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Ditadura

Governo paga R$ 1,2 milhão por mês a herdeiras de militares acusados de crimes na ditadura


Parentes de militares que atuaram no homicídio de Rubens Paiva recebem pensão em 2021

Dois dos militares que atuaram no DOI-Codi, Francisco Demiurgo e Jurandyr Ochsendorf, também estão envolvidos em uma das violações mais emblemáticas da dituradura: a prisão e o assassinato do engenheiro e parlamentar Rubens Paiva, em 1971. Paiva, que iniciou sua vida política no movimento estudantil, foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962, traçando uma trajetória em prol da democracia. 

Na madrugada do dia 1o de abril de 1964, após o golpe militar do dia anterior, Paiva chegou a discursar na Rádio Nacional em defesa do presidente João Goulart e em oposição ao regime. Após o discurso, o deputado teve o seu mandato cassado e se exilou com a família fora do país. De volta ao Brasil um ano depois, manteve sua atuação política. Em 1971, a casa de sua família foi invadida por seis militares e Paiva foi preso e levado ao DOI-Codi, onde foi torturado até a morte. 

Durante anos, as circunstâncias da morte e o paradeiro do corpo do ex-deputado eram incógnitas. Em 2014, o coronel reformado Paulo Magalhães, um dos seis agentes da repressão que participaram da prisão e tortura de Paiva, contou em seu depoimento à CVN que Paiva teve seu corpo jogado em um rio de Itaipava, na região serrana do Rio de Janeiro. No mesmo período, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ) entrou com denúncia contra cinco militares que participaram da ação. O processo foi o primeiro caso de homicídio no Judiciário brasileiro contra militares por crimes cometidos na ditadura.

Segundo reportagem do G1 publicada em 2014, o ex-comandante do DOI-Codi general José Antônio Nogueira Belham foi denunciado por homicídio triplamente qualificado, enquanto o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos e os irmãos Jurandyr e Jacy Ochsendorf e Souza foram acusados de ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa armada. O processo segue travado na Justiça desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a ação contra os militares por entender que o julgamento violava a Lei da Anistia – que concedeu perdão aos militares que cometeram abusos em nome do Estado durante o regime. 

Integrantes da Comissão Nacional da Verdade apontam major Belham como dirigente do Doi-Codi entre 1970 e 1971. Ele foi denunciado por homicídio triplamente qualificado pela morte do jornalista Rubens Paiva

Outro militar que participou da prisão, tortura e morte do deputado foi Rubens Paim Sampaio. Segundo a CNV, Sampaio foi oficial de gabinete do ministro do Exército e exerceu a função de adjunto do Centro de Informações do Exército (CIE), tendo atuado como torturador na Casa da Morte sob o codinome de “doutor Teixeira”. Sampaio também deixou uma pensão vitalícia para a sua esposa, Jeane, e as filhas Renata, Ana Luiza e Ana Paula. Desde 2017 Jeane recebe R$ 16.452,06 e as filhas R$ 3.290,41 cada uma. Juntas, a pensão das quatro custa R$ 26.323,29 aos cofres públicos.

Do outro lado, a família de Rubens Paiva continua esperando a responsabilização do Estado e de seus agentes. A viúva do deputado, Eunice Paiva, morreu aos 89 anos em 2018, sem ver essa vítoria. Já os cinco filhos do casal – Marcelo, Vera, Ana Lúcia, Maria Eliana e Maria Beatriz Paiva – ainda relembram a brutalidade com que o pai foi tirado deles. 

Cyro Guedes Etchegoyen, militar apontado como diretor do centro de detenção clandestino em Petrópolis chamado “Casa da Morte”, deixou pensões pagas até hoje

Alto escalão militar na ditadura garante renda de herdeiras até hoje

Rotinas de tortura, estupro e humilhação fizeram parte das denúncias do que ficou conhecido como a Casa da Morte, centro de detenção clandestino montado pela ditadura em Petrópolis, na região serrana do Rio, na década de 1970. O nome não veio ao acaso: ao menos 22 pessoas teriam morrido após serem levadas para o local, segundo denúncias levadas à CNV.

