Nos primeiros seis meses de 2021, a Amazônia perdeu uma área de 4.014 km². A taxa de desmatamento registrada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) é a maior para um primeiro semestre na última década e acompanha a tendência de aumento dos índices desde 2018. A despeito dos números, um documentário lançado em junho, que conta com participação de membros do alto escalão do governo, afirma que há “muito alarde” sobre queimadas e desmatamento na floresta amazônica. Os entrevistados argumentam que um sobrevoo na região demonstra que ela é uma “floresta preservada”.
A responsável pelo filme que nega o cenário atestado por monitoramentos geoespaciais é a empresa gaúcha Brasil Paralelo. A produtora conservadora se coloca como “contrária à ideologização na produção de conteúdo” e é conhecida pelo documentário 1964: O Brasil entre armas e livros, que tenta recontar a história do golpe militar de cinco décadas atrás, além de outras produções apontadas como revisionistas.
Em 2021, a produtora que se pretende uma “Netflix da direita” lançou dois documentários focados nas questões ambiental e indígena: Cortina de fumaça e A esperança se chama liberdade. Investigação da Pública revela que os filmes contam com participação, auxílio e divulgação de integrantes do governo federal, além de investimento de um ruralista que já foi pego em fiscalização contra uso de mão de obra escravizada.
O documentário Cortina de fumaça, disponibilizado no YouTube, baseia-se na tese de que organizações civis e agricultores dos Estados Unidos e de países europeus defendem o meio ambiente porque estariam interessados em frear o crescimento agrícola do Brasil. Já o documentário A esperança se chama liberdade, exclusivo para assinantes da produtora, faz uma defesa da exploração agrícola nos territórios indígenas como se essa fosse uma forma de garantir autonomia aos povos.
Em entrevista exclusiva para assinantes da Brasil Paralelo, o diretor e fundador da produtora, Lucas Ferrugem, afirmou que a empresa “sempre” quis fazer um documentário sobre ambientalismo, mas estava esperando um “timing legal”. O momento esperado chegou, quando são promovidas discussões de projetos de lei (PL) no Congresso Nacional, como o “PL da Grilagem”, o da mineração em terras indígenas, o licenciamento ambiental, além do julgamento da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF).
Questionada, a Brasil Paralelo disse que o timing não foi proposital. “??A BP foca em temas perenes com razoável durabilidade no debate público. Por isso buscamos o ‘macro’ da questão que, inclusive, permite compreender melhor os acontecimentos do dia a dia político, jamais o contrário”, disse o diretor de relações institucionais da empresa, Renato Dias. “Com a ascensão da personalidade midiática Greta Thunberg e o aumento nas notícias sobre queimadas na Amazônia, achamos que era um bom momento para entrar na pauta e levar este conteúdo às pessoas”, completou.
Organização não governamental mais criticada no documentário, o Greenpeace rechaça a narrativa apresentada no filme. “O pseudodocumentário [Cortina de fumaça] faz jus ao nome, ao promover desinformação sobre o desmatamento no Brasil e tentar desqualificar o trabalho de ativistas, de organizações não governamentais e da mídia tradicional, que denunciam a destruição ambiental em curso no país. Tudo isso no momento em que o desmatamento segue descontrolado, as queimadas voltam a atingir níveis recordes e o país fica cada vez mais isolado e sob pressão internacional”, afirmou à Pública a porta-voz do Greenpeace, Carolina Pasquali.
Relações com o governo
“Espero que esse filme chegue principalmente nas pessoas que podem tomar alguma atitude, seja do ponto de vista empresarial ou político”, disse Ferrugem em entrevista ao portal Notícias Agrícolas no dia 30 de junho, depois do lançamento da obra.
