Reconstruir políticas públicas e programas sociais a partir do zero, com a possibilidade de um orçamento abaixo do esperado e necessidade de frear retrocessos. É assim que a deputada Lídice da Mata (PSB-BA), liderança do grupo de trabalho de mulheres, do Gabinete de Transição, resume qual deve ser o eixo de atuação do governo Lula (PT) para assuntos relacionados a gênero.
Segundo Lídice, o rombo orçamentário deixado pelo governo Bolsonaro ameaça a operacionalização de programas dedicados à defesa das mulheres, como o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, que recebe, analisa e encaminha denúncias de violências. O orçamento do serviço este ano foi de R$ 22 milhões. Em 2023, estão previstos apenas R$ 3 milhões. No próximo ano, o total destinado para o enfrentamento da violência contra a mulher é de apenas R$ 13 milhões, o que representa um corte de 70% em relação ao ano anterior.
O corte de recursos, de serviços e de políticas públicas de gênero é uma herança de Bolsonaro e também da gestão da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Hoje senadora eleita pelo Republicanos do Distrito Federal, Damares é uma pastora evangélica conservadora e militante antiaborto, que teve participação ativa no recrudescimento dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+ nos últimos anos. “Não podemos voltar no tempo quanto ao que não foi feito, o que nos resta agora é entender e reconstruir as políticas que ficaram completamente estacionadas nos últimos anos”, diz Lídice.
Mas, antes mesmo de começar a reconstruir o cenário de desmonte, o GT de Mulheres precisa garantir a própria criação do Ministério da Mulher, ainda não confirmado pelo futuro governo. O grupo técnico também defende a criação de uma secretaria específica para combate à violência política de gênero. A proposta do GT, do qual faz parte também a educadora Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada Marielle Franco, é de que a secretaria seja integrada ao ministério dos Direitos Humanos ou à eventual Ministério das Mulheres, que seria desvinculado da pasta de Direitos Humanos.
À Agência Pública, a deputada Lídice da Mata resumiu alguns dos desafios que o próximo governo deve enfrentar para recompor políticas de justiça de gênero. Confira os principais trechos da entrevista:
Orçamento enxuto
“Para os principais programas voltados à defesa da mulher, teremos R$ 23 milhões no ano que vem. Isso é 10% do que foi disponibilizado em 2016, quando esse orçamento já era menor do que em anos anteriores. O orçamento de 2023 é resultado de uma gestão que enxergava o Estado como isento da obrigação de oferecer proteção, acolhimento e autonomia às mulheres. Até mesmo a sede física do atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é uma evidência da falta de recursos. Uma sala muito menor, mais afastada, com menos funcionários”.
Ministério das Mulheres
A criação de um Ministério específico para assuntos dedicados à defesa e empoderamento das mulheres aparece como uma das prioridades do GT. Ao criticar o formato atual da pasta, Lídice evidencia a mensagem “conservadora e excludente” que inclui uma visão hegemônica de Família no nome. Outro ponto para a defesa de uma pasta separada, que apesar de não ter sido confirmada pelo governo, é vista com otimismo pelos movimentos feministas, seria “facilitar a observação e o recorte de gênero em todas as outras áreas”, diz Lídice.
O grupo também incluiu propostas do funcionamento da pasta, como a possibilidade de uma secretaria específica para combate à violência política de gênero, proposta por Anielle Franco, irmã de Marielle Franco.
Ligue 180 pode acabar por falta de recursos
“O governo brasileiro propôs, nos últimos quatro anos, um corte de 94% nos recursos destinados ao combate da violência contra a mulher, de acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que considera a inflação do período. Para o ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher, eram R$ 22 milhões disponíveis durante este ano. Para o ano que vem são R$ 3 milhões previstos.” Esse corte coloca em risco o funcionamento do programa. No primeiro semestre de 2022, uma média de quatro mulheres foram assassinadas por dia. Um recorde de feminicídio no país.
Efeitos da pandemia e empobrecimento da população
“Houve um aumento significativo do empobrecimento das mulheres durante a pandemia e isso incide, inclusive, na dependência financeira, o que torna ainda mais difícil o combate à violência doméstica”, diz a deputada Lídice da Mata.
O grupo de trabalho apurou que, nos anos do governo Bolsonaro, os recursos disponíveis para políticas públicas focadas no combate à violência contra as mulheres não foram aplicados. Dos R$ 126 milhões disponíveis em 2020, apenas R$ 5,3 milhões foram utilizados. O represamento de recursos se repetiu no ano seguinte. Em 2021, foram R$71,1 milhões dedicados às ações exclusivas às mulheres. Desse valor, já inferior aos anos anteriores, apenas 5% foram destinados à Casa da Mulher Brasileira, especializada no atendimento à mulher em situação de violência doméstica.
Segundo a deputada, o rastreio desses recursos tem sido foco do GT de Mulheres. “Essa resposta orçamentária tem sido nossa prioridade. Entender onde estão esses recursos, para onde eles foram e quais ações foram de fato para a defesa real da mulher.”
Alcançar diversidade
“O atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos se refere à mulher no singular. Isso pra mim diz muito sobre a forma como as políticas foram encaradas. É preciso, agora, pensar nas Mulheres, no plural. Queremos alcançar a diversidade da vida das mulheres.”
“O governo federal esteve praticamente parado no que se refere à defesa das mulheres, mas muitos estados conseguiram emplacar ações dignas de mérito”, diz a parlamentar baiana. Lídice diz acreditar que o estudo das ações estaduais ajuda a entender demandas específicas de cada região do país.
Programas sob investigação
Além da aplicação de recursos, as ações e programas capitaneados pelo ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, estão sob escrutínio. Lídice adianta que o programa Abrace o Marajó, lançado pela ex-ministra Damares Alves como um conjunto de ações para combater a vulnerabilidade social no arquipélago marajoara, “foi citado por diferentes entidades ouvidas pelo gabinete de transição como um ponto importante de investigação”.
Durante o período eleitoral, a ex-ministra de Bolsonaro afirmou que o programa combatia situações de tráfico de crianças, tortura e abuso infantil na região. A declaração, feita sem provas dos crimes, em um culto evangélico, chamou atenção do Ministério Público, que exigiu explicações do ministério e de Damares. O prazo terminou em outubro, mas, até o momento, sem que Damares ou o ministério tenham sido responsabilizados.
Fonte: Publica