Minutos após o ocorrido, começaram a circular nos grupos de WhatsApp da comunidade duas imagens que intrigam moradores e familiares. A primeira mostra Gilberto encostado na parede, um dos policiais civis próximo ao corpo e um objeto escuro ao lado do cotovelo direito do rapaz. Na segunda, ele está com a camisa rasgada, ainda com um objeto próximo ao braço, porém no canto direito da fotografia é possível ver o que parece ser um revólver quebrado.
“O que eles estão dizendo para justificar o assassinato do rapaz não tem lógica. Quem, na viela da comunidade, vai sacar uma arma de brinquedo para trocar tiro com três policiais?”, questiona Lourdes*, moradora da Favela da Felicidade há décadas. “Aqui, quando eles chegam na favela, eles não olham se é mulher, se é criança que está na rua, não. Eles chegam dando tiro! Outro dia as crianças estavam brincando, quando eles vieram ali, [estavam] com arma no punho e correndo feito loucos para pegar os meninos e dando tiro pra tudo quanto é lado. Eu corri para pegar as crianças. Agora, imagine se um tiro pega numa criança? Eles vão devolver a vida? Não vão”, desabafa Lourdes.
Revolta coletiva, fogo no ônibus e a busca pelo corpo
À medida que a notícia de que mais um jovem trabalhador negro havia sido assassinado circulava entre a comunidade, a indignação coletiva crescia. Um ato na avenida Guido Caloi foi marcado às 19 horas do mesmo dia. Mas era tamanha a revolta que, antes disso, por volta de 17h30, vários moradores seguiram juntos em direção ao local do protesto, tomaram a avenida, pararam um ônibus, fizeram os passageiros e o motorista descerem e atearam fogo no veículo vazio.
Rapidamente a polícia chegou e dispersou o grupo, que seguiu em direção a outras avenidas. Na rua Satulino de Oliveira, fizeram uma barricada com lixo e restos de madeira, atearam fogo e desceram a ladeira em direção ao terminal João Dias. Foi quando se deu o tumulto entre moradores e a Polícia Militar. Um policial foi atingido por uma pedra e teve um corte na região da cabeça. Por sua vez, manifestantes relataram ter sofrido agressões gratuitas com cassetete e tentativas de atropelamento pela Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas). Seis pessoas foram presas e encaminhadas ao 47° DP Capão Redondo.
Enquanto a comunidade protestava nas ruas, os familiares de Gilberto faziam uma via-crúcis tentando localizar o corpo. “Mandaram a gente lá pro DHPP [Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa]. Chegou lá, eles só entregaram o RG do meu irmão. Não entregaram o celular. Falaram que vai ficar em investigação por dois meses e mandaram a gente vir para o IML [Instituto Médico Legal] da Berrini. Lá, uma moça disse que não podia atender a gente porque já tinha passado do horário. A gente chegou umas 19h20, disseram que fechava às 19 horas e não atenderam. O homem que veio falar com a gente disse que não iria atender por dois motivos: porque já tinha fechado e porque o corpo que estava lá estava como desconhecido. Só que alguma coisa já estava dizendo pra mim: ‘É seu irmão que está aqui’. Eu perguntei: ‘Moço, como é o homem que está aqui?’. Ele falou: ‘Se for um que está todo furado…’. Pensei: ‘É meu irmão’.”
“Ele falou que não ia deixar [a família entrar] porque tinha feito o exame da digital e tinha que esperar o resultado até o dia seguinte”, diz Pamela Amancio, 26 anos, irmã de Gilberto, que voltou pra casa sem entender o motivo por que o corpo do irmão continuava sem identificação, se os familiares já haviam entregado o documento dele aos policiais.
Só no dia seguinte, por volta das 6 horas, os familiares souberam que a identificação do corpo tinha sido positiva e que teriam que ir ao local para fazer o reconhecimento. “Chegando lá, mandaram eu assinar alguns papéis da liberação. Falaram que eu só podia fazer o reconhecimento depois da contratação da funerária. Aí eu fui lá pra Santo Amaro comprar caixão e resolver tudo. Voltei pra porta do IML às 9 horas e fiquei esperando até umas 13 horas. Sem poder entrar, no frio, na rua e com fome. Quando a funerária chegou, separaram o corpo para eu reconhecer. Eu lembro que vi o meu irmão deitado naquela maca, com o pano do peito para baixo e com um sorriso estampado no rosto. É uma cena que ninguém tira de mim. Ele morreu de uma forma muito injusta, mas eu vou guardar esse sorriso pelo resto da minha vida”, diz Pamela.