Meses antes, na tarde de 7 de maio de 2021, a ministra Damares Alves recebeu em seu gabinete em Brasília quatro integrantes da produtora. A reunião fazia parte das gravações para o documentário Cortina de fumaça, que foi ao ar pouco mais de um mês depois. Cercada por pinturas e artesanatos indígenas, a ministra negou a existência de genocídio indígena – pelo qual o presidente Jair Bolsonaro foi denunciado em pedidos de impeachment e internacionalmente – e falou sobre sua identificação pessoal com a causa. “Nós temos áreas de conflito, mas o povo brasileiro na sua grande maioria ama os povos indígenas”, defendeu em entrevista gravada para o documentário.
Um dia antes, a equipe havia visitado a sede da Funai para entrevistar o atual presidente, Marcelo Xavier. Na conversa, disponível em versão estendida na plataforma da Brasil Paralelo, Xavier defendeu que o indígena deve “alcançar a sua dignidade através do auferimento de renda” proveniente da produção comercial em suas terras.
Também alegou que poucos indígenas morrem por conflitos agrários: “Há casos de indígenas que foram mortos por se envolverem com tráfico de drogas, atropelados, dentre outros casos, e algumas entidades insistem em jogar esses casos como conflitos fundiários”, disse o presidente da Funai, também delegado da Polícia Federal. A afirmação contradiz o levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que demonstra que o assassinato de indígenas por conflitos no campo bateu recorde sob o governo Bolsonaro. Foram registrados nove crimes de homicídio somente em 2019, maior número em 11 anos – o que representou 28% do total de mortes por conflitos no campo no ano, 32. Além dos assassinatos, os indígenas sofreram nove tentativas de homicídio e 39 ameaças de morte, segundo os dados da CPT.
Xavier apareceu também no outro filme lançado pela produtora gaúcha, A esperança se chama liberdade. A produção – realizada pela organização Fé & Trabalho e distribuída pela Brasil Paralelo – acompanhou a agenda do presidente da Funai em viagem à Terra Indígena Sangradouro, da etnia Xavante, para promover o projeto Independência Indígena, criticado pela Associação Xavante Warã em nota de repúdio, mas exaltado na peça.
A participação de Xavier nos filmes lançados pela produtora foi facilitada pela assessora de imprensa da Funai, Débora Schuch da Cruz – o que rendeu a ela agradecimentos especiais nos créditos finais de Cortina de Fumaça. Débora acompanhou o chefe na viagem, de acordo com dados do Portal da Transparência, e divulgou o lançamento do filme no site da Funai. “Documentário destaca importância do desenvolvimento sustentável para a autonomia indígena”, enfatiza a manchete.
Os filmes servem de munição política para a administração da Funai. Em reunião com a Associação Nacional de Desembargadores (Andes) no dia 25 de maio, Marcelo Xavier apresentou o trailer do documentário A esperança se chama liberdade, que classificou como “emocionante”. O vídeo foi usado como forma de legitimar os esforços da “Nova Funai” em regulamentar a mineração em terras indígenas (TIs) através do PL 191, em tramitação no Congresso Nacional. A pauta da exploração agrícola e minerária nas TIs foi o tema da maior parte das reuniões do mandatário da Funai em 2021.
Durante a reunião com os desembargadores, Xavier reclamou da alta quantidade de demandas judiciais que estariam atrapalhando o andamento dos trabalhos da Funai e questionou as denúncias feitas por ONGs internacionais. “As pessoas se envolvem nisso e fazem de tudo para inviabilizar o nosso trabalho, e isso é muito triste porque as pessoas não estão vendo o quanto estão prejudicando as comunidades indígenas. Esse vídeo é um exemplo do que nós temos”, disse.
Na semana de lançamento dos documentários, um evento da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, presidida pela governista Carla Zambelli (PSL-SP), também indicou o material da Brasil Paralelo como fonte de informação confiável sobre a pauta socioambiental. O antropólogo Edward Luz, convidado para participar de audiência sobre a relação do terceiro setor com o tema, citou Cortina de fumaça ao argumentar que existe uma “agenda internacional que atende as vontades, desejos e caprichos de poderosos grupos econômicos internacionais”. Conhecido como “o antropólogo dos ruralistas”, o consultor parlamentar foi um dos entrevistados para o documentário, por indicação “de uma ministra”, conforme contam os diretores da Brasil Paralelo em live para seus membros assinantes.
