo Agostinho (PSB-SP) e Joenia Wapichana (Rede-RR) –, lideranças indígenas, dos movimentos negro e de juventudes, e representantes de organizações da sociedade civil. Registrando cada palavra que ele dizia havia jornalistas de todos os lugares do mundo, posicionados na parte de trás do salão.
Embora Bolsonaro ainda seja oficialmente o presidente, estavam presentes também membros da delegação do Itamaraty, os negociadores oficiais do Brasil nas COPs, que escutavam atentos o novo presidente dizer que ajudará na construção de “uma ordem mundial pacífica, assentada no diálogo, no multilateralismo e na multipolaridade” e a propor o estabelecimento de “uma nova governança global”.
Ao fim do pronunciamento, os diplomatas conversaram em tom descontraído com a ex-ministra do membro de um seleto grupo de conselheiros da presidência da COP27 e também integrante da equipe de transição do governo na área de meio ambiente. “Trabalhem bastante que no ano que vem tem mais”, disse Teixeira aos seus interlocutores, que teriam pela frente dias difíceis de negociações emperradas.
À Pública, ela afirmou que o discurso de Lula passou a mensagem de que o país “quer um novo lugar e papel no mundo”. “O Brasil vem para cobrar e fazer entregas, com responsabilidade. E quer o mundo unido, não um mundo dividido e fragmentado”, salientou.
Já Rodrigo Agostinho conversou com a reportagem sobre o frenesi em torno da figura de Lula, que havia causado vários focos de aglomeração na COP27 naquele dia, atrapalhando por vezes a circulação das pessoas. “É uma conferência com poucas lideranças, esse discurso é revigorante também para o restante da governança [global] na COP”, analisou.
Angela Mendes, a filha do líder ambiental Chico Mendes, se descreveu como “cheia de esperança e feliz” após o pronunciamento de Lula. “Ele traz muito a amizade que tinha com meu pai e esse envolvimento com nossos povos. Isso para mim fala profundamente”, contou, emocionada.
“Obrigação moral e política” de fazer a reparação aos povos indígenas
Já na quinta-feira (16), o presidente eleito participou de uma reunião com representantes indígenas de todo o mundo, organizada pelo Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudança Climática, que mantém nas COPs um pavilhão próprio.
Depois de chegar à sala acompanhado de Janja, Joenia Wapichana e das deputadas federais eleitas Sonia Guajajara (Psol-SP) e Célia Xakriabá (Psol-MG), que entoavam canções indígenas e balançavam seus maracás, Lula ouviu de líderes da América Latina e Caribe, América do Norte, Ásia, Ártico, Pacífico e Europa Ociental pedidos para que atue como aliado principal na pressão pela garantia de direitos indígenas a nível internacional. “Queremos que você protagonize a luta para nos levar para dentro das negociações”, afirmou Hindou Ibrahim, líder indígena do Chade.
Guajajara, Xakriabá, Wapichana e Toya Manchineri, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), também reforçaram as demandas da Articulação Brasileira dos Povos Indígenas (Apib) ao novo governo, lançadas na última segunda-feira (14) em Sharm el-Sheikh. Não só pediram a retomada da política de demarcação de seus territórios – que a ciência já comprovou funcionarem como barreira contra o desmatamento –, como a homologação, já nos primeiros dias de governo, de cinco deles que, sem pendências judiciais, aguardam apenas a assinatura do presidente da República.
Solicitaram ainda protagonismo na construção do Ministério dos Povos Originários, cuja ideia de criação foi anunciada inicialmente por Lula durante o Acampamento Terra Livre, em Brasília, no mês de abril, e confirmada ainda durante a campanha. “Estamos muito felizes de ver que você está confiante no que está dizendo”, pontuou Guajajara. “Mas queremos discutir, conversar, entender qual será o status, o poder, a autonomia orçamentária que vai ter”, pontuou Guajajara.
Os clamores por participação não pararam por aí: as lideranças brasileiras expuseram que querem estar em outros espaços de decisão não necessariamente restritos à política indigenista. “Como o senhor mesmo falou, por que não o indígena cuidar do próprio destino? Solicitamos uma participação maior no seu governo daqui para frente”, completou Toya Manchineri.