No topo da hierarquia que comandava a Casa da Morte estaria o coronel Cyro Guedes Etchegoyen, chefe da seção de contrainformações do CIE de 1971 a 1974. Foi o coronel Paulo Malhães, ex-agente do CIE, que apontou a participação de Etchegoyen na casa, em depoimento à CNV. Em entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), o coronel reconheceu que houve torturas, mas afirmou que “o governo nunca estimulou nem um milímetro” e que os responsáveis foram punidos.

A Pública encontrou uma pensão de R$ 30.035,55 paga à viúva de Etchegoyen, Mary Alves da Cunha Etchegoyen. O coronel morreu em 2012.

A família Etchegoyen tem ligações com o Estado brasileiro muito além de Cyro. Alcides, seu pai, esteve à frente da polícia do Rio de Janeiro durante o Estado Novo. O irmão Leo Guedes chefiou a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul no início da ditadura de 1964. E o sobrinho de Cyro, Sérgio Etchegoyen, foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo de Michel Temer – ele chegou a afirmar que as investigações da CNV foram “levianas” e chamou os trabalhos de “patético esforço para reescrever a história”.

A lista de militares de alta patente apontados como autores ou responsáveis por chefiar ações violentas na ditadura e que deixaram pensões até hoje tem ao menos mais dois nomes. Um deles é Fernando Belfort Bethlem, que chegou a ser cotado para a sucessão do presidente Ernesto Geisel. Bethlem foi alçado a ministro do Exército em 1977, cargo em que ficou até 1979. Foi justamente em 1977 que ele assinou um manifesto de militares defendendo a “linha dura” do regime militar. Bethlem deixou pensão de R$ 32.716,20 para a filha Maria Regina Bethlem Monteiro, paga até hoje.

Um segundo nome de peso na lista de instituidores de pensão é Samuel Augusto Alves Corrêa, ex-chefe da 5ª Região Militar, de Curitiba, de julho de 1974 a janeiro de 1977. Nessa época, o Exército deflagrou a Operação Marumbi, denunciada por casos de prisão ilegal e tortura. A operação, que afirmou buscar membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), teria prendido cerca de cem pessoas, com relatos de detenções arbitrárias. Alves Corrêa também foi chefe do Estado-Maior das Forças Armadas entre 1979 e 1980, na presidência de João Figueiredo. Ele deixou duas filhas pensionistas, Heloiza Alves Corrêa e Maria Lucia Alves Corrêa, que recebem R$ 16.358,10 cada uma.

As pensões dos comandantes que dizimaram a Guerrilha do Araguaia

No início da década de 1970, uma série de operações das Forças Armadas dizimou a maior parte dos militantes da Guerrilha do Araguaia, grupo político instalado ao longo do rio Araguaia. Os guerrilheiros, que pretendiam formar um exército popular camponês na região, foram vítimas de tortura, desaparecimento forçado e execução extrajudicial durante as operações Papagaio, Sucuri, Marajoara e Limpeza.

Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão judicial autônomo ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil por uma série de violações de direitos humanos relacionados ao desaparecimento de 62 membros da Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 1970. Além de determinar o pagamento de indenizações e outras reparações, a CIDH ordenou que o Brasil investigasse e responsabilizasse os responsáveis pelos crimes, ressaltando que o Estado não poderia aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores.

Desde então, o MPF apresentou uma série de denúncias contra os responsáveis pelos delitos. A Justiça brasileira, no entanto, continua barrando as iniciativas, com base na Lei de Anistia e no instituto da prescrição.

Enquanto os familiares das vítimas da Guerrilha do Araguaia continuam buscando justiça e esclarecimentos sobre o paradeiro de seus parentes, várias filhas e viúvas dos perpetradores das violações de direitos humanos relacionadas ao caso recebem milhares de reais em pensões vitalícias. Somente em fevereiro, o Brasil despendeu cerca de R$ 200 mil em pensões para nove herdeiras de sete militares envolvidos na repressão à guerrilha.

O general Olavo Vianna Moog esteve à frente do Comando Militar do Planalto na época das primeiras incursões contra a guerrilha, tendo também liderado a Operação Papagaio, em 1972. Sua filha recebeu R$ 30.585,40 de pensão em fevereiro. A Papagaio contou também com a atuação de Herculano Pedro de Simas Mayer, chefe da seção de operações da Força de Fuzileiros Navais, que deixou pensões de R$ 13.249,90 para cada uma das duas filhas.