Nas redes sociais, ministros, servidores e parlamentares governistas também divulgaram o lançamento dos documentários. “Para descobrir como a mídia usa o setor ambiental e o ministro Ricardo Salles para atacar Jair Bolsonaro, veja ‘Cortina de Fumaça’, o novo documentário da Brasil Paralelo”, publicou Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que já participou de outros filmes da produtora.
Os documentários da Brasil Paralelo foram recomendados também pelo superintendente de Assuntos Indígenas da Casa Civil do governo do Mato Grosso, Agnaldo Santos, que divulgou os dois filmes, clamando por “independência indígena”. O presidente da Associação Xavante Warã, uma das mais importantes do estado, criticou: “O erro dele é só pensar na roça mecanizada. Soja! Que [é] isso? Isso não é política não. Tem grandes erros do governo do estado do Mato Grosso”.
A Pública entrou em contato com a Funai e com o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos. Nenhum dos dois órgãos públicos respondeu aos questionamentos enviados.
Um ruralista por trás de filme sobre exploração em terras indígenas
Na plataforma da Brasil Paralelo, a descrição do documentário A esperança se chama liberdade destaca que no filme “apenas as populações indígenas falam sobre sua visão de mundo e sobre seus verdadeiros problemas”, sendo estas “muito diferentes dos que são apresentados pelas mídias e ONGs que dizem representá-los”.
Com 40 minutos de duração, o filme entrevista exclusivamente indígenas que produzem gêneros agrícolas em parcela de seus territórios. Alguns deles, como os Paresi, promovem a sojicultura mecanizada por meio de arrendamentos com fazendeiros, nas chamadas “parcerias agrícolas” – o que é atualmente vetado pela legislação brasileira. Em 2018, a Pública esteve no oeste do Mato Grosso e relatou o caso, ouvindo inclusive alguns dos entrevistados no documentário.
Por trás do filme está a Fé & Trabalho, que idealizou e financiou o documentário, distribuído em parceria com a Brasil Paralelo. Fundada em 2020, a organização afirma em sua página no LinkedIn que pretende trazer “informações sobre trabalho, economia e política sob a perspectiva de uma cosmovisão cristã”.
Trata-se de uma iniciativa do ruralista e político Antonio Cabrera. Natural de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, ele é presidente do Grupo Cabrera, fundado há mais de cem anos por seu avô. O grupo empresarial hoje atua especialmente na produção de soja, milho, cana e carne, em cerca de dez estados brasileiros, além de exportar gado vivo e fabricar pré-moldados. A empresa de Cabrera já trabalhou também na produção de leite e de etanol, em parceria com a multinacional americana Archer Daniels Midland (ADM).
A fazenda Bela Vista, que pertence ao ruralista, na cidade de Limeira do Oeste (MG), no Triângulo Mineiro, foi alvo de operação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho em abril de 2009. Na ocasião, foram resgatados 184 trabalhadores em situação análoga à escravidão na fazenda, que produz cana-de-açúcar.
Segundo reportagem da Repórter Brasil, já havia ocorrido uma outra fiscalização na fazenda Bela Vista no ano anterior e Cabrera chegou a assinar um termo de compromisso em maio de 2008. Por conta disso, o ruralista foi incluído na Lista Suja do Trabalho Escravo em 2013. Ele foi processado também pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais Assalariados e Agricultores Familiares de Limeira do Oeste, tendo sido condenado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3) a pagar adicionais de insalubridade, periculosidade e penosidade, além de diferenças de férias, 13º e FGTS. Em segunda instância, a sentença foi reduzida, sendo retirado o adicional de penosidade e determinado que os trabalhadores escolhessem apenas um adicional entre insalubridade e periculosidade. A sentença já transitou em julgado e está em fase de execução.
