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Araguaia

MPF acusa 8 militares e um médico por crimes cometidos pela ditadura no Araguaia

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Uma das denúncias, de 2019, joga luzes sobre o papel do coronel José Brant Teixeira, o “Doutor César”, apontado pelos camponeses como torturador e mandante de um crime marcado pela barbárie: a decapitação do estudante de física Arildo Aírton Valadão, emboscado num local conhecido como Grota do Pau Preto, em São Geraldo do Araguaia, no dia 24 de novembro de 1973. Ari, como era conhecido, levou um tiro no peito e teve a cabeça cortada ainda em vida, conforme relato de um dos três guias que, coagidos por Brant, executaram o crime e depois andaram quatro dias pela mata para entregar a cabeça do guerrilheiro. “O corpo de Arildo Valadão foi abandonado na mata e a cabeça da vítima foi decepada e entregue ao mandante, José Brant Teixeira, então comandante da base militar instalada no Município de Xambioá/TO”, escrevem os procuradores na denúncia. 

Lotado à época no gabinete do então ministro do Exército, Orlando Geisel, o militar que deu a ordem de extermínio, Brant era um dos elos entre o CIE, a cúpula das Forças Armadas e o gabinete do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que deu a ordem de extermínio. Brant esteve várias vezes na região, a última em julho de 1974, quando teria feito questão de acompanhar de perto a execução da geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, guerrilheira que virou uma lenda na região, presa duas semanas antes numa emboscada organizada por Curió. “Estou em Brasília. Guarde que essa é minha”, teria dito Brant por telefone ao saber da prisão, segundo conta o jornalista Leonencio Nossa na biografia sobre Curió.

As denúncias do MPF reconstituem os episódios mais fortes do conflito no Araguaia. A última delas, de agosto, trata de um camponês que aderiu à guerrilha e era conhecido como Pedro Carretel. Seu nome verdadeiro, segundo o MPF, é Pedro Pereira de Souza, integrante de um dos três destacamentos organizados pelo PCdoB, o A. Segundo o MPF, Pedro Carretel (apelido que herdara de um tio, Manoel Carretel) já tinha atuação política junto aos camponeses antes da chegada do PCdoB à região. Havia sido preso meses antes da execução e ficara sob custódia num centro de tortura conhecida como Casa Azul, endereço do antigo DNER, hoje sede regional do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Denit), em Marabá. “Era profundo conhecedor da região. Foi perseguido pelo Exército e teve sua casa queimada”, registra a denúncia.

O assassinato de Pedro Carretel, no dia 15 de fevereiro de 1974, seis meses depois da prisão, em Brejo Grande do Araguaia, na Fazenda Matrinchã, cujo nome atual é Fazenda Rainha do Araguaia, foi esclarecido em por Curió em declarações para seu biógrafo, cujo teor o MPF considera uma confissão por ele ter confirmado à justiça. Ele ainda relacionou na mesma execução outras três vítimas: o estudante de bioquímica Antônio Teodoro de Castro, o Raul, o estudante de economia Cilon Cunha Brum, o Simão, e o estudante secundarista Custódio Saraiva, o Lauro. Os quatro foram levados para os fundos da posse de um morador conhecido como Manezinho das Duas. Com os pulsos amarrados para trás, obrigados a sentar em fila, foram executados sem chance de defesa. Curió sustenta que o tiroteio foi precipitado pelo barulho de outra patrulha militar próxima ao local escolhido para a matança. “Naquele momento atingi Raul no peito. Lembro que Carretel recebeu tiros no lado esquerdo da barriga. Não gritaram porque não perceberam o momento em que erguemos as armas”, detalhou Curió, acusado de planejar, executar e ocultar o corpo de Carretel.

No mesmo dia, para garantir que os corpos não fossem retirados, o próprio Curió foi às casas de vários moradores para determinar que caçadas próximas à Fazenda Matrinchã estavam proibidas nos três meses seguintes a chacina. Nesse caso Curió foi denunciado por homicídio e ocultação de cadáver.

Em outras seis denúncias, Curió é acusado também pelas mortes de outros 13 guerrilheiros, em cuja lista estão Raul e Simão, mortos junto com Pedro Carretel. Seu nome está ligado aos episódios mais marcantes do conflito, como a execução de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, ex-tenente do Exército e engenheiro de mina, primeiro militante que chegou à área e o mais temido pelos militares; e, da estudante de medicina (RJ) Lucia Maria de Souza, a Sônia que, mesmo emboscada e cercada por uma patrulha, reagiu, ferindo gravemente o coronel Lício Maciel e o próprio Curió. Na lista de crimes atribuídos pelo MPF a Curió estão ainda as execuções do estudante de química Hélio Luiz Navarro Magalhães, o Edinho; a estudante de ciências sociais Maria Célia Corrêa, a Rosa; o metalúrgico Daniel Ribeiro Callado, o Doca; o estudante de astronomia (UFRJ) Antônio de Pádua Costa, o Piauí; a estudante de geografia Telma Regina Cordeiro Corrêa; o secundarista André Grabois, filho do comandante da guerrilha, Maurício Grabois, também desaparecido; o contador João Gualberto Calatrone, o Zebão; o camponês Antônio Alfredo de Lima; e, a geógrafa Dinaelza Soares Santana Coqueiro, a Maria Diná.

O coronel Lício Maciel é acusado de participar dos assassinatos do militante do PCdoB Divino Ferreira de Souza, o Nunes, André Grabois, João Gualberto Calatrone, Antonio Alfredo de Lima e Lúcia Maria de Souza, pelos quais Curió e outro militar de peso, o coronel José Conegundes do Nascimento também são responsabilizados. 

A Guerrilha do Araguaia é um capítulo à parte na história dos anos de chumbo. Organizada logo em seguida ao golpe de 1964, eclodiu em 12 de abril de 1972 com o ataque militar, foi o mais forte movimento da esquerda armada de resistência à ditadura, exigindo o envolvimento das três forças militares e o emprego de algo em torno de 5 mil homens. Os militares sabiam com clareza que naquela região inóspita estavam os quadros mais capacitados da esquerda e temiam que, se não fosse abortado, o movimento conseguisse em algum momento reunir força popular para mais à frente ameaçar a sobrevivência do regime ou, no mínimo, criar uma zona liberada em boa parte da Amazônia. A espinha dorsal da guerrilha, distribuídas em três destacamentos, instalados numa área com 6.500 quilômetros quadrados entre o Pará e Tocantins (mais de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo) era formada por quadros orgânicos de peso do PCdoB, entre 18 e 20 homens, que receberam treinamento militar na China, daí a razão do foco ser considerado de viés maoísta.

A envergadura do movimento, que sobrevivera a três campanhas, explica a ordem de Orlando Geisel para que nenhum guerrilheiro saísse vivo da área quando, em outubro de 1973, foi deflagrada a Operação Marajoara, usando as forças especiais do Exército bem armadas contra guerrilheiros já em precárias condições de sobrevivência. Hoje octogenários, com as denúncias do MPF, esses militares são acusados de serem autores de crimes e testemunhas oculares de uma história de horror sobre a qual as Forças Armadas tentam colocar uma pedra em cima.

Fonte: Publica

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