O tenente-coronel Carlos Sérgio Torres comandou a operação subsequente, denominada Sucuri, que ocorreu entre maio e outubro de 1973. O militar deixou pensão de R$ 28.740,71 para sua viúva. 

As informações colhidas na Sucuri embasaram a Operação Marajoara, a mais mortal das ofensivas das Forças Armadas contra os guerrilheiros, quando a maioria dos militantes foi dizimada. O general de divisão Hugo de Andrade Abreu, que comandou a tropa de paraquedistas enviada ao Araguaia durante a operação, deixou pensão para duas filhas, no valor de R$ 16.611,85 cada uma. Já o coronel Celso Lauria atuou na repressão ao longo de 1974, a partir do CIE, em Brasília. Sua filha recebeu, em fevereiro, R$ 27.798,25.

Há ainda mais dois militares envolvidos nas operações contra a Guerrilha do Araguaia que deixaram pensões vitalícias para suas viúvas: os coronéis Eni de Oliveira Castro e Herbert de Bastos Curado, ambos ligados ao 10º Batalhão de Caçadores em Goiânia (GO). A esposa de Castro recebeu R$ 28.260,30 no último fevereiro; já a de Curado, que também foi secretário de Segurança Pública de Goiás, recebeu R$ 24.628,68 no mesmo período.

Militar ligado a ataques contra indígenas deixou pensão para herdeira

Durante o regime militar, grandes obras de infraestrutura na Amazônia resultaram na morte de milhares de indígenas. Em nome do Programa de Integração Nacional (PIN), implantado na década de 1970 pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici, indígenas morreram para que abrissem espaço entre as matas para hidrelétricas, estradas e áreas de exploração de mineradoras e garimpos. Segundo relatório de 2014 da CNV, entre 1946 e 1988 mais de 8.350 indígenas foram torturados e assassinados pelo Estado, com uma intensificação das mortes durante a ditadura. 

Entre os povos diretamente afetados pelo regime estão os Waimiri-Atroari – localizados no sul do estado de Roraima, na divisa com o Amazonas –, que tiveram suas terras devastadas para a construção da BR-174, estrada que liga Manaus a Boa Vista. Ainda de acordo com a CNV, os Waimiri-Atroari representam ao menos 2.650 das mortes ocorridas no período, dentro de uma população de pouco mais de 3.000 indígenas.  

Na obra Os fuzis e as flechas – história de sangue e resistência indígena na ditadura, o jornalista Rubens Valente cita um relatório elaborado pelo governo no fim dos anos 1960 no qual o comandante do 2º Grupamento de Engenharia e Construção do Exército, Gentil Nogueira Paes, responsável pela construção da BR-174, determina “pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos [índios] os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite”. 

O MPF no Amazonas chegou a exigir do Estado brasileiro indenização no valor de R$ 50 milhões pelas violências sofridas pelo povo Waimiri-Atroari, sob as ordens de Gentil. Protocolada em 2019, a denúncia do MPF afirma que as provas apresentadas à Justiça “demonstram que o Estado brasileiro promoveu ações baseadas nas políticas de contato e de ataques diretos aos indígenas que causaram a redução demográfica do povo Waimiri-Atroari em larga escala”. O processo foi acatado na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1001605-06.2017.4.01.3200, contudo foi arquivado no ano passado.

Enquanto isso, Gentil é um dos militares acusados de crimes durante a ditadura, cuja família continua recebendo benefícios do Estado por sua atuação. Desde outubro de 2013, as duas filhas do militar recebem uma pensão mensal e vitalícia que em fevereiro deste ano chegou a custar R$ 31.413,50 aos cofres públicos. Ninita Nogueira e sua irmã, Nísia Nogueira, receberam R$ 15.706,75 cada uma. 

Relatório final da Comissão Nacional da Verdade entregue à então presidenta Dilma Rousseff em 2014 apontou 377 pessoas responsáveis por crimes na ditadura

Somente um envolvido em tortura foi punido após relatório da CNV

Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em novembro de 2011, a CNV iniciou seus trabalhos em maio de 2012, entregando o relatório final em 10 de dezembro de 2014. A CNV listou 434 mortos e desaparecidos políticos e apontou 377 pessoas como responsáveis por crimes no período da ditadura militar.