Veterinário de formação, Cabrera assumiu o Ministério da Agricultura e da Reforma Agrária de Fernando Collor (então no PRN) em 1990, aos 29 anos, tornando-se o mais jovem ministro da história do país. Sua gestão enfrentou oposição de entidades de trabalhadores rurais e, no primeiro ano na pasta, ele chegou a divulgar uma lista de “falsos sem-terra”, acusando o PT e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) de comandar uma “indústria de invasões” de propriedades rurais no país. Ex-filiado da União Democrática Ruralista (UDR), ele já afirmou que o MST e demais movimentos sociais que reivindicam a reforma agrária devem ser tratados como “uma questão da Justiça, e não de política”.
Anos após a experiência no governo Collor, Cabrera foi secretário de Agricultura e Abastecimento em São Paulo, no governo do tucano Mário Covas, e perdeu eleições para o Senado e para o governo do estado pelo PFL e pelo PTB. Atualmente, é membro efetivo do diretório nacional do PSC, sendo também expert e ex-presidente da Fundação da Liberdade Econômica (FLE) – organização ligada ao seu atual partido que defende o “liberalismo econômico e o conservadorismo como forma de gestão”.
Presbiteriano, Cabrera tem relação com uma série de organizações com viés religioso: é conselheiro deliberativo da Tela, organização cristã que defende “a ligação entre negócios e missões” e promove uma “Escola de Empreendedorismo Cristão”, e membro-fundador da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência e do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, entre outras organizações. Ele é dono de uma das maiores coleções privadas de bíblias do mundo. O empresário mantém relações com o governo de Jair Bolsonaro e sua base de apoio.
Cabrera é protagonista de boa parte dos vídeos do canal de YouTube da Fé & Trabalho. Em um deles, o ruralista afirma que “a noção de que a agricultura moderna é destruidora da natureza não é verdadeira” e diz que o agricultor brasileiro é um “credor ambiental” e o “verdadeiro guardião da natureza”.
Em outra produção, narrada pelo apresentador Cid Moreira, a organização exalta o papel da soja. O vídeo afirma que o grão foi enviado por Deus “para ajudar a humanidade através dos mercados”, além de dizer que a soja permite alimentar a população com proteína, o que evitaria “o consumo de animais silvestres”.
Segundo a Brasil Paralelo, Antonio Cabrera procurou a produtora para saber se a empresa tinha interesse na divulgação do filme que ele tinha produzido. “Gostamos do material e disponibilizamos para a nossa base de assinantes [com mais de 200 mil pessoas]”, relatou o diretor de relações institucionais, Renato Dias.
Divulgado “com exclusividade” para assinantes da Brasil Paralelo, A esperança se chama liberdade foi produzido pela Troia Agência Criativa, por encomenda da Fé & Trabalho. A agência de comunicação sediada em Belo Horizonte tem como um dos objetivos “potencializar iniciativas missionárias”. Entre seus sócios está o missionário Breno Vieitas, membro da Igreja Batista Central de Belo Horizonte e também da Tela – Negócios e Missões, organização de que Antonio Cabrera é conselheiro. A agência não respondeu às perguntas feitas pela Pública.
Procurado pela reportagem, Cabrera afirmou que não responde pela Fé & Trabalho e que seus “negócios não têm nenhuma relação com esse trabalho”. Ele declarou ser “um grande entusiasta e apoiador” da iniciativa. Quanto às denúncias de trabalho escravo em sua propriedade, afirmou que os “direitos trabalhistas sempre foram pagos” e considerou a fiscalização “arbitrária e sem nenhum critério”. Ressaltou que a maioria dos trabalhadores continuou atuando na propriedade. Acesse a íntegra das respostas aqui.
