Pistolagem contra sem-terra em Ourilândia do Norte
Além de sobreposta ao PA Luciana e ponto central da venda de gado para os frigoríficos, a fazenda Agropecuária Abelha II foi palco de um conflito entre a família Rocha e pequenos agricultores em 2020.
Pouco depois de decretado o sequestro da propriedade no âmbito da Operação Flak, em fevereiro de 2019, cerca de 50 famílias decidiram ocupá-la com a esperança de que a Justiça não a levasse a leilão e o governo federal a destinasse à reforma agrária. A ocupação existiu até novembro de 2020, quando homens atearam fogo nos barracos e nas plantações dos sem-terra e os expulsaram, segundo fontes ouvidas pela Pública sob anonimato.
Em 17 de junho de 2019, uma decisão da Justiça Federal do Tocantins autorizou o uso de forças policiais para a retirada das famílias. Segundo o juiz, havia uma “premente necessidade de se proceder ao manejo necessário dos semoventes [gado]”, que continuavam na propriedade. Mas a ação não foi realizada e mais gente se instalou no local.
A reportagem ouviu uma agricultora familiar que participou da ocupação. Por medo de retaliações, ela pediu que sua identidade fosse protegida – aqui, vamos chamá-la de Maria*. Em agosto de 2019, ela e o marido decidiram erguer um barraco de lona na fazenda. “Fui pra lá porque almejava um pedaço de terra, e o pessoal estava falando que lá estava na Justiça, que não iam nos tirar”, conta. “Meu desejo é uma terra para eu ficar sossegada.”
De acordo com Maria, a orientação das lideranças – que agiam autonomamente, sem apoio de movimentos sociais – era que as famílias não cortassem as cercas de arame originais da propriedade, delimitassem seus lotes e não mexessem com o gado de Rocha, que seguia no imóvel aos cuidados de um vaqueiro. “Fizemos barraco, começamos a plantar feijão, melancia, abóbora, essas coisas primeiro. Aí depois mandioca, cacau, vários tipos de plantas frutíferas a gente tinha lá”, explica. Ela diz que os ocupantes também mantinham criações de galinhas e porcos e que alguns, confiantes na possibilidade de permanecer no local, já tinham investido na construção de poços artesianos, por exemplo.
A situação foi de relativa tranquilidade até que, na noite de 5 de setembro de 2020, uma das lideranças da ocupação, o agricultor João Antônio Soares da Silva, de 57 anos, foi assassinado a tiros no banheiro que ficava do lado de fora de sua casa, em Ourilândia do Norte. O boletim de ocorrência da morte foi registrado na delegacia da cidade e a investigação agora está a cargo da Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (Deca) de Redenção. O delegado Antônio Mororó Júnior, responsável pelo caso, informou que o inquérito corre sob sigilo, mas que já se verificou “que a motivação do crime tem relação com conflito agrário e disputa de terras”.
Maria relata que depois do assassinato de Silva pessoas estranhas começaram a rondar a ocupação e abordar os moradores. “Eles deixavam os cabos de revólver [aparecendo por] debaixo da camisa. A gente conhece esse povo aí. A gente conhece pelo jeito de vestir deles”, narra.
No fim de outubro, homens teriam avisado de barraco em barraco que as famílias tinham 15 dias para deixar o local. A expulsão, entretanto, viria antes do prazo: durante a noite, um grupo colocou fogo nas casas e plantações dos ocupantes e passou com máquinas por cima do que sobrou. Segundo Maria, ninguém se machucou, mas os sem-terra perderam tudo. “Eles podiam ter deixado a gente tirar nossas coisas, as mandiocas, o cacau, porque cacau é dinheiro”, lamenta.
