A fundamentação no direito do nascituro, ecoada pela magistrada, também aparece frequentemente em artigos e publicações de juristas católicos ultraconservadores, como Ives Gandra Martins. Em livro publicado pela União de Juristas Católicos, alguns capítulos detalham a mesma linha de argumentação seguida pela juíza: o aborto mesmo em caso de estupro seria inaceitável por violar a Constituição e o direito do nascituro, estando também em desacordo com o Pacto de San José da Costa Rica.
Escondida, mesmo que dentro da lei
“O que nós vemos hoje é o fortalecimento de uma noção de direito familista, que prioriza os direitos de ‘uma família determinada’ na frente de outros direitos”, avalia Sandra Barwinski. A advogada integra o Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem), acompanhando casos de mulheres que tiveram dificuldades de acessar o direito ao aborto garantido em lei. “Nos deparamos com ilegalidades constantemente, está cada vez mais difícil fazer valer os direitos das mulheres, mesmo quando estão na lei”, disse em entrevista à Pública. Sandra começou a acompanhar o caso de Gabriela após a divulgação da sentença da juíza. “É uma sentença de direito canônico, inacreditável”, avalia.
Após a decisão judicial, promotor* do Ministério Público da cidade de Gabriela, percebeu que seria necessário intervir para que a adolescente não tivesse seus direitos violados mais uma vez. Era setembro de 2020, três semanas após o caso da criança do Espírito Santo que precisou ser transferida para outro estado para ter o aborto garantido – após sofrer perseguição de militantes religiosos que tentavam impedir a realização do procedimento legal.
Preocupado com a violência e a exposição que vitimaram a criança capixaba, o promotor contatou a Promotoria de Saúde do Ministério Público em Belo Horizonte para pedir ajuda no encaminhamento de Gabriela. “Como o tempo era muito fundamental, eu entrei em contato com uma promotora em Belo Horizonte, especialista em saúde da mulher. Eu expliquei o caso e pedi orientação para ela”, contou Santos. Segundo ele, a promotora explicou que em Belo Horizonte três maternidades credenciadas pelo SUS estavam acostumadas a fazer o procedimento seguindo as normas do Ministério da Saúde. “Então ela me disse que a menina poderia ir pra lá, que seria atendida, eu falei com a advogada e ela providenciou a ida da adolescente”, conta.
Com dinheiro emprestado de uma vaquinha feita de última hora com familiares, a adolescente e a mãe viajaram às escondidas para a capital mineira. No meio da pandemia, tiveram que viajar de ônibus porque não podiam contar com o apoio da secretaria de Saúde do município, relatam. “Como o pessoal da cidade pressionava para que ela seguisse com a gestação, tivemos que organizar tudo escondido. Não era uma opção pedir ajuda nem pro transporte”, diz a advogada de Gabriela.
“O maior medo delas era que alguém do município descobrisse e fizesse algo para impedir”, conta. “Até chegarem em Belo Horizonte e serem recebidas no hospital, elas tinham medo que desse tudo errado. Diziam: ‘Eles vão ver que não estamos em casa, vão vir atrás”, lembra. Mas na capital mineira Gabriela e a mãe receberam acolhimento e o cuidado de saúde, como determinam as normas do Ministério da Saúde. A gravidez foi interrompida sem complicações e Gabriela retornou para a cidade natal dias depois.
“Mas não acabou aí, infelizmente. Ainda temos medo do que o pessoal da cidade pode fazer se descobrirem, medo de virem atrás de alguma forma”, disse Gabriela à Pública. Como o caso passou pelo pequeno Fórum da cidade e também pela assistência social, Gabriela teme que alguém exponha sua história ou cobre informações sobre o que ocorreu.
Se o Ministério Público não tivesse intervindo de forma extrajudicial, Gabriela ficaria à mercê da decisão judicial, que indicava que a menina seguisse com a gestação para doar o bebe à comarca. “Não se vislumbra a necessidade de colher a vida do nascituro para evitar danos psicológicos à adolescente gestante, já que, acaso não seja do desejo desta exercer o dever da maternidade, poderá entregar a criança em programas de acolhimento institucional”, havia afirmado a juíza na sentença.
Um direito questionado nos tribunais
A fundamentação da magistrada da pequena cidade mineira não é uma linha retórica isolada. E, segundo relatos ouvidos pela reportagem, no caso específico de Gabriela, a juíza expôs a argumentação que formulou para negar o direito à adolescente. Antes mesmo de anexar a decisão ao processo, Indirana teria compartilhado a sentença em um grupo de WhatsApp que reúne juízes de Minas Gerais.
A Pública conversou com um jurista que diz ter visto a publicação no grupo e ouviu outros dois juristas que acabaram recebendo a sentença vazada. Segundo as três fontes, na mensagem com o arquivo da sentença a magistrada teria escrito que a peça judicial estava à disposição para ser replicada, convidando os colegas a utilizar sua decisão para outros pedidos de autorização de aborto em caso de estupro. ainda de acordo com as fontes ouvidas, na mensagem compartilhada, o nome da adolescente e o número do processo estavam encobertos por uma tarja.
A reportagem tentou contato duas vezes com Indirana Alves. Por e-mail, ela respondeu que, segundo o Código de Ética da Magistratura, não poderia comentar processos nos quais atuou.
Quando tomou posse como juíza, Indirana enfeitou a sala de audiências, o local do tribunal do júri e seu gabinete de trabalho com imagens de figuras sacras da Igreja Católica. Em uma foto postada em sua rede social, em que aparece junto de sua equipe de trabalho do Fórum, a juíza escreveu: “Põe um motivo sobrenatural na sua atividade profissional de cada dia, e terás santificado o trabalho”. A frase é uma citação de Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei, um braço ultraconservador da Igreja Católica que prega que os fiéis santifiquem o trabalho cotidiano, transpondo valores cristãos para suas profissões regulares.
Fonte: Publica