A metodologia ali desenvolvida foi sendo aperfeiçoada ao longo do tempo e se tornou o que hoje se conhece como Manejo Integrado do Fogo, que associa as técnicas de prevenção e combate a incêndios às necessidades específicas do ecossistema e das comunidades que o habitam. “É a mistura da caixa de ferramentas do conhecimento técnico-científico, que a gente adquire com a academia, universidades e ciência, com a caixa de ferramentas do conhecimento tradicional”, diz Alexandre Pereira, brigadista e analista ambiental do Prevfogo/Ibama que há anos trabalha com brigadas indígenas do Mato Grosso do Sul.
O MIF é mais relevante em ecossistemas dependentes do fogo porque as queimas prescritas, além de beneficiarem fauna e flora, servem para retirar o excesso de material orgânico inflamável e impedir que um foco de fogo acidental saia de controle e se torne um incêndio. Porém, segundo Falleiro, ele se aplica também a áreas de floresta, principalmente para auxiliar na abertura de roças tradicionais. “Os brigadistas entram, se organizam para queimar todos no mesmo dia, a comunidade ajuda, os brigadistas vêm com os equipamentos e procuram fazer essas roças junto para evitar que ocorram grandes incêndios, até porque a queima de roças é bem na época da seca”, aponta.
A aliança entre conhecimento técnico e tradicional
Hoje é consenso científico que as políticas de “fogo zero” foram prejudiciais a ecossistemas que evoluíram com o fogo porque favoreciam a ocorrência de grandes incêndios. Mas, quando elas ainda eram a estratégia oficial dos principais órgãos ambientais do país, os anciões indígenas da região já sabiam de seus riscos.
Bolivar Xerente conta que, quando começou a trabalhar na brigada da TI Xerente, ouviu um alerta de um dos “velhos” de seu povo. “Chegamos na aldeia dele e falamos que não podia colocar fogo. Ele disse: ‘Meu filho, vocês não vão dar conta de conter esse incêndio, o Cerrado necessita de você colocar um fogo controlado’. E falamos: ‘Não, a gente segura [o incêndio], a gente foi capacitado’. A gente segurou em julho, agosto, e no final de setembro uma pessoa – não foi intencional – fez um aceiro, mas começou a ventar muito, e um fagulho caiu no capim seco”, relembra.
“Esse fogo pegou e só parou quando topou o rio Tocantins. E lembramos da história do velho, que me chamou depois e disse: ‘Lembra do que eu falei pra você? [Não adianta] vocês aplicarem só o conhecimento técnico, que é feito no escritório. A gente, indígena e sertanejo, é da roça, a gente convive com isso, tudo aquilo tem um porquê, tem um objetivo’. Aí começamos a entender”, descreve.
Na contramão do que diziam os líderes indígenas, os órgãos ambientais promoviam ações educativas nas comunidades para abordar os malefícios do fogo e desestimular seu uso em qualquer situação. “Aí muito do que esses indígenas tinham de conhecimento de uso do fogo, de interação com o ambiente, acabou se perdendo”, assinala Pereira. “Em vez da gente criar uma solução, a gente criou um problema, e agora estamos tentando reverter.”
Em 2012, algumas mudanças abriram a possibilidade de uma nova abordagem, entre elas a permissão de manejo do fogo pelo novo Código Florestal Brasileiro. Pouco depois, em 2014, as primeiras brigadas federais indígenas foram contratadas. Parcerias internacionais também foram importantes, como a proporcionada pelo projeto Cerrado-Jalapão, entre os governos de Brasil e Alemanha, que capacitou técnicos brasileiros.
Com as novas diretrizes, a dinâmica de trabalho mudou. “Antes a gente chegava e impunha como ia ser o regime do fogo nas comunidades. Chegávamos e dizíamos: ‘Olha, aqui no Cerrado não pode ter fogo”, afirma Falleiro. Com a nova abordagem, “em vez de chegar dizendo que o fogo faz mal, [agora] a gente procura ouvir mais o conhecimento deles e comparar com o conhecimento científico, que em geral corrobora 100% com o conhecimento tradicional”. Além disso, para Pereira, a comunicação gera uma “relação de confiança entre o órgão público e as comunidades tradicionais”.
Entretanto, mesmo que o potencial de dano da política de zero tolerância ao fogo esteja comprovado, o MIF, de acordo com Falleiro, ainda é “exceção” no Brasil, já que poucos estados o aplicam. Por isso, é considerada essencial a aprovação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, elaborada principalmente por servidores do Ibama e ICMBio, com apoio de outros órgãos federais, e proposta enquanto projeto de lei pela gestão de Michel Temer em 2018.
Além de padronizar procedimentos de prevenção e combate aos incêndios florestais no país, a proposta prevê, entre outros pontos, a criação de um comitê nacional que comandará a articulação institucional para execução da política nacional nos diferentes biomas brasileiros. Como presidente do Ibama à época, Suely Araújo acompanhou todo o processo de construção do texto. “Ele vem para consolidar a atuação e formalizar o que já ocorre há vários anos. Dá uma institucionalidade do ponto de vista organizacional, diz quais órgãos vão participar da organização [da Política Nacional de Manejo do Fogo]”, indica.