Em resposta aos questionamentos da Pública sobre possíveis conflitos de interesse entre o tema do documentário e a atuação agropecuária de Cabrera, a Fé & Trabalho afirmou não ser uma pessoa física e que “não acredita que possa haver nenhum conflito na defesa da Liberdade Econômica entre os mais distintos segmentos da sociedade brasileira”. A Fé & Trabalho não quis comentar o caso de trabalho escravo ligado à propriedade do ruralista. A íntegra das respostas da organização pode ser lida neste link.
Três milhões de espectadores como meta
Já o filme Cortina de fumaça foi inteiramente produzido pela gaúcha Brasil Paralelo e massivamente divulgado em suas redes sociais. Só no Facebook, a produtora – que é recordista em gastos com anúncios na plataforma entre páginas de política – investiu mais de R$ 100 mil em 440 anúncios sobre o filme, direcionados majoritariamente para homens de 35 a 45 anos na região Sudeste.
A empresa tem altas ambições para a distribuição do documentário. “Ajude o filme Cortina de Fumaça a chegar em três milhões de espectadores”, pediu em e-mail enviado à base de inscritos. Até a publicação desta reportagem, a obra alcançou metade do pretendido: 1,5 milhão de visualizações no YouTube, mas a produtora se diz feliz com o resultado. “Acreditamos que está indo muito bem”, avalia Dias.
O filme se ancora em retórica utilizada por grupos que se opõem ao movimento ambientalista desde a década de 1990 e que foi sintetizada no livro Máfia verde: o ambientalismo a serviço do governo mundial, de acordo com especialistas ouvidos pela Pública. Na obra, lançada em 2001, o mexicano Lorenzo Carrasco, radicado no Brasil, atribui a uma rede de ONGs ambientalistas e indigenistas, com financiamento de países estrangeiros, o objetivo de “emperrar o desenvolvimento da Amazônia e interferir na soberania brasileira”. É a narrativa defendida por Carrasco, presidente do Movimento de Solidariedade Ibero-Americana (MSIa), que permeia o discurso “antiglobalista” do governo federal e o documentário da Brasil Paralelo.
O documentário traz ainda outras vozes, como o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, da gestão do presidente Lula; o relator do Código Florestal, Aldo Rebelo; e até Alysson Paulinelli, ministro do governo Geisel, durante a ditadura militar. A representação do governo Bolsonaro é garantida em tela por Damares Alves e Marcelo Xavier, além de Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); e Eduardo Lunardelli Novaes, secretário executivo adjunto do Ministério do Meio Ambiente.
A presença de fontes de diferentes governos e partidos é utilizada pelos produtores como prova de que o documentário une visões e ideologias distintas. De acordo com fontes ouvidas pela Pública, porém, a narrativa é a mesma de bolsonaristas e ruralistas, que “declaram guerra às terras indígenas há muito tempo”. “A gente vê esse discurso sendo veiculado largamente por figuras-chave do Executivo e do Legislativo Federal, inclusive o próprio Bolsonaro, o próprio Mourão, Ricardo Salles, quando era ministro do Meio Ambiente”, disse a antropóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Luísa Molina. “A narrativa negacionista preexistente ganhou força e foi amplificada no governo Bolsonaro”, concorda a porta-voz do Greenpeace.
Cortina de fumaça começa com um resgate de “infanticídio indígena” e, por meio de entrevistas com membros da ONG Atini – fundada por Damares Alves e acusada de incitar ódio a indígenas e tirar criança de mãe –, aborda o tema como uma “prática cultural nociva”. Para a antropóloga Marianna Holanda, professora de Saúde Coletiva e do programa de pós-graduação em Bioética da UnB , a narrativa é mentira e “sensacionalismo”. “Dizer que o infanticídio indígena existe como uma prática cultural nociva em que mães, país e avós indígenas, sem nenhuma reflexão ética ou cultural, matam seus filhos é completamente absurdo. É de um racismo estrutural.” A antropóloga pontua que o grupo que cunhou a tipologia “infanticídio indígena” tinha “claros interesses que foram se relacionando muito nitidamente com os interesses de exploração de terras indígenas”.
