No apagar das luzes da gestão de Bolsonaro, o governo federal lançou o edital do projeto Poço Transparente, que incentiva o fracking no Brasil. A prática consiste na exploração de reservatórios não convencionais de petróleo e gás por meio de técnicas como o fraturamento hidráulico e já foi banida em países como Alemanha, França e Reino Unido por estar associada a riscos à saúde humana e impactos socioambientais.
Já há empresas com interesse em aplicar o fraturamento hidráulico em áreas de exploração na Amazônia Legal. É o caso da Eneva, a maior operadora privada de gás natural do Brasil, cujas operações no Maranhão estão na região da bacia sedimentar do Parnaíba (no Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins), que contém uma das reservas de gás não convencional mais promissoras do país, de acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Outras bacias sedimentares na Amazônia, como a do Solimões (no Amazonas) e do Amazonas (no Amazonas, Pará e Amapá), também contêm potenciais reservas do recurso, de acordo com dados da EPE.
O documento, lançado na última quinta-feira (7), faz concessões a entidades e empresas do setor de petróleo e gás que haviam pedido a flexibilização de trechos de uma minuta submetida à consulta pública entre março e abril deste ano no site do Ministério de Minas e Energia (MME).
Como um dos requisitos para a qualificação de projetos por meio do edital, a versão preliminar do texto determinava que houvesse distância mínima de 1,5 mil metros entre o poço perfurado para fracking e aquíferos passíveis de uso doméstico ou industrial. Também demandava que os poços onde seria realizado o fraturamento hidráulico ficasse a pelo menos 500 metros de “construção habitada”.
Na consulta pública, a Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo e Gás (Abpip) e o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP) se manifestaram contrariamente ao primeiro ponto, e a Abpip, desfavoravelmente ao segundo, conforme revelou a Agência Pública em junho. A intenção, sobretudo em relação ao primeiro tópico, era beneficiar a Eneva, que, em evento para investidores em fevereiro deste ano, manifestou a intenção de submeter uma proposta ao Poço Transparente para realizar o fracking em Santo Antônio dos Lopes, no interior do Maranhão, onde possui um complexo formado por quatro usinas termelétricas e campos de produção de gás convencional. Segundo a Abpip e o IBP, poços com potencial não convencional naquela região distam entre 1,2 e 1,4 mil metros de aquíferos – o que desrespeitaria o limite determinado pela primeira versão do edital.
No fim das contas, ambas as exigências acabaram suprimidas do edital elaborado pelo MME, Agência Nacional de Petróleo (ANP), EPE e Programa de Parceria de Investimentos (PPI), vinculado ao Ministério da Economia. O documento estabelece apenas que não sejam aceitos projetos “quando houver estudos técnicos que demonstrem que a execução do fraturamento hidráulico afetará a base de um aquífero passível de uso doméstico ou industrial”.
Ilan Zugman, diretor para América Latina da organização 350.org, avalia que o documento é demasiadamente simplificado e impõe poucas restrições diante de uma técnica “perigosa e danosa” como o fracking, o que classifica como “temerário”. “A retirada desses pré-requisitos deixou o processo ainda mais fácil para as empresas”, destaca Zugman. “É claro que será estudado caso a caso, mas é um grande absurdo que não haja restrições maiores. Pelo contrário, eles derrubaram as restrições que já eram muito frágeis.”
A 350.org é uma das 16 organizações da sociedade civil que, em nota lançada na sexta-feira (9), criticaram o edital e pediram sua “revogação imediata” ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao vice Geraldo Alckmin (PSB), ao coordenador do grupo de trabalho do Meio Ambiente da equipe de transição, senador Jorge Viana (PT), e também ao relator do GT, Pedro Ivo Batista. Os signatários do texto apontam que o Poço Transparente representa “iminente risco de danos irreversíveis a toda a sociedade brasileira e ao clima global”, já que o petróleo e o gás não convencionais obtidos via fracking são combustíveis fósseis, cuja queima produz gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global e as mudanças climáticas.