Ela conta que não houve dificuldades para que a iniciativa fosse encampada pelo governo federal em 2018 e que por isso pensava que seria aprovada na Câmara em poucos meses. “Mas mudou o governo e as coisas enrolaram. Ficou com uma falta de atenção, ficou parado porque era um projeto do Executivo e o Executivo não estava nem aí. Na verdade, quem está puxando isso agora é o próprio Congresso”, destaca.
A deputada federal Rosa Neide (PT-MT), coordenadora da Comissão Externa de Queimadas em Biomas Brasileiros da Câmara e responsável pelo requerimento de urgência para a votação do projeto, explica que a ideia de resgatá-lo surgiu depois da temporada de incêndios florestais do ano passado. “Nós discutimos fortemente o que aconteceu em 2020, que foi o maior incêndio que o Pantanal já viveu, e aí a gente percebeu que aos entes federados, por mais que discutam – especialmente os estados e os municípios –, ainda faltam a orientação nacional e as definições legais”, afirma.
De acordo com a parlamentar, o presidente Arthur Lira (PP-AL) já teria avisado “aos líderes que tem todo interesse que seja rápido” o trâmite da proposta, que é consensual e deve ser aprovada sem grandes mudanças. Para Rosa Neide, o que justifica o amplo apoio à matéria são a sua qualidade técnica e o momento político favorável, com a aproximação da COP26. “O Brasil está sendo muito cobrado. O olhar de fora para nós tá sendo muito forte, muito severo. O Brasil não está fazendo o dever de casa corretamente, então tudo ajuda a impulsionar para que tenhamos uma política correta de manejo do fogo.” Sem esse tipo de ações, questiona a deputada, “quando chegar na COP, o Brasil vai dizer o quê?”
Alternativa contra as mudanças climáticas
Como a redução de focos de incêndio ou ao menos a atenuação de sua intensidade significam queda nas emissões de gases de efeito estufa, a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo é vista por especialistas como uma arma importante para mitigar as mudanças climáticas.
E os resultados já podem ser observados nas TIs Xavante e Araguaia, as primeiras em que o Ibama realizou queimas prescritas junto à comunidade, em 2015. Segundo artigo publicado no início de setembro, assinado por seis pesquisadores – entre eles Rodrigo Falleiro –, entre 2014 e 2018 o MIF foi responsável pela diminuição das áreas afetadas por incêndios em ambas as TIs, em comparação à fase em que predominaram as políticas de “fogo zero” (de 2008 a 2013).
O levantamento, feito com base em imagens de satélite, indica ainda que nos dois locais as queimas prescritas “efetivamente reduziram a ocorrência de grandes incêndios florestais, o número de grandes e médias cicatrizes na vegetação, a intensidade do fogo e emissões de gases de efeito estufa”. O estudo destaca também que esse tipo de queima é reconhecido como uma estratégia de mitigação climática em ecossistemas propensos ao fogo, “uma vez que as queimas de baixa intensidade não consomem todo o combustível e, consequentemente, liberam menos gases de efeito estufa do que os incêndios”.
As análises científicas se traduzem na realidade dos povos indígenas: Bolivar Xerente enxerga impactos positivos em termos de subsistência. “Melhorou muito a questão das frutas para a nossa comunidade. No início, quando a gente trabalhava com fogo zero, tínhamos dificuldade de colher frutas. A comunidade Xerente é extrativista, cata semente, e com a semente pode plantar, fazer remédio – temos muitos remédios tradicionais. O Manejo Integrado do Fogo veio para melhorar essa situação, para a gente preservar, fazer remédio tradicional, as frutas, [atrair] as caças”, aponta.
O MIF pode ajudar também na redução de incêndios em florestas tropicais úmidas, como a Amazônia. Quando preservadas, normalmente não desenvolvem incêndios de grande intensidade e velocidade, porém estão ficando cada vez mais suscetíveis ao fogo, de acordo com os servidores do Prevfogo/Ibama ouvidos pela Pública. “A cada vez que esses incêndios passam na floresta, eles a tornam mais inflamável”, diz Falleiro. “Quanto mais a gente demora, mais floresta degradada a gente está produzindo. O problema não é só o que está pegando fogo hoje, mas é a condição de vulnerabilidade a grandes incêndios que a gente está construindo para o futuro ao insistir em políticas de fogo zero na maior parte do país.”
Foi justamente para evitar a degradação de um ponto específico da floresta que uma brigada na TI Yanomami, em Roraima, foi treinada nos últimos meses e vai entrar em ação pela primeira vez em novembro – o período de seca no estado começa só agora, em setembro, e vai até abril. “Ali é uma área de contato, muito próxima a assentamentos, ao lado de uma Floresta Nacional Federal [Floresta Nacional de Roraima] que já está bastante degradada pelo fogo. O fogo sai do assentamento, passa pela Flona e vai para a terra Yanomami”, explica Joaquim Parimé, coordenador do Prevfogo/Ibama em Roraima. A intenção, de acordo com ele, é construir aceiros – uma faixa de terreno livre de vegetação – impedir que o fogo avance sobre a floresta naquele local, próximo aos municípios de Mucajaí e Alto Alegre.
Para além do combate às chamas, uma das prioridades da brigada da TI Yanomami será auxiliar os agricultores indígenas locais a fazer a roça – atividade que, segundo Parimé, se não é feita de maneira controlada, apresenta alto risco de descontrole. “O grande objetivo é fazer com que a queima fique circunscrita somente à área que foi derrubada, que o fogo não escape e não cause um incêndio”, salienta.
Fonte: Publica