A exploração agrícola nos territórios indígenas, defendida em Cortina de fumaça e principalmente em A esperança se chama liberdade, encontra resistência da grande maioria de lideranças indígenas. “Através desse discurso da liberdade e da autonomia, mas que no fim é dinheiro, eles querem justamente trazer o modelo capitalista para dentro das aldeias, e é a partir daí que uma série de outros problemas sociais começam”, argumenta o advogado e assessor jurídico da Associação dos Povos Indígenas do Brasil, Maurício Terena, da etnia Terena, no Mato Grosso do Sul.
No Mato Grosso, o líder Félix Xavante, afirma que “[os ruralistas sabem que] utilizar a terra indígena não pode, então eles estão usando a política do Xavante”, que contaria com pressões e promessas de enriquecimento para “dividir o povo Xavante de Sangradouro”. “Eles estão fazendo pressão em cima da gente pra que a gente aceitasse. O pensamento deles é o quê? Arrendar a terra indígena Xavante para poder explorar, para acabar a natureza”, diz.
Uma foto aérea da aldeia Xavante de Sangradouro abre o documentário, que traz três indígenas como entrevistados. Os três se posicionam favoravelmente à exploração comercial por meio da Cooperativa Indígena Sangradouro/Volta Grande, fundada pelo Sindicato Rural de Primavera do Leste. O presidente da Associação Xavante Warã, Dutsã Dzadadzutewe Tserenhi, argumenta que o grupo que “se alia aos ruralistas” é pequeno – “mais ou menos 20 pessoas” da população de cerca de 2,4 mil xavantes em Sangradouro – e não representa o povo como um todo.
Além disso, a defesa do agronegócio estaria presente apenas em um dos nove territórios indígenas xavantes demarcados, o de Sangradouro, e somente 20% do lucro retornaria aos indígenas, de acordo com o presidente. Os outros 80% ficariam com a Cooperativa Primavera do Leste, que forneceu o maquinário para a exploração. Ainda assim, o documentário apresenta a possibilidade de exploração comercial como solução consensual e sem contraposições, que somente geraria benefícios e “esperança” aos povos.
Para a antropóloga Luísa Molina, os ruralistas e defensores desse tipo de ideia se utilizam do “desconhecimento” da população em geral “para vender essa ideia de que eles estão fazendo algo que os indígenas querem”. “O genocídio vem sempre acompanhado de uma retórica bondosa, humanista”, finaliza.
O Sindicato Rural de Primavera do Leste não respondeu aos diversos contatos feitos pela reportagem.
Documentários Brasil Paralelo: Demanda da Secom
Os fundadores da Brasil Paralelo negam alinhamento ao governo Bolsonaro, mas além da proximidade ideológica do conteúdo, personalidades bolsonaristas apresentam constantemente as produções da empresa como exemplo a ser seguido — e até encomendado pelo governo.
O inquérito que apurou a organização de atos antidemocráticos no STF encontrou em anotações de 2019 do blogueiro Allan dos Santos, dono do portal Terça Livre, diretrizes e estratégias apontadas pelo ideólogo conservador Olavo de Carvalho, para políticos e influenciadores bolsonaristas. Nessas notas, ele listou “documentários da Brasil Paralelo” como uma das demandas a serem feitas para a Secretaria de Comunicação do Governo (Secom), mas as investigações não avançaram sobre as associações da produtora com o Terça Livre ou o governo federal.
Fundada no contexto do impeachment da presidente Dilma Rousseff, a Brasil Paralelo é uma produtora de cursos, séries e filmes documentais que propõem uma “solução paralela” para a cultura e educação no Brasil.