A despeito de as condenações que o Brasil sofreu perante a CIDH – casos Guerrilha do Araguaia (2010) e Herzog (2018) – determinarem que a Lei de Anistia e instrumentos como a prescrição não podem ser aplicados nos crimes da ditadura, praticamente nenhum militar foi responsabilizado até hoje.

Algumas iniciativas para que houvesse punição foram barradas pelo Judiciário em diferentes instâncias, geralmente sob o argumento de que os crimes haviam prescrito ou de que estavam cobertos pela Lei de Anistia. É o que ocorreu no caso Rubens Paiva, em que ação penal iniciada pelo Grupo de Trabalho Justiça de Transição, do MPF, foi interrompida pelo desembargador federal Messod Azulay em 2014.

A única exceção ocorreu em junho de 2021, quando a 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo condenou o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto a dois anos e 11 meses de prisão. Conhecido como “Carlinhos Metralha” ou “Carteira Preta”, ele serviu no Dops de São Paulo e é um dos citados na lista da CNV. Ele foi condenado pelo crime de sequestro qualificado do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, após denúncia do MPF, em decisão inédita.

Confira a lista de todos os militares acusados de crimes na Ditadura e que deixaram pensões para filhas e viúvas pagas em 2020/2021

Quantidade
de pensionistas

2
1
1
3
1
1
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
4
1
1
2
1
2
1
2
1
1
1
2
1
1
2
1
1
1
1
1
2
1
1
3
2
4
2
1
5

Militar que instituiu
a pensão

Adyr Fiuza de Castro
Ailton Joaquim
Amadeu Martire
Areski de Assis Pinto Abarca
Ary Casaes Bezerra Cavalcanti
Attila Carmelo
Benoni de Arruda Albernaz
Carlos Alberto Brilhante Ustra
Carlos Alberto Ponzi
Carlos Sergio Torres
Celso Lauria
Cyro Guedes Etchegoyen
Edison Boscacci Guedes
Eni de Oliveira Castro
Ernani Jorge Correa
Euro Barbosa de Barros
Fernando Belfort Bethlem
Floriano Aguilar Chagas
Francisco Demiurgo Santos Cardoso
Francisco Homem de Carvalho
Francisco Moacyr Meyer Fontenelle
Gentil Nogueira Paes
Herbert de Bastos Curado
Herculano Pedro de Simas Mayer
Hugo Caetano Coelho de Almeida
Hugo de Andrade Abreu
Iris Lustosa de Oliveira
Joalbo Rodrigues de Figueiredo Barbosa
Joelmir Campos de Araripe Macedo
Jurandyr Ochsendorf e Souza
Leo Guedes Etchegoyen
Luiz Arthur de Carvalho
Luiz Carlos Menna Barreto
Luiz Macksen de Castro Rodrigues
Mario Borges
Maximiano Eduardo da Silva Fonseca
Miguel Cunha Lanna
Olavo Vianna Moog
Renato de Miranda Monteiro
Roberto Artoni
Roberto A. de Mattos Duque Estrada
Roberto Ferreira Teixeira de Freitas
Ruben do Nascimento Paiva
Rubens Paim Sampaio
Samuel Augusto Alves Correa
Sylvio Couto Coelho da Frota
Thaumaturgo Sotero Vaz

Valor somado
das pensões

R$ 30.149,10
R$ 25.452,45
R$ 31.273,20
R$ 25.953,12
R$ 31.764,80
R$ 28.703,65
R$ 15.693,08
R$ 30.615,80
R$ 30.264,56
R$ 28.740,71
R$ 27.798,25
R$ 30.035,55
R$ 34.136,10
R$ 28.260,30
R$ 30.508,03
R$ 27.485,76
R$ 32.716,20
R$ 31.756,29
R$ 38.612,92
R$ 29.182,40
R$ 33.021,30
R$ 31.413,50
R$ 24.628,68
R$ 26.499,80
R$ 12.521,28
R$ 33.223,70
R$ 8.607,49
R$ 20.362,50
R$ 34.654,10
R$ 22.851,15
R$ 31.029,00
R$ 21.413,37
R$ 40.717,02
R$ 26.826,40
R$ 14.098,95
R$ 32.157,20
R$ 32.606,60
R$ 30.585,40
R$ 31.896,58
R$ 20.916,48
R$ 24.624,15
R$ 31.736,25
R$ 29.337,34
R$ 26.323,29
R$ 32.716,20
R$ 31.146,60
R$ 30.769,82

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