Amanda* se espantou quando viu seu nome listado ao lado de outros nove professores em um diploma da pós-graduação das Faculdades Integradas Campos Salles (Fics). O nome da professora estava registrado em um certificado do curso de especialização em educação infantil, ministrado de outubro de 2018 a outubro de 2019 na instituição, localizada em São Paulo.
“Eu levei um baita susto porque eu nunca dei aula na pós-graduação. Eu não tinha nem conhecimento daquele curso”, diz a professora, que tem titulação de mestre na área de educação. Ela conta que trabalhou por quatro anos na faculdade, mas, por mais da metade do período do curso em que teria lecionado, já estava fora da instituição.
A Agência Pública entrou em contato com os dez professores que aparecem no diploma sob suspeita de fraude na Fics. Metade confirmou à reportagem que nunca deu aula no curso mencionado – alguns, como Amanda, nem sequer haviam lecionado na pós-graduação. “Fomos usados como laranjas porque eles precisam de mestres e doutores”, avalia a docente.
Também o nome da professora Cimara Apóstolico é um dos que aparecem no corpo docente do curso de educação infantil. Segundo o certificado, ela teria dado a disciplina “Leitura e palavra: a criança como sujeito de educação no ensino infantil”, com duração total de 50 horas. Mas a professora negou à Pública ter ministrado tais aulas. “Eu não lecionei em momento algum na pós-graduação da Campos Salles. Só lecionei na graduação, em vários cursos. Mas, em 2018 e 2019, eu nem tinha horário para lecionar em mais nada. Então, com certeza, não fui eu. Usaram a titulação por alguma razão”, diz.
A professora Silene Claro, no entanto, afirmou que deu aula em todos os cursos da pós-graduação, mas não especificou se também no curso suspeito de fraude.
O curso teria sido oferecido pela universidade na modalidade EAD, ainda que o diploma obtido pela Pública, validado pelo Ministério da Educação (MEC), não especifique a modalidade. De acordo com um ex-aluno que prefere não se identificar, todo o curso de pós-graduação teria ocorrido sem a presença de professores, com uso de apostilas virtuais acessíveis por uma plataforma on-line – situação que não condiz com os critérios estabelecidos pelo MEC para o funcionamento de pós-graduações lato sensu.
A Resolução CNE/CES nº 1, que regula o setor, determina que metade do corpo docente dos cursos de especialização seja constituído de professores portadores de título de mestre ou de doutor, “obtido em programa de pós-graduação stricto sensu reconhecido”. Sem considerar condições extraordinárias, como a pandemia, outra exigência estabelecida pela norma é que “os cursos a distância deverão incluir, necessariamente, provas presenciais e defesa presencial de monografia ou trabalho de conclusão de curso”, o que, segundo o estudante procurado pela reportagem, não ocorreu.
Denúncia no MPF
Em julho de 2020, foi aberto um processo administrativo na Prefeitura de São Paulo para apurar irregularidades no curso oferecido pela Campos Salles, após uma notificação da Diretoria Regional de Educação. O procedimento, no entanto, foi arquivado por fugir à competência do município.
Mas, em março deste ano, suspeitas de fraude na instituição foram denunciadas ao Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo, pelo gabinete do deputado estadual Carlos Gianazzi (Psol) e pela Rede de Educadores do Ensino Superior em Luta.
De acordo com o ofício entregue à Procuradoria, os indícios “sugerem um manuseio intencional, por parte da mantenedora, da atribuição de disciplinas e/ou cursos aos seus profissionais docentes, com o intuito de maximizar as notas de avaliação dos seus cursos, cujos critérios de pontuação passam também pela análise de títulos de todos os docentes vinculados à instituição e aos cursos oferecidos”.
A advogada Beatriz Branco, assessora jurídica do mandato de Giannazi, explica que, no caso de comprovada a utilização de professores de fachada, a instituição pode ser responsabilizada nas esferas civil, administrativa e até criminal.
“No âmbito civil, os professores que tiveram seus nomes utilizados indevidamente podem pleitear danos morais e exigir a retirada de seus nomes dos diplomas já emitidos. Caso ainda possuam vínculo trabalhista, a demanda pode também ir para a Justiça do Trabalho”, diz a advogada. O uso de informações falsas poderia acarretar também suspensão da oferta de cursos na instituição e, no âmbito penal, em investigação criminal na Polícia Federal ou no Ministério Público.
Procurado, o MPF não respondeu até a publicação sobre o andamento da denúncia.
Coordenação de cursos
A denúncia entregue ao MPF que cita “Falsificação de documento público” apontou também irregularidades na coordenação dos cursos de pós-graduação da universidade e no regime de contratação dos professores.