“Participo da vida política há mais de 50 anos, e nunca participei de uma reunião que me transferisse tanta responsabilidade como essa”, respondeu Lula. Ele sinalizou seu desejo de que os povos indígenas “façam parte da governança” do país e de disponibilizar seu mandato para “fazer parte da luta” indígena. “Tenho obrigação moral e política de fazer a reparação do que causaram aos povos indígenas, sobretudo do meu país.”
Agradecimento à sociedade civil pela “resiliência”
Horas antes, naquela mesma sala – que normalmente sedia negociações, mas naquele dia foi reservada às agendas de Lula –, ele também se encontrou com representantes da sociedade civil, que desde 2019 foram impedidos pelo governo Bolsonaro de participar das COPs como parte da delegação do Brasil e desde então, pelo terceiro ano seguido, organizam um pavilhão próprio para fazer o contraponto à atual administração. A intenção é que, a partir do ano que vem, a situação se normalize e o Brazil Climate Action Hub deixe de existir.
Antes da reunião, o clima era descontraído: as pessoas – jovens, em sua grande maioria – andavam de lá para cá, tiravam fotos, conversavam entre si e riam. Havia uma sensação de distensionamento e expectativa pelo encontro com o presidente eleito. Sentados à enorme mesa quadrada, sobre a qual havia vários pequenos microfones, estavam representantes de diversas organizações e movimentos sociais, como Observatório do Clima, Coalizão Negra por Direitos e Engajamundo. Os dois últimos entregaram ao petista cartas com pedidos para o novo governo.
“Quero agradecer de coração à resiliência, resistência e competência que vocês tiveram nesses anos”, disse Lula aos representantes das sociedade civil, referindo-se ao período de mandato de Bolsonaro. “Mas vamos ter um trabalho imenso, não pensem que vocês vão ficar numa boa, só cobrando, vocês vão ajudar a fazer”, afirmou. “A gente derrotou o Bolsonaro, mas o bolsonarismo se mantém”.
Durante a conversa, Lula criticou o teto de gastos e disse que não se pode apenas pensar “em responsabilidade fiscal, precisamos pensar em responsabilidade social”. “Se eu falar isso, vai cair a bolsa e aumentar o dólar, mas paciência, porque a bolsa não cai por conta das pessoas sérias, cai por causa dos especuladores”, destacou. Dito e feito: noticiadas pela imprensa, o mercado reagiu mal às falas no Brasil.
Bandeira branca aos governadores bolsonaristas da Amazônia
Lula se encontrou também com o Consórcio dos governadores da Amazônia Legal, de quem partiu o convite para que ele fosse ao Egito. Essa foi sua primeira aparição pública na COP27, ainda na manhã de quarta-feira (16).
Antes do petista chegar, uma grande aglomeração se formou em frente ao pavilhão do Consórcio, vizinho ao enorme espaço do governo federal, de cerca de 300m2, que parecia alheio ao que acontecia ao lado. Seguranças da ONU e policiais federais brasileiros retiraram todo público do interior do local, deixando apenas os governadores Helder Barbalho (PA), Gladson Cameli (AC), Wanderlei Barbosa (TO) e Mauro Mendes (MT) e seus staffs, além de apoiadores de Lula, integrantes de sua equipe e representantes de organizações ambientalistas. A imprensa também ficou de fora, atrás de uma fita colocada ao redor do pavilhão para impedir a entrada de quem não estava autorizado a estar ali.
Cameli (PP) e Mendes (União Brasil), reeleitos para o segundo mandato em seus estados, apoiaram Jair Bolsonaro durante os últimos quatro anos e fizeram campanha para sua reeleição. Este também é o caso do governador de Rondônia Marcos Rocha (União Brasil), que esteve no pavilhão do consórcio na segunda-feira, mas não ficou para encontrar Lula.
Depois de uma breve reunião com os governadores, Lula falou publicamente pela primeira vez na COP e fez questão de acenar trégua a Cameli e Mendes. “Políticos são adversários, mas nós não somos inimigos. O presidente tem que conversar com todos em igualdade de condição, sem importar partido”, ressaltou.
O consórcio de governadores entregou ainda uma carta a Lula, pedindo, entre outras coisas, que a Amazônia sedie a COP30 em 2025, ano em que a América deve sediar a conferência, de acordo com o sistema de revezamento na UNFCCC. O presidente eleito se comprometeu a oferecer Manaus ou Belém como sede do evento.
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