Procurada, a Superintendência do Incra do sul do Pará, responsável administrativamente pela região de Ourilândia do Norte, informou não ter registros sobre a ocupação. O advogado dos filhos de João Soares Rocha, Stefânia, Izabela e João Vitor – donos formais da Agropecuária Abelha II –, não respondeu especificamente às perguntas da Pública sobre a ocupação das famílias sem-terra na fazenda e sua expulsão (no fim desta reportagem, há mais informações sobre a manifestação da defesa). Já os advogados de Rocha não enviaram seu posicionamento até a publicação.
A conta de Rocha na Justiça
Desmatamento ilegal, trabalho análogo à escravidão, homicídio e ameaça: denunciado na Justiça Federal do Tocantins no âmbito da Flak por tráfico internacional de drogas, associação para o tráfico e atentado contra a segurança do transporte aéreo, entre outros delitos, João Soares Rocha tem também histórico de infrações ambientais.
Hoje, ele deve cerca de R$ 4 milhões por duas multas aplicadas pelo Ibama por crimes contra a flora e o ecossistema, tendo quitado outras duas que, juntas, somavam R$ 33 mil. Ele já teve duas áreas embargadas pelo órgão, em 2007 e 2015. O embargo mais recente, ainda pendente de julgamento, ocorreu dentro da fazenda Matão, em Tucumã, cujo registro no CAR está em nome de sua ex-companheira, Mayra, e que vendeu gado para a Frigol em 2018, contrariando o TAC da Carne.
Uma das multas ainda ativas, no valor de R$ 3,3 milhões, resultou de ação de fiscalização do Ibama realizada no Parque Nacional da Serra do Pardo, em Altamira e São Félix do Xingu, em dezembro de 2006. Na ocasião, os agentes do órgão identificaram uma área de 2.243 hectares – equivalente a mais de 2,2 mil campos de futebol – de floresta nativa desmatada ilegalmente em uma fazenda de Rocha no interior da unidade de conservação. A multa foi motivo de uma ação civil pública que, ajuizada pelo MPF-PA em abril de 2007, até hoje tramita na Justiça Federal do Pará.
Em outro processo, o pecuarista é acusado de ter mantido três funcionários da fazenda Cachoeira, em São Félix do Xingu, em situação de trabalho análogo à escravidão. Em setembro de 2010, o Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou os homens, que haviam sido contratados para construir cercas na propriedade, e constatou que eles estavam submetidos a condições degradantes e humilhantes, sem acesso a habitação e saneamento básico, morando em barracos de lona a 5 km da sede da fazenda. O MPT pediu na Justiça a condenação de Rocha e Marivan dos Santos, então gerente da fazenda. Os acusados recorreram e atualmente o processo aguarda decisão no TRF-1. Posteriormente, em 2013, Rocha foi incluído na “lista suja do trabalho escravo”, divulgada pelo governo federal.
Mas não para por aí: atualmente, João Soares Rocha também é réu por homicídio em ação que tramita no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO). Ele é acusado de ser o mandante do assassinato do advogado Silvio José Dourado, ex-agente da PF, ocorrido em 17 de abril de 2020 na capital Goiânia, quando o pecuarista já estava solto no âmbito da Flak.
Segundo a Polícia Civil, à época a vítima estava namorando Mayra Gomes Trindade Ferreira, e Rocha, inconformado com o novo relacionamento da ex-companheira, teria contratado dois homens para executar Dourado. Logo depois do crime, a Justiça decretou sua prisão temporária e, posteriormente, em julho, a prisão preventiva, mas ele segue foragido. Após esse episódio, Rocha ainda teria ameaçado Mayra, o que, em outubro do ano passado, gerou mais um processo contra ele no TJ-GO.
Embora só tenha virado réu por tráfico de drogas por conta da Flak, a conexão de Rocha com esse universo já havia sido apontada no passado. Em 2006, a Delegacia de Polícia Federal em Redenção apurou a relação entre ele e o notório traficante de drogas e armas Fernandinho Beira-Mar, ex-líder da facção carioca Comando Vermelho. Segundo as suspeitas da PF, à época Rocha estaria lavando o dinheiro do criminoso, mas a investigação não resultou em condenação.
