O plano tinha começado antes mesmo de assumir a presidência, quando, em 2000, assinou um pacto com o então presidente Arnoldo Alemán. Em troca da impunidade garantida por Ortega quando deixasse o cargo, ele aprovou uma reforma constitucional que permitia a qualquer candidato conquistar a presidência no primeiro turno se tivesse apenas 35% dos votos. O mesmo limite que Ortega havia alcançado nas três eleições anteriores.
Uma vez no poder, com a ajuda de milhões de dólares em cooperação petrolífera enviados pelo governo de Hugo Chávez – e seguindo um roteiro parecido ao venezuelano –, Ortega desenvolveu uma política clientelista, enquanto sua família assumia quase todas as redes de televisão e grande parte das rádios do país. Fez um pacto com a Igreja e com os empresários. Pressionou os jornais com impostos, ou por não deixar o papel-jornal importado passar pela alfândega. Por causa disso, o influente jornal El Nuevo Diario fechou. Armou tropas de choque, chamadas Juventudes Sandinistas, encarregadas de espancar qualquer manifestante que saísse às ruas.
Controlou a polícia, o Exército, o Judiciário e a Assembleia Legislativa. Ortega e Murillo tomaram o poder eleitoral e fecharam os partidos políticos ou os “adjudicaram” aos seus aliados. Como a Constituição do país proibia a reeleição, em 2009 Ortega apresentou um recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, onde todos os magistrados já eram indicados por ele, e obteve a reeleição mais duas vezes, sempre com a força da sua base fiel.
Aos poucos, Ortega e a esposa, Murillo, fundaram uma dinastia familiar: os filhos são conselheiros especiais do governo. Agora, ele busca “ganhar” novas eleições, tirando da frente, com a ajuda de leis projetadas para ele, qualquer pessoa que esteja no caminho.
O que aconteceu conosco? Na última década, a economia crescia, o pacto com os empresários dava tranquilidade ao governo, a abertura de uma zona franca gerava empregos e o sistema de saúde público, para quem tem um contrato de trabalho, funcionava bem. O país marcado pela guerra e pela escassez dos anos 1980 vivia uma grande bonança econômica. E, enquanto houvesse comida no prato, ninguém se queixava dos abusos do governo.
Só a imprensa independente denunciava o que estava ocorrendo: as liberdades iam se encurtando lentamente. Mas ninguém quis ouvir. Hoje, os jornalistas estão fugindo, e eu, uma mulher que vive em Manágua, não posso nem assinar esta crônica com meu próprio nome. Ninguém está a salvo.
A fuga para o exílio
Nos últimos dias, na Nicarágua muitas pessoas cruzaram a fronteira temendo por sua vida. Quando um mandado de prisão foi emitido contra o ex-ministro da Educação Humberto Belli, ele deixou o país. A polícia invadiu a sua casa na quinta-feira, dia 17 de junho, e por algumas horas nada se soube a respeito de sua esposa, que mais tarde foi libertada. Sua irmã, a famosa escritora Gioconda Belli, denunciou que no sábado à noite dez homens com máscaras de esqui e facas entraram novamente na casa de seu irmão, disseram que estavam em uma segunda missão e levaram tudo o que viram depois de ter espancado sua cunhada e ameaçado estuprar sua sobrinha.
Depois de 2018, quando houve um levante popular durante meses que foi violentamente reprimido, muitas pessoas acabaram na prisão por agitarem a bandeira nacional azul e branca na rua ou usarem distintivos azuis e brancos, as cores nacionais. As manifestações foram proibidas. E agora é a polícia, fiel a Ortega, que tem o poder de permitir – ou não – comícios políticos.
O que aconteceu com o Ortega da revolução? Quem sabe ele sempre esteve lá, mas nunca fora visto. Quando a revolução triunfou, havia nove comandantes: Humberto Ortega, Tomás Borge, Bayardo Arce, Daniel Ortega, Henry Ruiz, Carlos Núñez, Víctor Tirado López, Jaime Wheelock e Luis Carrión. Todos saíam juntos nas fotos, ninguém podia brilhar sozinho. Em 1984, quando o sandinismo organizou eleições, Daniel Ortega foi nomeado candidato. E quando perdeu para Violeta Barrios de Chamorro, incrédulo, prometeu que voltaria.
Voltou, e agora não quer ir embora nunca mais.
Fonte: Publica