As Faculdades Integradas Campos Salles têm 127 cursos de especialização cadastrados no MEC, entre presenciais e EaD. A Pública constatou que 31 cursos são oferecidos com regularidade e, antes da pandemia, presencialmente. Destes, oito são coordenados por Luci Ana Santos da Cunha e 17 por Fabio Cristiano de Moraes – ou seja, dois professores são responsáveis pela coordenação de 80% dos cursos de pós-graduação oferecidos pela instituição. Luci, também funcionária pública, ainda acumula a coordenação dos cursos de pós-graduação com as atividades de jornada integral no ensino superior, como ministrar disciplinas em cursos regulares da instituição. Seus nomes também constam no certificado suspeito e denunciado ao MPF. Procurados, eles não retornaram até a publicação.
Profissionais do setor educacional consultados pela reportagem avaliam que coordenar tantos cursos seria uma tarefa sobre-humana. “O máximo que já vi na vida foram três cursos coordenados pelo mesmo profissional, e já era uma situação atípica”, avalia um professor que atua como coordenador numa universidade privada de São Paulo e prefere não se identificar. Apesar de não ser uma situação irregular, o coordenador vê com estranheza um único profissional coordenar 17 cursos.
Demissões e sucateamento
Em 2015, o grupo Campos Salles foi assumido por uma nova gestão. Para oferecer cursos a distância, a instituição teria comprado, em 2019, a plataforma e o material didático da multinacional britânica Pearson, que oferece em seu catálogo “soluções digitais” para mais de 300 disciplinas no ensino superior. Segundo relato de professores, a faculdade começou a aplicar o conteúdo externo da empresa para alunos em recuperação, mas teria expandido a utilização do material para os cursos regulares.
Amanda lembra que, no mesmo ano, a universidade iniciou um processo de demissões de professores. “A faculdade como um todo tinha um sistema bem precarizado de trabalho. Eu cheguei a dar aula para uma turma com quase 120 alunos presencialmente”, relata. Com a demissão de professores com vínculo CLT, a faculdade teria começado a contratação de professores como pessoas jurídicas.
“Eles não pagaram a gente por nada disso porque compraram essa apostila. Passam essa apostila para o aluno ler e um formulário do Google para responder, e ele está em conteúdo de especialização. Sem ter aula nenhuma, sem ter professor nenhum”, diz a professora. Mas, segundo ela, nem tudo pode ser automatizado: “Fomos usados porque eles precisam dos nomes de mestres e doutores para o MEC, né?”.
Segundo os relatos, outro problema que seria de conhecimento da instituição é um suposto histórico de calotes e atrasos de pagamento de salários dos professores. Cimara Apostólico, que está afastada da instituição há quase dois anos, conta que os professores ficaram sem receber por seis meses em 2014.
“Eles não tinham condições de pagar. As instituições de maneira geral passaram por vários ajustes. Aí, a gente vê lá o preço do curso, R$ 100. Alguma coisa está acontecendo, né? E o que está acontecendo, na verdade, é um sucateamento do salário do professor, uma desvalorização. Eles mandaram embora muitos professores, ficaram poucos na casa, recebendo um salário que não é um salário de professor universitário”, diz a professora. “A gente tem a responsabilidade na formação de um indivíduo que também vai formar outros.”
Desde 2015, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, que abrange a cidade de São Paulo e as regiões de Guarulhos, Osasco, ABC paulista e Baixada Santista, já recebeu 73 novos processos trabalhistas contra a Associação Educativa Campos Salles, mantenedora da instituição de ensino. Só neste ano, 11 novos casos chegaram à Justiça do Trabalho.
Em setembro do ano passado, a Pública já havia relatado casos de outras universidades privadas que, em meio à pandemia, davam aulas on-line com 300 alunos e demitiram milhares de docentes, muitos por pop-up.
Outro lado
Em nota enviada à Pública, as Faculdades Integradas Campos Salles informaram a instauração de um procedimento administrativo para averiguar a existência de vícios formais ou materiais, “não apenas em relação à expedição do referido Certificado, mas também em relação à situação acadêmica e administrativa de toda a atuação discente e docente no curso”.
“Em toda a história da Fics, essa é a primeira vez que recebemos uma denúncia nestes termos, onde, havendo irregularidades, serão aplicadas as sanções previstas em nosso regimento e também na legislação pertinente”, diz nota enviada à reportagem. Sobre os “supostos indícios de manuseio intencional para maximização de notas em nossos cursos”, a instituição informou que os programas de pós-graduação lato sensu não possuem indicadores de qualidade vinculados à titulação.
“No desenvolvimento de nossos cursos, empregamos diversos tipos de conteúdos síncronos e assíncronos, com materiais próprios e de terceiros, constando em nossos certificados os professores que lecionaram aulas síncronas e assíncronas, presenciais ou à distância, professores responsáveis por seu desenvolvimento ou professores que atuam na construção conceitual das disciplinas de suas cátedras dos eixos de formação dos cursos participantes dos Núcleos de Desenvolvimento Estruturantes (NDE), Colegiados de Curso (CONCUR) e do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE)”, afirma a nota da faculdade.
Procurado, o MEC não respondeu até a publicação.
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