João Soares Rocha teria ainda ligações com outro narcotraficante, Leonardo Dias de Mendonça, sócio de Beira-Mar, segundo as investigações. No final de 2002, no âmbito da Operação Diamante, da PF de Goiás, vários bens de Mendonça foram sequestrados, incluindo a fazenda Paranaíba, em São Félix do Xingu. Tempos depois, Mayra, sua então companheira, foi à Justiça na tentativa de recuperar a posse do imóvel rural, afirmando serem ela e o marido seus proprietários legítimos – como prova, apresentou um contrato de parceria pecuária firmado entre Rocha e Mendonça em novembro de 1999. A família retomou a propriedade, que até hoje segue em sua posse.
Em relação ao caso da Fazenda Matão, a Frigol comunicou que considerava o embargo do Ibama referente a uma propriedade vizinha, mas que, em outubro de 2019, o órgão disponibilizou dados demonstrando que partes da propriedade também estavam entre as áreas atingidas. “Na ocasião, a Frigol bloqueou este fornecedor em seu cadastro, embora já não houvesse comercialização com a empresa”, informou, em nota.
Outro lado
A Pública procurou as defesas de João Soares Rocha e de Mayra e seus três filhos. Os advogados de Rocha não responderam até a publicação desta reportagem. Já a defesa de Mayra e dos filhos afirmou que os bens pertencem legitimamente à família e destacou que o TRF-1 acatou os argumentos apresentados no âmbito do mandado de segurança e reverteu o sequestro dos bens de seus clientes. A defesa ressaltou ainda que nenhum dos familiares foi indiciado pela Operação Flak.
A reportagem tentou contato também com o pecuarista Rafael Saldanha Júnior, mas não obteve retorno.
Gado do narcotráfico também foi parar em frigoríficos no MT
O caso de Rocha não é o único em que traficantes de drogas utilizaram a pecuária para lavar o dinheiro decorrente da atividade criminosa. Na cidade de Cáceres (MT), na fronteira com a Bolívia, ao menos 122 cabeças de gado de Hugo Fernando de Assis Custódio foram enviadas para engorda em outra fazenda no município por meio de um laranja fictício, segundo Guias de Trânsito Animal (GTAs) obtidas pela Pública. A fazenda intermediária, por sua vez, vendeu quase mil cabeças de gado para grandes frigoríficos nos meses seguintes.
GTAs obtidas pela reportagem indicam que ao menos 963 cabeças de gado foram destinadas ao abate, principalmente para a JBS, mas também para a Frical Frigorífico e para o Frigorífico 3M, entre 14 de agosto de 2018 e 25 de junho do ano seguinte.
Custódio atualmente cumpre pena em São Paulo. Ele foi preso em dezembro de 2016, na cidade paulista de Ribeirão Preto, com cerca de 422 tabletes de substância análoga à pasta base de cocaína. Em 2019, foi condenado a mais de dez anos de prisão pelo crime. Para o Ministério Público do Mato Grosso (MP-MT), a propriedade rural do traficante, chamada fazenda III Barras, era utilizada para lavar dinheiro obtido no tráfico, além de servir de esconderijo de parte do montante.
Em dezembro de 2020, o promotor Augusto Lopes Santos, do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco), apresentou denúncia contra Custódio, sua esposa e outros sócios, por lavagem de dinheiro e organização criminosa, entre outros crimes. A propriedade, que vale cerca de R$ 10 milhões, e aproximadamente 800 cabeças de gado e maquinários agrícolas estão sob sequestro judicial.
A Pública contatou Rúbia Soares, esposa de Hugo Custódio, que não respondeu aos questionamentos. Adão Alves Júnior, pecuarista que comprou os animais da fazenda III Barras, afirmou que iria verificar a existência da negociação, mas não retornou até a publicação do texto. A JBS informou apenas que a fazenda III Barras não consta em sua base de fornecedores e os outros frigoríficos envolvidos também não se manifestaram em relação às perguntas enviadas pela reportagem.
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