Despedida, comunidade presente
No sábado (15), por volta de 14 horas, um ônibus lotado de moradores da Favela da Felicidade estacionou próximo ao Cemitério São Luís e abriu a porta dianteira. Silenciosamente, adolescentes e jovens, em sua maioria, desceram, enquanto famílias e grupos de amigos entravam pela porta central do cemitério, formando uma pequena multidão em frente à sala do velório, ainda fechada. Abraços demorados acolhiam os que choravam o amigo, o filho, o pai, o marido, o parceiro, o irmão, o primo, o sobrinho. Uma pergunta muda parecia estar nos olhos de todos: por quê?.
Quando o caixão entrou na sala do velório, a comoção tomou conta dos que se revezavam na pequena sala para ver Gibinha pela última vez. Em silêncio, a passos lentos, grupos de amigos e familiares seguiram o cortejo. Uma demorada salva de palmas encerrou o sepultamento. Mas não a revolta.
Na manhã do domingo seguinte, dezenas de pessoas se juntaram em frente à barbearia do irmão de Gibinha, próximo ao “morrão”, onde fica o campo de futebol que ele frequentava nos finais de semana. Nas cartolinas, faixas, pedaços de papelão, e nas camisetas brancas tingidas de vermelho, escreviam mensagens como “Luto por um amigo”, “Paz”, “Justiça por Gibinha”, “6 tiros é assassinato”. De lá, partiram para uma passeata pelas principais avenidas do Jardim São Luís.
Apesar do sol forte e da preocupação com a Covid-19, a necessidade de a comunidade reagir à injustiça falou mais alto. As ruelas da Favela da Felicidade ficaram ainda mais estreitas, quando cerca de 200 pessoas desceram em direção à avenida Guido Caloi cantando o Rap da Felicidade: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar que o pobre tem o seu lugar”.
A passeata seguiu, incansavelmente, por cerca de 7 quilômetros, passando pela ponte Transamérica, a avenida João Dias e a Maria Coelho de Aguiar e gritando palavras de ordem como “O Estado é genocida”, “Nós queremos justiça”, “Gibinha, presente”, “Ele era inocente”.
O momento de maior comoção foi quando, em uma das paradas para descansar, Edna Aparecida Amancio, mãe do Gilberto, falou pela primeira vez em público sobre o que havia acontecido. “Ele não é bandido. Ele sofria, ele batia marreta pra poder ganhar o sustento pro filhinho dele. Só quero justiça. Porque hoje, sou eu que estou sentindo essa dor. Amanhã é uma de vocês que estará chorando. A dor de perder um filho não se compara à dor do parto. Eu preferia parir 40 filhos, mas não ia sentir a dor que eu estou sentindo agora. Ninguém sabe o que eu estou passando. Meu mundo acabou”, disse, frisando que a polícia havia matado um inocente. “Eu fiz de tudo que pude, e o meu filho não era um traficante, um aviãozinho. Nunca. Ele é favelado, mas ele e os irmãos trabalham.” Emocionada, ela explicou: “Eu estou chorando porque a polícia tirou a vida dele. Se fosse Deus que tivesse tirado ele, eu ia aceitar. Eu até achei que ele ia ficar doente, porque a mulher dele pegou Covid, ele ficou o tempo todo do lado dela e não pegou essa doença maldita, que podia levar ele. Aí veio um policial e tirou a vida do meu menino”.
A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre a atuação dos policiais civis citados no BO. Até o fechamento da reportagem, não houve resposta. Um inquérito policial que aponta o crime de homicídio simples (cometido pelos policiais) e morte decorrente de intervenção policial foi aberto pelo DHPP. Os familiares de Gilberto estão em contato com os advogados da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio em busca de possibilidades jurídicas para exigir que o caso seja investigado e os réus julgados.
Fonte: Publica