Logo em sua primeira produção, Congresso Brasil Paralelo, que foi ao ar em 2016, a produtora entrevistou grandes nomes do bolsonarismo, inclusive o próprio Jair Bolsonaro, na época deputado federal e pré-candidato às eleições. O ideólogo bolsonarista Olavo de Carvalho também já participou de dezenas de produções, como revelou reportagem da Pública.
A Brasil Paralelo – representada por um de seus fundadores, Henrique Viana – também esteve presente na posse presidencial de Jair Bolsonaro em janeiro de 2019, ao lado de outros influenciadores bolsonaristas e com acesso privilegiado às áreas do evento.
No final de 2019, a empresa cedeu os direitos de exibição da série Brasil: a última cruzada para a estatal TV Escola, o que gerou polêmica, uma vez que os filmes apresentavam uma visão romantizada e enviesada do período colonial no Brasil.
Mais recentemente, lançou uma série de cursos sobre educação, com destaque para o homeschooling, ou ensino domiciliar, bandeira levantada por integrantes do Ministério da Educação e pauta na Comissão de Cidadania e Justiça da Câmara (CCJ), presidida pela deputada Bia Kicis (PSL-DF).
A Brasil Paralelo foi uma das primeiras a espalhar a falsa narrativa de fraude nas urnas eleitorais, hoje repetida por Bolsonaro ao defender o voto impresso. Ainda em 2018, a produtora publicou uma entrevista em que um físico dizia que as eleições de 2014 – que reelegeram Dilma Rousseff – teriam sido fraudadas a partir de uma suposta lei matemática. A acusação foi desmentida por agências de checagem na época.
Com menos de cinco anos de atuação, a empresa se gaba de nunca ter recebido dinheiro público, em contraposição a produções financiadas pela Ancine e outros órgãos de incentivo. Segundo eles, todas as suas produções são pagas por assinaturas de conteúdo que recebem. Atualmente, a empresa possui mais de 180 mil “membros”, mas aspira a voos mais altos: querem chegar a 1 milhão de assinantes até o final de 2022.
Para tal, está aumentando equipe e infraestrutura. A nova sede da Brasil Paralelo ocupa dois andares de um prédio comercial na avenida Paulista – uma das regiões mais caras da cidade. No ano passado, mudaram-se de Porto Alegre e contrataram dezenas de pessoas. Um desses recém-contratados é Elton Mesquita, roteirista do documentário Cortina de fumaça e integrante do canal de extrema direita Brasileirinhos no YouTube.
No momento, a produtora está com 30 vagas abertas e anuncia em suas redes sociais que entrou em um novo ciclo gerado pelo dito sucesso das produções, sem dar mais detalhes.
Apesar de se dizerem livres de “amarras ideológicas”, um dos requisitos para entrar na empresa é se alinhar com os valores da equipe. No processo seletivo, a empresa testa os posicionamentos dos candidatos com afirmações como “cientificamente falando, é impossível nascer homossexual” ou “Jesus é a verdade revelada e sobre isso não há discussão”. O interessado deve declarar se concorda, discorda ou não tem opinião sobre as frases.
De 19, duas delas abordaram a temática ambiental: “Não se pode confiar nas corporações para proteger voluntariamente o meio ambiente, elas precisam de regulação” e “é um absurdo que em pleno século XXI a humanidade ainda não tenha se unido para salvar o meio ambiente”.
À reportagem, a Brasil Paralelo afirmou que “é 100% apartidária, não promove partidos, candidatos políticos e nem recebe dinheiro público”. A empresa negou a disseminação de informações falsas em seus materiais. “Quando taxam algum vídeo de fake news, a pergunta que fica é: o que é fake news?”, questionaram, lembrando processos judiciais que ganharam contra outros veículos de imprensa. “Continuaremos processando todos que difamarem a empresa.” Sobre a citação da empresa no inquérito do STF, disseram que “estavam apenas utilizando a Brasil Paralelo como referência de produção audiovisual”. A íntegra das respostas pode ser lida neste link.
Fonte: Publica