De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), é necessário que o mundo atinja, no máximo até 2025, o pico das emissões desses gases para manter viva a meta do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5°C. Por isso, para Zugman, o Brasil está na contramão do mundo ao apostar no fracking. “O governo deveria fortalecer a transição energética, colocar o foco nas energias renováveis e não em testar uma técnica que já foi banida em vários países”, afirma.
Em resposta aos questionamentos da Pública, a ANP informou apenas que a demanda deveria ser dirigida ao MME. O ministério, por sua vez, não retornou até a publicação da reportagem, assim como a EPE, PPI, Abpip, IBP e Eneva.
Redução de royalties e apoio ao licenciamento ambiental
A partir de agora, conforme o edital, empresas que quiserem fazer fracking em poços não convencionais em blocos ou campos sob sua concessão poderão inscrever propostas, que deverão ser analisadas pelo MME num prazo de 90 dias. Poderão ser submetidos projetos durante dois anos, até 7 de dezembro de 2024.
As propostas selecionadas contarão com incentivos, como a redução do pagamento de royalties por parte das empresas produtoras aos entes estatais. A lei determina que a compensação financeira seja paga em montante correspondente a 10% da produção de petróleo ou gás natural, com a previsão de que a ANP possa reduzir o valor a 5% em casos específicos. O edital determina que isso se aplique ao caso do Poço Transparente.
Ainda segundo o documento, o projeto tem como bandeiras a transparência e a intenção de promover a exploração de reservatórios não convencionais “em condições seguras para o meio ambiente e para a saúde humana”. No entanto, especialistas ouvidos pela Pública não acreditam que isso seja possível diante das sólidas evidências científicas que apontam riscos à saúde e ao meio ambiente relacionados à prática do fracking.
O edital também estabelece que os projetos selecionados contarão “com apoio ao licenciamento ambiental e a outras medidas necessárias à sua viabilização”. Esse é um dos grandes obstáculos para a aplicação da técnica do fraturamento hidráulico no Brasil: não existe no país regulamentação específica para o processo de licenciamento ambiental necessário à sua realização, conforme determina resolução da ANP. O Poço Transparente só viabilizará a atividade por ser uma iniciativa de caráter experimental.
A publicação do edital no último mês de Bolsonaro como presidente da República visa ao cumprimento de uma promessa que constava em seu plano de governo quando candidato em 2018: a de incentivar a “exploração não convencional” de petróleo e gás que pudesse ser “praticada por pequenos produtores” contra “o monopólio da Petrobras sobre toda a cadeia de produção do combustível”.
Impactos
O fracking pode acarretar uma série de consequências ambientais, conforme vêm apontando a ciência e as comunidades impactadas ao longo dos anos.
Uma das mais notáveis são as significativas emissões de gases de efeito estufa (GEE), os grandes responsáveis pelo aquecimento global, não só nas etapas de exploração e produção do gás de folhelho, como na atividade do maquinário pesado utilizado nas operações e na intensa movimentação de veículos de transporte – o que causa também a piora da qualidade do ar local. Há ainda as emissões “fugitivas” de metano, um poderoso GEE, que ocorrem em momentos da injeção de fluidos nos poços e de sua volta à superfície (a “água de retorno”) para a extração do petróleo ou gás. Um estudo de 2019 constatou que, durante a década anterior, a produção de gás de folhelho nos EUA – que, graças ao fracking, se tornaram o maior produtor mundial de hidrocarbonetos – pode ter contribuído para mais da metade do aumento das emissões derivadas de combustíveis fósseis em todo o planeta e para aproximadamente um terço da elevação de emissões globais de todas as fontes de GEE no mesmo período.
Os tremores induzidos pelo fracking ou em decorrência dele representam outro impacto. Eles podem ser ocasionados pelo próprio fraturamento hidráulico ou pela reinjeção, na rocha, da água suja que sobe à superfície com o óleo ou gás – uma maneira mais barata de descartá-la. No estado norte-americano do Texas, por exemplo, o número de terremotos de magnitude 3 ou maior dobrou de 2021 para 2022, o que cientistas têm atribuído à reinserção de água no subsolo após o fracking. Pela escala Richter, a partir do nível 3,5 o tremor começa a ser sentido pela população. Em Vaca Muerta, na Patagônia argentina, região com a segunda maior reserva potencial de gás de folhelho no mundo e onde o fracking é feito desde 2011, os terremotos também prejudicam a vida das comunidades. Um estudo identificou 206 sismos na região entre 2015 e 2020, algo que pode ser considerado uma nova dinâmica local e tem relação com o fraturamento hidráulico, concluíram os pesquisadores. Pela mesma razão, o Reino Unido baniu a prática em 2019.
Porém, “os recursos hídricos são potencialmente os mais sensíveis aos impactos ambientais decorrentes das atividades de fracking”, de acordo com um caderno da FGV Energia, MME, EPE e Rede Gasbras, pois elas exigem “quantidades significativas de água doce” e geram “grandes volumes de rejeitos líquidos contaminados por diversos elementos e compostos potencialmente tóxicos”. A técnica demanda, segundo alguns estudos, de 10 milhões a 17 milhões de litros de água para cada poço, o que ameaça a segurança hídrica das regiões onde é executada, sobretudo nas quais já há escassez ou em épocas de seca. Além disso, existe o risco de contaminação de aquíferos, pelos quais passam os furos que miram camadas de rocha muito abaixo da camada subterrânea de água. Mais provável do que isso, mostra um artigo científico publicado em 2017, é a contaminação de águas superficiais, como rios e córregos, por derramamentos ou vazamentos acidentais de fluidos residuais do fracking.
Todas essas implicações podem provocar danos à saúde humana. Pesquisa divulgada em março deste ano identificou que produtos químicos relacionados ao fraturamento hidráulico têm chegado a aquíferos que alimentam os sistemas de água municipais da Pensilvânia – considerado um dos epicentros da prática nos EUA –, sendo que o potencial de contaminação é maior durante o período de pré-produção, quando um novo poço é perfurado. As autoras do trabalho observaram, ainda, que cada novo poço aberto a menos de 1 km de uma fonte pública de água potável está associado a um aumento de 11% a 13% na incidência de partos prematuros e baixo peso no nascimento de bebês expostos durante a gestação.
O que é o fracking e o que significam recursos não convencionais
Recursos não convencionais são aqueles extraídos de rochas de baixa permeabilidade, mais difíceis de explorar do que os reservatórios típicos, que produzem petróleo e gás convencionais. “Xisto” (shale, em inglês) é o termo usado popularmente para se referir ao folhelho, uma das formações rochosas não convencionais em que o gás e o petróleo podem ocorrer. Também existem os reservatórios de arenitos ou carbonatos “fechados” com petróleo e gás (tigh oil e gas), entre outros.
Segundo a EPE, potenciais reservas de sete tipos de recursos não convencionais foram mapeadas em quatorze bacias sedimentares brasileiras, com destaque, em termos de variedade, para as do Paraná (que se estende por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, Paraná e Santa Catarina), Parnaíba (que abrange partes do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins) e Recôncavo (Bahia).
Em relação ao gás de folhelho – que fez dos Estados Unidos o maior produtor mundial de gás –, as bacias do Parnaíba, Paraná, Recôncavo, Solimões (no Amazonas) e Amazonas (no Amazonas, Pará e Amapá) são as mais promissoras. O Departamento de Informação de Energia dos Estados Unidos (EIA, na sigla em inglês) coloca o Brasil como o décimo país com mais recursos em gás de folhelho no planeta.
Para que a operação comercial desses reservatórios não convencionais seja viável, são necessárias técnicas mais complexas. Primeiro, o poço é perfurado de maneira vertical até que se atinja a camada de rocha a ser explorada, que normalmente fica a profundidades de 1,8 a 3 km abaixo da superfície. A partir daí, a perfuração continua horizontalmente por distância que varia de 1 a 3 km, e, ao fim desse processo, o poço é revestido com tubos de aço e cimentado. Depois disso, entra o fraturamento hidráulico: a injeção de grandes quantidades de água com diversos produtos químicos (na literatura científica, há registro de mais de mil componentes químicos já utilizados nas operações) e areia sob alta pressão, que produz fraturas nas rochas, permitindo que o gás e o óleo antes inacessíveis fluam para a tubulação e sejam extraídos.
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